domingo, 29 de abril de 2012

Verdades inconvenientes sobre a crise econômica mundial: a crônica da mesma história


Um detalhe específico chama a atenção nestes dias de crise econômica global. O capitalismo nos ensina, como um dogma racional, que devemos alocar recursos, com o mínimo de gastos, para satisfazer os compradores. Ou seja, que devemos operar em custo-total mínimo, denominado de "ótimo'', em obediência ao princípio da eficiência. Produzir o máximo com o custo mínimo; na verdade, quanto mais se produz, mais se faz cair o custo total médio por unidade. 

Ou seja, o sistema tem de estar em contínua expansão. Daí Marx ter raciocinado que, um dia, o capital não poderia mais se multiplicar. Não haveria mais consumo para tanta oferta, e nem renda para o consumo, dada a concentração de lucros nas mãos de uma classe reduzida. E tal concentração seria proveniente do fato dos trabalhadores receberem cada vez menos pelo seu trabalho, no que Marx chamou de "Mais-valia''. E, claro, o capitalismo cairia. Infelizmente, Marx errou sua análise, mas não é o que quero aqui discutir neste momento de tensão mundial.



O capitalismo soube aproveitar das próprias contradições para evoluir de um período de ingênuo liberalismo, onde o Estado se limitava a emitir moeda e policiar a sociedade, permitindo o livre-comércio, causador, com a industrialização, da formação de cartéis, trusties e holdings, após a terceira metade do século XIX: o excesso de empresas no mercado levou a uma queda dos preços e dos lucros, destruindo as pequenas empresas, concentradas pelas grandes que, para fugir da deflação europeia (a "Longa Depressão''), invadiram os mercados consumidores mundo a fora. O imperialismo se formou, concentrando riquezas em escala global, como previsto por Marx. Essa festa com os recursos alheios e a competição pelos mercados levaram às duas guerras mundiais. A especulação financeira, o arrocho dos salários, a superprodução e as dívidas entre os países acabaram por arquitetar a maior crise do capitalismo, em 1929: para consumir, as famílias  pediam dinheiro emprestado aos bancos, e, para ganhar alguma coisa especulavam na Bolsa, cujas ações inflaram, trazendo uma perspectiva de lucro fácil a curto prazo; as indústrias e fazendas produziam no ritmo da guerra (não diminuíra, desde 1918), inundando o mercado com produtos cada vez mais baratos, que corroíam o lucro. Esses empresários não puderam pagar empréstimos feitos aos bancos, que cobraram; os capitalistas demitiram, para poder pagar seus débitos; com desemprego, o consumo caiu, e os desempregados não puderam pagar seus débitos com os bancos. Correram, então, para vender, todos ao mesmo tempo, as ações, que desabaram em um único dia, destruindo as próprias indústrias e bancos que eram compostos dessas ações. A crise transmitiu-se ao resto do mundo pela cobrança que os bancos americanos fizeram de seus devedores externos que, não pagando, entraram em crise. O PIB mundial caiu pela metade, no mesmo ano.
Após a década de 30, contudo, os Estados passaram a adotar políticas intervencionistas, por meio das quais redistribuíram a renda acumulada, impondo uma nova legislação social (que caracterizou o Estado de bem-estar social) e, por meio da adoção de déficits públicos controlados, passaram a estimular a demanda. Ou seja, a partir dos gastos e medidas do Governo, aumentou-se a demanda, os investimentos, os empregos, a renda, os lucros, o PIB, através do efeito multiplicador dos gastos do governo. O sistema de cunho keynesiano funcionou perfeitamente por décadas, protagonizando o período de maior crescimento econômico da história do capitalismo, onde o Estado, mesmo a partir de déficits fiscais crônicos, puxou a locomotiva da economia. Em tese, toda vez que a renda acumulava-se, era redistribuída por meio da cobrança de impostos sobre o patrimônio das classes acumuladoras e revertidas, ou em forma de benefícios (ou através de salários mais altos) para a população. Com saúde, educação e segurança públicos e de qualidade garantidos pelo Estado, toda a renda das famílias era gasto com consumo (que era definido em função da renda líquida) . No Brasil, a maior expressão do keynesianismo e do Estado de bem-estar foram os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubistchek, onde o primeiro construiu uma estrutura de base para a industrialização, uma legislação social (salário-mínimo, aposentadoria etc), protegeu indústrias nacionais e o segundo terminou o processo, transformando o Estado no grande parceiro do capital industrial externo, construindo mega-obras públicas, distribuindo benefícios fiscais e adotando medidas protecionistas. Maravilhoso, não? 

O problema maior surgiu na década de 1970, já durante a ditadura militar, que levou a diante o modelo juscelinista; na verdade, o regime militar, após destruir a ação social do Estado, arrochar salários e, partir deste esforço fiscal, conseguiu derrubar os custos de produção no Brasil, atraindo inúmeras empresas estrangeiras, beneficiadas ainda pela infraestrutura construída, através de grandes endividamentos públicos, pelo governo militar. A crise do petróleo elevou drasticamente os preços mundiais, já que o este era a base energética da produção industrial. Assim, as pessoas pararam de consumir, poupando a renda. Mas, ao invés de cair, os preços continuavam a subir, já que os países adotaram medidas protecionistas (taxando importações e afetando toda a economia) e os governos continuaram gastando demais, ficando sem receitas para reativar a demanda. Deu-se a terrível "stagflation'', estagnação com inflação, que devorou os salários e destruiu os empregos. Assim, a crise fiscal do Estado, visto como responsável pela crise, foi o principal objeto de ataque da teoria neoliberal, surgida como salvadora de um sistema que ameaçava ser devorado pelo império vermelho do comunismo. Seu alvo foi o déficit fiscal defendido pelo keynesianismo: cortar gastos e permitir a livre-concorrência naturalmente conduziria ao equilíbrio entre demanda e oferta, tanto de mercadorias quanto da moeda. No Brasil, o endividamento externo explodiu através do aumento dos juros mundiais, ocasionando a Crise da Dívida de 1982.

Os novos dogmas do capital mudaram a forma do Estado atuar na economia. Em primeiro lugar, cortaram-se violentamente os gastos sociais e estimulou-se o aumento das taxas de juros, para estimular a poupança e, assim, atacar a inflação. Em seguida, abriram-se as economias protegidas, permitindo a livre competição das empresas, desconsiderando a ideia keynesiana de proteção da indústria nacional tendo em vista a preservação dos níveis de emprego. Por último, o Estado de bem estar foi desmontado, revogaram-se as leis que concediam rendimento mínimo, privatizou-se as previdências sociais, a educação, saúde e empresas estatais.

O efeito foi arrasador. Os preços desabaram, diante da competição com os produtos externos, mais baratos (principalmente os oriundos da China), e as empresas buscaram a todo custo reduzir custos. Investiu-se pesado em tecnologia e informação- o que deu na revolução técnico-científica e na globalização da economia, fruto da expansão final das transnacionais em busca do menor custo de produção. Fábricas foram descentralizadas, filiais foram enviadas para o terceiro mundo para aproveitar-se de sua mão-de-obra barata e fartura de recursos naturais, além de pegar carona nos favorecimentos fiscais dos governos ditatoriais. Com o aumento da poupança, decorrente do aumento dos juros, os bancos acumularam grande soma de capitais e acabaram financiando essa festa- além de redistribuir a renda, sob a forma de crédito a juros baixos, para os consumidores do mundo inteiro. Interessante constatar que, além do mais, o corte de impostos efetuado pelo Estado, e a queda da estrutura de bem-estar, os serviços anteriormente públicos constituíram uma nova fonte de renda para as empresas. Só a saúde absorveu cerca de 17% do PIB norte-americano. 

Os investimentos em tecnologia e informação efetivaram a demanda por profissionais altamente qualificados- o problema é que apenas os ricos podiam pagar por esta qualificação, dentro de um mercado de trabalho altamente competitivo. Ou seja, criaram-se novos mercados consumidores com base em tais profissionais, caracterizados pelo seu alto poder aquisitivo. O desemprego foi inevitável- boa parte da população jazia na desqualificação, sem acesso aos serviços essenciais que podiam possibilitar condições de competitividade com indivíduos de classe mais alta. Como as empresas se globalizaram, cortando cada vez mais mão-de-obra, o desemprego estrutural acometeu os países subdesenvolvidos e resultou na quebra do poder dos sindicatos, peça-chave na manutenção da legislação do Welfare State. E, claro, a própria competição por empregos destruiu o sentimento de classe. A ideia que norteava o neoliberalismo era a destruição das barreiras econômicas globais e a relegação das funções do Estado à simples manutenção do equilíbrio monetário. O consumidor, segundo Friedman, um arauto e entusiasta da ideologia, realizava suas escolhas econômicas com base na previsão de renda futura, sempre procurando encontrar meios de consumir mais; daí a distribuição de crédito barato ter criado um modelo de consumo baseado no endividamento vicioso e cíclico, sempre se prezando pela queda dos custos de produção- inclusive, com relação à redução de salário, já que a oferta de mão-de-obra só aumentava, reduzindo a capacidade de pagamento dos endividados...

Em suma, o capitalismo realizou seu grande sonho: cortou gastos, produziu de forma barata e ainda concentrou renda, sempre sob a égide dos bancos, que distribuíam a renda sob a forma de empréstimos, e a recolhiam acrescida dos juros, concentrando mais riqueza, à base do esforço coletivo. E, claro, os preços só faziam cair, dada as melhorias técnicas e redução dos encargos trabalhistas. O Estado ajudava tributando o consumo e pagando aos bancos para manter os juros altos, ou seja, tirando das classes consumidoras e entregando aos ricos, além de manter os impostos sobre importações próximos do zero. Esse sistema, batizado de "consumo via endividamento'', resultou na maior concentração de renda da história, com cerca de 1% dos habitantes da Terra detendo 55% da renda mundial... 





Claro que o neoliberalismo teve variantes. Na Europa, preservou-se a legislação social mais que nos EUA. Mas o efeito foi igualmente devastador: sem educação ou saúde, as famílias mais pobres não puderam competir por empregos. Caíram na pobreza, viu-se o aumento da mortalidade infantil, do analfabetismo, da moradia precária; e, por fim, aqueles que tinham empregos viram suas rendas diminuírem, já que não existia mais lei do rendimento mínimo. O salário era determinado pelas leis do mercado, que o arrochavam, é claro. Nos países subdesenvolvidos, invadidos pelas transnacionais, o que se constatou foi a mesma redução da renda dos consumidores e, contrariando os investimentos, via-se aumento do desemprego, ocasionado pelo uso maciço de mão-de-obra barata. Então, os Estados seguiram o receituário neoliberal e elevaram os juros, cortaram impostos e abriram a economia. O resultado foi queda astronômica do nível de empregos, endividamento do Estado (para manter os juros altos), fim dos serviços públicos (cortados porque o Estado não tinha mais recursos para banca-los), aumento da desigualdade (pela adoção do sistema tributário indireta, sobre o consumo) mas também a formação de uma classe média alta, aliada aos novos investimentos e que, beneficiada pela nova legislação tributária e monopolizando o acesso à qualificação profissional (leia-se: educação), passou a monopolizar, por extensão, o mercado de trabalho. Mas o pior foi o aumento de 15% do analfabetismo, de 24% na mortalidade infantil, aumento dramático da violência e do número de homícidios e roubos, do salto de 500 para 1,25 bilhões de pessoas em situação de grave risco alimentar (fome), e de 1,5 para 3 bilhões o número de pessoas que vivem com menos de dois dólares por dia. Sem contar que estes três bilhões não possuem acesso a sequer energia elétrica- enquanto o resto do mundo está "conectado''. Por fim, os Estados quebraram, os bancos enriqueceram, formaram-se novas elites consumistas (mercados de alto poder aquisitivo). O Brasil se enquadra, com algumas ressalvas, nesta categoria.

É óbvio que você deve ter inferido que este sistema esteve por trás da crise de 2008. E esteve. Uma hora, os pobres consumidores não puderam pagar pelos empréstimos feitos pelos bancos. E os bancos, por isso, não puderam pagar outros bancos, aos quais deviam, já que, desde que o consumidor tomava crédito pra consumir, este débito era usado como parâmetro de especulação: um banco espera receber X (quantidade emprestada) + juros, enquanto outro banco, que emprestou ao último, espera receber X+juros+ juros, usando essa expectativa de lucro para pegar a mesma quantia com um terceiro banco, para emprestar mais ao primeiro banco... E assim em diante. O que acontece, por exemplo, se o consumidor não pode pagar sua dívida? E se, além disso, não tiver bens para serem penhorados? E se, a partir desse crédito, o consumidor compra casas de forma adoidada, e não paga o Banco? E se o Banco toma a casa, via hipoteca, do indivíduo, acabará pondo diversas delas em mercado (já que os outros bancos vão fazer a mesma coisa...): o resultado é que o preço dessas casas, elevado pela alta procura, irá despencar, por que ninguém irá comprar. 

A bolha imobiliária estoura, com os Bancos da ponta da cadeia se tornando insolventes e quebrando o outro Banco que lhe emprestara, que por sua vez deixa de pagar ao outro, e assim por diante, que passam a cobrar os grandes credores, as indústrias. Estas, com a queda do consumo, vêem suas mercadorias perderem preço e seus lucros caírem, e acabam por cortar empregos para poupar custos, diminuindo o consumo, aprofundando a deflação e causando mais inadimplência bancária, que quebram de vez. Esse foi o retrato da crise do Sub-prime (a categoria dos devedores dos bancos, algo como "segunda categoria'') americana, que se repetiu ao redor do mundo, dada a globalização do sistema  financeiro. O resultado foi a intervenção do Estado (!), que salvou os bancos, ao custo da explosão da Dívida Pública, cujos credores são bancos globais que escaparam da crise. Que ameaçam cobrar a dívida. Eis o cenário delicado da Europa atual.

Eu me pergunto se o neoliberalismo e o capitalismo são realmente eficientes. Se vale a pena, em nome do consumo, manter mais da metade da população mundial na fome ou miséria, e o resto, tirando os 900 milhões de europeus e americanos endinheirados, na miséria do desemprego e sub-emprego. Se, para um empresa lucrar um pouco mais, é preciso cortar legislações sociais, privatizar escolas, hospitais e a previdência social. Se todas as modernidades tecnológicas engendradas pelo capital compensam a desqualificação de mão-de-obra e o desemprego assustador que afeta a juventude (mais de 25%). E o pior de tudo é que o crescimento econômico foi ínfimo- 1,8% ao ano, contra vigorosos 5,8% do capitalismo social de outrora. Vide a gestão tucana e neoliberal da economia brasileira...

Por fim, com esse cenário, Marx volta definitivamente a estante daqueles que não se rendem ao pensamento dogmático liberal. Daqueles que não votam em partidos de direita, defensores dessa tragédia que é o neoliberalismo como ideal a ser perseguido. Não se enganem, são fantoches bem remunerados para enganar vocês, seduzirem os incautos para cair no buraco do consumo por endividamento. Não representam os seus interesses, mas os daqueles que financiam suas campanhas. Daí o financiamento público de campanhas não conseguir decolar na maioria dos países, inclusive no Brasil. O pior de tudo é que mesmo a esquerda política está comprometida com o capital financeiro. Você acha que Lula foi "melhor'' que FHC, distribuindo renda etc etc etc? Tenho péssimas notícias para você... não que se negue as benfeitorias de Lula, que foram muitas. Mas o efeito de suas políticas tem caráter duplo, como uma faca de dois gumes. São verdadeiras continuidades do sistema neoliberal. Mas o drible da crise, efetuado pelo Brasil, merece um artigo especial, que será postado em breve.

Alguma dúvida de que o capitalismo é ineficiente? Dê uma volta pelas periferias de qualquer grande metrópole... ou no interior do país... como se diz, só vendo para crer.

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