quinta-feira, 10 de agosto de 2017

As realidades da Ilíada: o mito que existiu



Nos acostumamos a pensar nas lendas e mitos da antiguidade como contos de fada – o legado iluminista, com sua obsessão pela “razão’’ materialista, conseguiu incutir, por séculos, a ideia de que o fantástico necessariamente era mentira. Assim, arrogantes cientistas e pensadores, educados sob os cânones darwinianos, semearam nos quatro cantos da terra novas verdades absolutas, com o evolucionismo e o empirismo como antídotos contra o misticismo e pilares de uma cosmovisão filosófica onde a interação entre os corpos materiais seria o princípio e motor de absolutamente tudo o que nos cerca.

Nos acostumamos a pensar nas lendas e mitos da antiguidade como contos de fada – o legado iluminista, com sua obsessão pela “razão’’ materialista, conseguiu incutir, por séculos, a ideia de que o fantástico necessariamente era mentira. 

Assim, arrogantes cientistas e pensadores, educados sob os cânones darwinianos, semearam nos quatro cantos da terra novas verdades absolutas, com o evolucionismo e o empirismo como antídotos contra o misticismo e pilares de uma cosmovisão filosófica onde a interação entre os corpos materiais seria o princípio e motor de absolutamente tudo o que nos cerca.Além da tradição bíblica, seja cristã ou judaica, o alvo preferido dos novos sacerdotes do chamado “positivismo’’ histórico era a mitologia grega. Histórias de deuses e heróis pareciam mentiras tão bem elaboradas quanto os feitos de Sansão, Davi, Moisés e Jesus Cristo; isso, contudo, mudou quando a própria metodologia científica divinizada pelos pretensiosos historiadores oitocentistas começou a lançar indícios sobre a veracidade de mitos antigos – ou pelo menos elucidar o que pode ter gerado a lenda.

A descoberta da cidade perdida de Troia, no exato local onde foi descrita por Homero e Pausânias, bem como os indícios de que fora destruída por uma guerra deixaram os senhores da verdade engasgados com a fumaça imunda de seus próprios cachimbos. Quanto mais se escavavam os terrenos do então Império Otomano e do já independente Reino da Grécia, novos indícios, como uma avalanche, surgiam: a descoberta da cidade de Micenas, com suas muralhas imensas; a descoberta de Cnossos, em Creta; e, por fim, o mais impressionante e definitivo achado, as Cartas de Tawagalawa, escritas em tabletes de argila por escribas da corte real dos hititas e dirigidas a “um reino além do Egeu’’, solicitando a extradição de um aventureiro rebelde hitita, não sem antes confirmar que “chegamos a um acordo sobre Wilusa, por causa da qual fomos à guerra’’. Wilusa era, descobriu-se no fim dos anos 1990, o nome hitita que designava Ílion, ou seja, Troia. Seu governante era Aleksandu – Alexandre, o segundo nome de Páris, filho do rei Príamo e príncipe de Troia, o causador de todo o conflito narrado por Homero, segundo reza a mitologia.

Nada disso significa que deuses caminharam entre os mortais ou serpentes de sete cabeças foram mortais por semideuses. Contudo, tudo aponta para uma base real para os mitos antigos que formaram o Ocidente tal como o conhecemos. Pensemos bem: da mesma forma que culturas menos complexas, como os índios americanos ou os aborígenes australianos, utilizam mitos e lendas como forma de comunicar eventos que realmente aconteceram, a mesma metodologia poderia ter sido utilizada pelos antigos. O mito nada mais foi que uma forma de transmitir às gerações futuras o legado histórico dos povos, de forma metafórica, metonímica até. Além da história em si, os mitos agiram como transmissores daquilo que havia de mais importante e precioso para qualquer povo: a cultura. A língua, a religião, os costumes, os valores morais e até mesmo visões filosóficas – essas, por sinal, deram origem ao que chamamos posteriormente de “filosofia grega’’ – estavam e continuam expressos nas lendas de Hércules, Aquiles e companhia.
Assim, Zeus pode não ter sido um deus poderoso cujo trono se assentava no Monte Olimpo, mas um patriarca semi-lendário do qual descendiam as principais famílias nobres da Velha Grécia micênica, por exemplo. As possibilidades são infinitamente interessantes.

Contudo, o elemento mais importante não é tanto a história real metafórica que os mitos transmitem mas, sobretudo, os valores culturais e morais que encerram. A Ilíada homérica é farta em tais referências.

O próprio início da narrativa oferece problemáticas interessantes. Acossado pela peste enviada pelo deus Apolo (o protetor de Troia), o rei Agamenon, líder máximo dos gregos, é obrigado a devolver a capturada filha do sacerdote do deus do sol, sua parte no butim. Como compensação, tomou como sua a escrava Briseis, também captura no mesmo ataque, que havia sido a parte de Aquiles. Revoltado, o grande guerreiro se retira do combate, o que inicia uma série de derrotas para os gregos (que aqui são chamados de “aqueus cobertos de bronze’’) que terminam com a quase destruição da armada.

Percebe-se que, ao contrário de outras narrativas antigas (como o épico de Gilgamesh), há um turbilhão de emoções, paixões e, sobretudo, do desejo egoístico em tais episódios. Por causa do corpo de uma escrava, os dois grandes guerreiros gregos lançaram a semente do que quase foi uma derrota total para os aqueus. A paixão de Aquiles pela escrava (contrariando o estereótipo de que o grande guerreiro mantinha um relacionamento homossexual com seu primo Pátroclo, o que em nenhum momento é sugerido na narrativa) e a paixão de Agamenon pelo poder e pelo desejo de posse são a causa da ruína.

Esse verdadeiro fatalismo (onde as paixões mundanas e materiais são quase sempre a causa dos desastres) é como uma nota musical dominante que permeia todo o poema. Na verdade, a própria guerra em si aparenta ser, no fundo, uma máxima moral: o homem é qualificado por aquilo que deseja. São as escolhas humanas, seus desejos e paixões que o tornam digno de louvor ou de escárnio; e é com uma escolha que toda a guerra da Ilíada se inicia.

É a escolha de Páris, logo narrada por Homero. Na verdade, apesar de ser filho do Rei Príamo e da rainha Hécuba, Páris foi abandonado para morrer pelo próprio pai quando sua irmã Cassandra previu que ele seria a causa da destruição do reino inteiro. Salvo por um camponês e criado como tal, Páris descobriu sua origem real e foi acolhido como membro da família real, para desespero de Cassandra. Tal detalhe – o fato de ser um príncipe criado como camponês, ou seja, como alguém bruto e ignorante e habituado à tarefas grosseiras como lavrar a terra – influencia decisivamente na escolha decisiva que o príncipe “maldito’’ fará: eleito como árbitro pelos deuses para julgar qual deusa seria mais bela, Páris na verdade decidiu não qual divindade seria mais atraente, visto que nenhuma delas desfilou, como num concurso de miss universo (ou miss Olimpo) para o ávido príncipe; a sua decisão deu-se de acordo com o que cada deusa ofereceu em troca do título de mais bela do universo.

Ora, isso é confirmado por causa da participação de “Palas Ateneia’’, ou Atena, no “concurso’’. Longe de ser descrita na mitologia como bela, Atena era uma deusa bélica que pouco se importava com trejeitos femininos – diz-se que era virgem. Logo, a “beleza’’ que Atena expressava não era algo físico, mas valorativo, abstrato, filosófico até: ao contrário do que suas concorrentes ofereceram, a deusa ofereceu sabedoria, justiça e a fama de grande guerreiro a Páris. Tratam-se das virtudes mais elevadas não só dentre os micênicos, mas dentre quaisquer povos da antiguidade.
Mas Atena não se mostrou mais interessante do que a deusa Hera. Descrita como uma mulher bela, a esposa de Zeus ofereceu algo fantástico e sem paralelo, mesmo para a megalomaníaca mitologia grega: Páris seria o rei da Ásia caso a escolhesse. Trata-se do poder ilimitado, a tentadora oferta que talvez tivesse sido aceita por qualquer outro dos muitos filhos de Príamo.

Ora, vimos que Páris não fora criado como Príncipe, mas como um camponês. Como tal, seria estranho, para não dizer incompatível, com sua falta de “cultura’’ ou de educação formal e moral, que escolhesse a sabedoria ou a glória imperial. Como muitos sabem, a escolha do príncipe foi pela oferta da deusa Afrodite: o amor da mais bela mulher do mundo, a Rainha Helena de Esparta. Lembre-se que Afrodite não era a deusa de qualquer tipo de “amor’’, como o sentimento de uma mãe pelo filhou ou a fraternidade dos irmãos entre si, mas sim de um amor sensual. Sem delongas, era a deusa do sexo, da paixão que levava os amantes à loucura e destruía famílias e casamentos – e trazia a destruição do lar e até mesmo da civilização, como ocorreu com Troia.

Assim, sem pensar em seu próprio país, Páris escolheu o amor sexual. Como camponês, optou pela luxúria. Tudo isso traz uma lições interessante: seguir os instintos da carne é a conduta a se esperar da maioria dos homens (visto ser Páris um camponês); a duração do prazer, embora intensa, é efêmera e sem posteridade (filhos de Páris com Helena, se existiram, não sobreviveram à guerra); a destruição do vínculo matrimonial e familiar causa caos e guerra; o preço pela obediência à luxúria é a destruição de si mesmo e de todos ao redor. O vício, a matéria, as paixões baixas, tudo o que seria atribuído por Platão – ávido leitor da Ilíada – como proveniente da alma animal do homem, leva à destruição caso não controlado pela força e pela sabedoria de homens mais iluminados.
Heitor e Príamo figuram, na Ilíada, como esses homens iluminados. Se um ou outro tivessem sido eleitos como árbitros da disputa entre as deusas, certamente teriam escolhido a vitória na guerra ou o reinado sobre a Ásia – e, historicamente, a localização de Troia permitira a construção de um império. Os dois tentam defender o povo e a cidade do que sabem ser a extinção de seu povo. Longe dos atributos divinos de Aquiles e outros heróis gregos, Heitor e Príamo são muito “humanos’’, mas encarnam o “melhor’’ da humanidade. O rei de Troia, nos poucos cantos onde figura, se apresenta como um homem idoso e sábio, que arrisca sua vida indo ao acampamento aqueu para pedir, humildemente, ao inimigo Aquiles que lhe conceda o favor de enterrar o corpo do morto Heitor, exterminado pelo próprio herói aqueu.

Príamo estava disfarçado e aparentemente sem qualquer tipo de proteção ou guarda. Despojado da realeza, era nada mais que um pai, movido por um amor muito diferente daquele que dominara Páris, tentando enterrar o corpo do filho. A sequência da descrição dos funerais de Heitor, que paralisam momentaneamente a guerra, descrevem sobre como o respeito àqueles que já se foram oferece uma chance de paz; ou respeito não exatamente aos mortos, mas ao que eles transmitiram. A força do costume de respeito aos mortos – visto que o desejo de Aquiles era deixar que as aves de rapina e animais devorassem o corpo de Heitor, o que era visto como tremenda desonra e impedimento para que o herói fosse agraciado com a estada nos chamados Campos Elísios, o paraíso da mitologia – venceu o desejo de vingança cega de Aquiles, que chorou diante do rei de Troia.

Ora, Heitor e os troianos são apontados como “domadores de cavalos’’. Séculos depois, Platão utilizou a metáfora do condutor da carruagem para expressar o ideal de equilíbrio e harmonia tanto no interior do homem quanto em sua sociedade: é controlando os cavalos do desejo por meio dos arreios da razão que o condutor se dirige para o caminho que deve seguir. De uma certa forma, talvez os troianos, e não os aqueus, é que são apresentados como os verdadeiros heróis da história. Isso não significa que mereciam ganhar a batalha, visto que, do outro lado, os aqueus foram abençoados pelos deuses para vencer.

Essa vitória parece não ter se dado só pela superioridade numérica ou da qualidade dos guerreiros aqueus. Na verdade, até mesmo os deuses agiam como se seguissem um “script’’. Zeus é descrito, durante as batalhas, como portador de uma balança, onde ora o peso pende para os aqueus, ora para os troianos, mas subordinado à alguma orientação do próprio destino. Sim: a história tinha um fim pré-determinado. Os troianos perderam a guerra no momento em que acolheram e protegeram, até o fim, um adúltero – mesmo que se tratasse de seu próprio príncipe. Mesmo honrados, mesmo portadores de bons motivos para se defender e sob a liderança de homens sábios, a lei do retorno deve prevalecer. Afinal, o desequilíbrio causado por uma paixão insensata deve ser restaurado.

Os acontecimentos narrados pela Odisseia, contudo, fazem crer que o castigo destinado aos troianos por um simples adultério foi desproporcional. Os vitoriosos, em grande parte, nunca voltaram para casa, ou se voltaram tiveram fins trágicos. Agamenon foi assassinado pela própria mulher; Ajax, o grande guerreiro e homem de voz mais alta dentre os aqueus, morreu de forma vergonhosa em um naufrágio; Ulisses, ou Odisseu, perdeu todos os seus homens e enfrentou uma exaustiva jornada de 20 anos para retornar para casa. Aquiles, como se sabe, foi assassinado por Páris com uma flecha envenenada no calcanhar, durante seu casamento com a princesa Polixena. O casamento com uma bela mulher o matou.

Com essa série de mortes, o equilíbrio seria restaurado. Os deuses, meros agentes de um destino misterioso e pré-ordenado, restauram o equilíbrio que sua própria vaidade causou. Afinal, quem, se não a deusa Éris, a divindade da discórdia, seria a causadora da dúvida sobre qual deusa seria a mais bela? A maçã dourada, o prêmio que terminou com Afrodite, germinou toda a situação. Parece simplista, mas a discórdia causada entre os deuses em prol do que parecia ser um título estético aparentou ser uma disputa entre valores e paixões; dentre os homens que combateram, foi uma luta entre a honra (aqueus) e a sobrevivência (troianos). Nada disso, contudo, foi um preto-no-branco: os troianos protegeram um adúltero, mas tinham mais honra que os aqueus; os aqueus venceram por que sua causa (a preservação da família e de sua própria cultura, visto que o rapto de uma matriarca aqueia punha em risco sua própria posteridade) era justa, mas se excederam em tal tarefa e foram punidos por isso.

Tamanha foi a repercussão dessa guerra de valores que a própria mitologia se encerrou pouco depois dela, coincidindo com o fim da civilização micênica. Com a morte dos grandes heróis, o caminho estava aberto para um século de guerra e invasão que sepultou a era dourada da mitologia.

As escolhas trazem consequências; são elas quem definem quem você é e as consequências das suas atitudes; escolha sempre a honra e a sabedoria contra as paixões baixas; preserve as tradições de sua cultura e história; condutas negativas geram efeitos negativos. Eis a grande sabedoria da Ilíada.

É, em suma, impossível deixar de acreditar na veracidade desses ensinamentos. Imaginar Aquiles e Heitor lutando ante às muralhas de Troia se torna mais palatável quando esse conflito se dá, diariamente, no interior de cada um de nós.


E você, qual das três virtudes escolherá para nortear sua vida? 

domingo, 2 de julho de 2017

O INÍCIO DO FIM DE UMA CAPITANIA HEREDITÁRIA: "ELES NÃO PODEM VOAR''


Por melhor que o jogo tenha sido montado, tudo depende do jogador.

No poker, na damas, no dominó, no xadrez. Se um movimento errado pode levar à derrota, quiçá vários!

Em Pernambuco, vivemos uma situação política muito comum à nossa história, com uma poderosa família agarrada, como um parasita, à máquina do governo estadual (com tentáculos no Legislativo e no Judiciário) e com uma base de apoio oligárquica irrigada à verbas e cargos públicos do sertão ao litoral. Um jogo incapaz de dar errado, não?

Mas, por outro lado, é um Estado refém de quadrilhas, assaltos diários em ônibus, deputados estaduais vivendo no luxo, caos na saúde e educação e quando não é seca devastadora (e ainda mais do que seria pelo total abandono do governo) são enchentes devastadoras (que também destroem por abandono e omissão do governo). Esse é o cenário de Pernambuco que foi rejeitado em Belo Jardim, onde o candidato governamental foi esmagado. Aliás, ninguém nem pôs o rosto do governador na campanha; diziam as más línguas que dá azar. A pergunta é impertinente: se todo mundo que ele apoia se lasca, como irá se livrar na hora da própria reeleição?

Só com reconstrução facial. E talvez com lentes de contato verdes.

A hora da verdade se aproxima. O acerto de contas que começou em Belo Jardim termina em 3 de outubro de 2018. Quando o efeito dominó se inicia não dá mais pra cessar... e um jogador incapaz pode por a perder todo o "império'' destinado a um príncipe herdeiro jovial, cujo regente e seus conselheiros amargam péssimas jogadas, com resultados diretos nas vidas dos pernambucanos (literalmente). 

Quem disse que não podemos sonhar com um Pernambuco que não é capitania hereditária? Por mais que os capitães dominem em terra, jamais podem nos impedir de voar. Não à toa, a reviravolta na história política e Pernambuco de inicia na terra do "Pavão misterioso'': 

"Pavão misterioso
Pássaro formoso
Um conde raivoso
Não tarda a chegar
Não temas minha donzela
Nossa sorte nessa guerra
Eles são muitos
Mas não podem voar''


segunda-feira, 17 de abril de 2017

Transmutação animal

"amolei os chifres do touro
encaixei-os de cada lado da cabeça
montei todas essas peças
para gargalhar deste conto impuro

pois enquanto os chifres cresciam
eu cavalgava com a égua lá
portanto os cofres se enchiam
de segredos e pérolas do mar

cai no chão, quebrado
juntei os cacos, decepcionado.

quando o cavaleiro vira touro
e de suas têmporas brotam galhas
por que as éguas são tão falhas?

tudo o que vai, volta
o cavaleiro do passado é de hoje o animal
fecha os olhos, dizem, se põe a tentar
tenta imaginar que ainda podes montar...''





terça-feira, 4 de abril de 2017

Uma cidade sem contraditório: Garanhuns, terra da unânimidade



Cidades pequenas e médias do Nordeste geralmente são marcadas por fortes disputas entre o grupo do poder e a oposição. Quem já viu sabe que a troca de farpas e disputas eleitorais são como finais de campeonato, de modo que a inexistência de oposição em um município é quase como uma maratona onde só há um corredor; além de tedioso, destrói o "espírito da coisa''. Em relação a Garanhuns, aproveitando o gancho metafísico, a oposição ao atual governo é quase etérea, fantasmagórica. Crer nela é como crer em algo sobrenatural, presumido; difícil de levar a sério. Mas uma coisa precisa ser confirmada: a fraqueza da oposição não decorre do brilhantismo nem das realizações do atual governo. 

É pura desarticulação e falta de estratégia, por que existe margem e base eleitoral de no mínimo 1/3 da população. Aliás, é até de se esperar que depois de uma campanha e uma derrota eleitoral da envergadura da que houve esse encolhimento/desorganização ocorra. 
Quanto ao governo em si, não há dúvida de que possui aspectos positivos. Foi admirável ter mantido a saúde financeira do município em meio a essa crise e ainda conseguir fazer investimentos de relevo. Mas o problema essencial é de conceito: se a estratégia de desenvolvimento da cidade é o saneamento urbano (e a marca de 400 ruas é de dar os parabéns) massificado, não podemos nunca pensar em sair do atual estágio sócio-econômico. A verdade é que Garanhuns é uma cidade pólo em decadência, sem visão de futuro nem uso racional e planejado de suas potencialidades. Tudo isso se confirma pela queda contínua na participação da cidade na geração de riqueza do Estado, que vai sendo ultrapassada por municípios menores. É uma cidade linda e com belos eventos, perfeita para aposentados e funcionários públicos, mas onde ninguém pensa em se estabelecer fora dessas duas hipóteses. Nem preciso mencionar o quadro de terra arrasada da zona rural. Ou a desorganização dos postos de saúde, cuja ausência de serviços e medicamentos básicos superlotam o Hospital Dom Moura - o que torna, sim, a má qualidade da saúde pública no município responsabilidade do governo municipal. 

Por fim, uma cidade sem oposição minimamente articulada acaba sendo um cenário perfeito para a "lei de bronze das oligarquias''. Funciona assim: grandes grupos políticos, como o que domina Garanhuns hoje, precisam de uma estrutura centralizada de comando que possa intermediar e coordenar os interesses em disputa. Esse comando centralizado tende a promover os que lhe são fiéis e sancionar os que não são. Logo, qualquer político passa a depender das relações viscerais com esse comando e o fim dos dois passa a ser a auto-perpetuação. Disso aí para o patrimonialismo, populismo fiscal, clientelismo e até mesmo controle da informação é um pulo. O agravante da situação de Garanhuns é a aliança dos grupos políticos dominantes com políticos de expressão nacional que não são oriundos da cidade - que passa a ser um mero curral eleitoral onde se aventuram, vez ou outra, candidatos proporcionais (Paulo Camelo, ex-candidato a prefeito, chama de "legião estrangeira'' a esses grupos, o que, apesar do aparente exagero, tem um grande fundo de verdade). E assim as verbas federais raramente aparecem... 

Toda a situação de abandono e marasmo só tende a piorar quando não existem, ou não se fazem ouvir alto o bastante, vozes dissonantes do discurso oficial. É óbvio que em um município que só faz decrescer e encolher politicamente existe muita coisa errada, coloquialmente falando - e a fraqueza das vozes contrárias só contribui para, no fim das contas, o preço pela omissão seja amargamente pago por todos. 

E assim vamos a passos largos para mais uma década submergindo na corrida do desenvolvimento. Oposição e situação são igualmente responsáveis por essa lamentável tendência. Em terra de unanimidade, a cegueira é uma fatalidade: só se sente o abismo quando se está caindo nele. 

terça-feira, 28 de março de 2017

Uma luz nos nove círculos do inferno

"na porta dos infernos
eu olhava almas sofridas
e os servos de Minos
a julgar suas feridas

até tuas mãos brancas
alvas de tão cândidas
desfazerem os nós das correntes
e ali eu vi que havia ser vivente

quão louco fiquei
por ti, tudo empenhei
fiquei avarento do teu calor
queria teu corpo só para meu amor

pois a luz dos teus cabelos
ali reluziu como um sol
nascido em plena meia-noite
mas pode teu brilho ofuscar tamanhos pesadelos?

teria sido belo dizer
que os apenados contigo se consolaram
mas, para mim, quão bem fez
quando tuas ancas ao meu lado dançaram

observei tua graça ir e vir
por ti cruzei todos os círculos do inferno
na ânsia do desejo, por êxtase terno
e, em meio aos suplícios, sorri

injuriosa, blasfema, desonrosa
gatuna, ávara, orgulhosa
pedante, gulosa e homicida
quantas faces pode ter uma paixão enlouquecida?

sobre ela, até as pedras dos juízes se calam
pois quem pode atirá-las, se te amam
quem não poderia desejar-te, nem te possuir
com a ferocidade de animais a se unir?

me amarraste às pedras
e me fizeste amá-las como a ti
empurro-a e beijo teus pés de figueiras

me julguem ou fechem os olhos
pois tê-la é o único paraíso possível para os condenados
o último sopro de vida,
uma gota de mel sobre um mar morto.''


segunda-feira, 27 de março de 2017

Amor descartado

atirei na privada
e ela boiou, despejada
ali meu desejo agonizou
nas águas claras, se afogou

não gritou, por exaustão
nem falou, baixinho, adeus
nem mesmo um olhar concedeu
foi-se, como soldado no caixão

será que o fumante inveterado
pode sentir falta de um único cigarro
dentre os milhares inalados?

vi-o girar e sumir
e àquelas águas misturou-se uma lágrima
nunca mais te terei, nem vou te possuir
foi especial por ter sido a última

e quando me juntar a ti na escuridão
vou lembrar daqueles momentos
onde o plástico fundia-se a uma parte de mim
amor raso, de poucos atos, para sempre guardado no coração.





quarta-feira, 22 de março de 2017

CORTAR (N)A CARNE, TERCEIRIZAR A CARNE: DIVIDIR PARA IMPERAR


Onde antes existia um emprego, vão existir pelo menos três ou mais. Onde antes se pagava quase outro salário para manter um trabalhador, agora não se pagará mais nada. Onde antes indenizações e verbas rescisórias eram calculadas às dezenas de milhares, hoje o custo para a empresa com despesas do tipo pode chegar a zero.

Parece propaganda partidária, peça publicitária ou um discurso do Deng XiaoPing, mas esses vão ser os possíveis efeitos da nova lei da terceirização, talvez a medida mais importante emplacada pelo governo (até mais que a PEC dos gastos). Mas algo tão bom assim nem parece ser verdade, não é? E não é mesmo. A geração de empregos e de renda (para quem?) com a terceirização irrestrita e ilimitada (que tal montar uma empresa de terceirização educacional? Excelente para um país que lidera todos os rankings na área...) vai ser paga ao custo de uma renda menor para o trabalhador, precarização das condições de trabalho, imensas dificuldades para garantir direitos (e aí, o trabalhador vai processar quem em busca dos seus direitos? A mãe Joana?).

A terceirização vem como uma das peças centrais em um engenhoso quebra-cabeça montado pelo governo pra gerar um crescimento econômico de curto prazo, mais um "voo da galinha'' que conhecemos tão bem. Nisso, a limitação dos gastos públicos, a liberação do FGTS, a reforma da previdência e o "pacote'' de privatizações só terão sentido em um país onde se possa terceirizar tudo: ora, os cidadãos vão ser obrigados a trabalhar mais para se aposentar e vão usar o dinheiro do FGTS para novas rodadas de consumo, gerando assim demanda por serviços e bens, e assim por empregos para que alguém os produza - o um custo menor. O empresário livra sua barra com o dinheiro extra, diminui suas dívidas e pode pensar em crescer - terceirizando toda a parafernália trabalhista.

O x da questão é que, no médio prazo, a renda do consumidor-trabalhador vai cair (terceirizados ganham em média 30% que os demais funcionários) ao ponto em que o consumo vai se reduzir (e o principal motor da nossa economia é o mercado interno, e não as exportações, que tornam o modelo da terceirização exitoso essencialmente em países ditatoriais e que controlam sua moeda com mão de ferro - vulgo China) e a crise vai recomeçar novamente. O sucateamento dos serviços prestados pelo Estado - que agora poderão em boa parte ser terceirizados - só vai piorar ainda mais a vida do povo comum. Para a geração que virá, será mais difícil ter acesso a saúde e educação de qualidade (sabe aquele projeto dos planos de saúde "populares'' do governo?) e, por consequência, vai ser praticamente improvável ascender socialmente. Trabalhando até os 65 anos, sem saúde, sem assistência, sem acesso pleno aos direitos trabalhistas, o futuro do Brasil é um verdadeiro inferno - para a maioria, por que os grandes grupos que monopolizam os planos de saúde, a construção civil e os bens de consumo vão permanecer faturando alto. São os destinatários de todo esse "esforço'' de "salvação''.

Mais do que um atentato à Constituição, o que ocorreu hoje na Câmara dos deputados foi mais uma pá de terra no túmulo da democracia. Já sabíamos que nossos "representantes'' são meros traficantes de influência a serviço de seus doadores/corruptores, e aprovar leis sem um mínimo de discussão ou debater, a toque de caixa, era comum desde que Santo Eduardo Cunha resolveu escancarar a lógica do salve-se quem puder. A derrota real é saber que "os dois lados'' (bem simbolizados por famosos alimentos) vão se alternar entre a omissão e o protesto isolado; que o "cansaço'' de quase três anos de guerra civil de opiniões e operações policiais diárias vai impedir qualquer manifestação maior de indignação popular; que o sucesso efêmero que virá da economia vai embasar uma possível "anistia geral'' para a quadrilha suprapartidária que quer extinguir não só a justiça do trabalho, mas a própria ideia milenar de "justiça'' em todos os aspectos da vida social do país. A morte dessa senhora, já em estado terminal, vai vir pelo cansaço, pela aceitação de que o que "sempre foi assim'' vai "permanecer assim''.

"Dividir para imperar''. Ou terceirizar. Pelo menos eles leram Maquiavel. O pagamento do custo da crise, que deveria ser dos setores mais se beneficiaram do que a causou (industriais, governo e bancos, beneficiados pelas políticas malucas que levaram Dilma à lona), mas o "corte na carne'' ficou mesmo para o trabalhador.

terça-feira, 7 de março de 2017

UMA REVOLUÇÃO DE "SEGUNDA CLASSE''


Nordestino é subestimado até nas suas revoluções. Com exceção de Chico Pinheiro no Bom dia Brasil, poucos na grande mídia nacional lembraram que já foram 200 anos da única revolta colonial que alcançou o poder em nossa história. Poucos são os trabalhos acadêmicos publicados sobre ela (e isso até por aqui!). Além da bela bandeira de Pernambuco e de algumas ruas e avenidas (restritas geralmente ao Recife e região), quase não restam menções ou homenagens.

O mais triste é lembrar que, ao lado da revolução de 1817, figuram várias outras mais locais e restritas. A guerra dos Mascates já vem virando nota de rodapé nos livros. A praieira se reduz a um "reflexo'', em terras pernambucanas, da "primavera dos povos'' europeia. Da Confederação só se costuma destacar a coragem de Frei Caneca. Outras, menos "pops'', como a Conjuração do pai-nosso, a Conspiração dos Suass(ç)unas e a "Cabanada'' (um curioso "mix'' que visava restaurar o "opressor'' Pedro I e acabar com a escravidão) são desconhecidas até mesmo por parte relevante dos pernambucanos.

Se existe motivação para esse "esquecimento'' da tradição libertária do nordeste (e de Pernambuco em especial) é porque, talvez, as revoltas sulistas, geralmente glorificadas (como no caso daquela "comandada'' por um alferes alcoólatra abandonado por todos os seus "companheiros''), servem ao espírito de grandeza e sentimento de superioridade dos que se acham melhores que o resto do país. Me arriscaria a dizer que não foram revoluções "tão revolucionárias assim''; talvez nem mesmo tão intensas quanto uma revolta onde até mesmo se pensou em libertar Napoleão Bonaparte para comandar as tropas da liberdade...

Esse sentimento e essa emoção, o desejo por levantar a cabeça e rugir, feito leão coroado, contra as barbaridades e privilégios de uma elite exploradora e corrupta que suga todos os escassos recursos da região mais pobre do país para seu bel-prazer nunca devem ser esquecidos. Daí a importância de lembrar os que em 1817 disseram "não'' à tirania da Corte mais atrasada da Europa. Não muito diferente daquela que está instalada no Planalto Central atualmente, sugando 70% dos recursos públicos, onde não existe nobreza de nome mas os privilégios são até superiores aos da antiga Família Real...

Enquanto a Corte de Brasília saqueia o nosso bolso, uma última lição de 1817. Mesmo derrotados, os últimos soldados da revolução permaneceram no Recife para entregar o Cofre Público às autoridades portuguesas. Quando perguntados o motivo de simplesmente não terem fugido com a grana (pública), o grupo respondeu: "porque nós vamos entrar para a História como revolucionários, não como ladrões”

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

"ESTÁ ACONTECENDO'': PERNAMBUCO DE JOELHOS


Hoje, 21 de fevereiro de 2017, Pernambuco viveu o maior assalto de sua história. Depois de seguidas entrevistas da equipe de segurança, a população clamou, às dezenas de milhares, por uma palavra do governador. 

Olheiras enormes, evasivas e empurra-empurra quanto à "responsabilidade'' pelo estado de anarquia em Pernambuco. Foi assim a esperada entrevista do sr. Câmara, ansiosamente aguardada pela população não como um indicativo de esperança, mas sim como a sentença final e irrecorrível de condenação do Estado ao caos.

Aos que esperavam alguma assunção de culpa no ocorrido, o governador foi claro. A grande responsável por grupos paramilitares e mercenários percorrerem livremente o Estado com enormes quantidade de armamento, munição e veículos blindados - sob as barbas da polícia - é a empresa assaltada. É como dizer que a culpa do estupro foi da mulher e sua minissaia.

O resto da culpa ficou com o governo federal, responsável indireto pelas armas usadas pela bandidagem. Sabendo da situação das fronteiras nacionais - e também que não existe ação alguma do governo federal para resolver o problema - o ilustre Chefe do Estado assumiu que o nosso "desconforto'' com quadrilhas paramilitares não tem solução por não depender dele.

Quando os repórteres insistiram no impacto da ação criminosa de hoje, o governador, pela primeira vez, foi um pouco mais preciso em suas análises. "Está acontecendo'', disse. É um ótimo começo, não é? Mas o rei das escapadas não deixou barato: "eu já vi isso em outros Estados'', afirmou logo em seguida. Eu me pergunto: qual capital brasileira foi invadida, paralisada e subjugada nessa tal "onda'' a qual o governador se referiu?

Por fim, vieram as soluções. O que mais se ouviu foram verbos. Curiosamente nenhum deles estava no "passado''. Vamos investigar, estamos investigando, vamos prender, estamos prendendo. A ausência das formas "nós investigamos, nós prendemos'' permitem concluir uma coisa: o governador admitiu que, antes da capital ser atacada, suas forças não estavam "investigando'' ou "prendendo''. É, a ausência das palavras fala mais que as próprias palavras! Mas a novidade, de fato, ficou por conta do "vamos cobrar'' dirigido ao governo federal e à polícia federal - que serão acionados para investigar não a quadrilha de mercenários, mas a própria empresa assaltada.

Sabe, o governador estava no sudeste quando ocorreu a ação, mas a julgar pelas suas olheiras foi como se tivesse estado no meio do tiroteio. Visivelmente irritado, buscando com os olhos, nervosamente, algum ponto impreciso na plateia hostil como um pedido mudo de ajuda, demonstrou imensa ansiedade e insegurança enquanto tentava forçar uma cara de "mau''. Por alguns instantes, todos esses sentimentos desapareciam e o governador olhava para baixo, como se reconhecesse sua própria impotência. 

A postura dos braços entrelaçados, extremamente defensiva, combinou com o discurso decorado; a forma como ficou silencioso nos intervalos e no fim, aliado a tudo isso, só permite uma conclusão: o governador é um homem esgotado, reconhecido por si mesmo, pelos seus auxiliares e por toda a sociedade como completamente incapaz de lidar com a situação. E diante do supremo fracasso, toma a decisão fácil de culpar outrem.

O fracasso está em ser incapaz de articular, bancar e liderar uma ação integrada das polícias contra a bandidagem. Com coletes vencidos, munição racionada e armamento obsoleto, a polícia militar convencional é incapaz de enfrentar criminosos com treinamento militar evidentemente muito mais avançado. Os cortes orçamentários e sucateamento da polícia civil tornam a polícia científica de Pernambuco uma das mais atrasadas e carentes do país. Enquanto outros Estados - como Goiás e Maranhão - vem vencendo as quadrilhas com inteligência e tecnologia, Pernambuco viu e vê todos os dias bandos armados percorrerem de uma ponta a outra seu território sem serem sequer notados. O ponto cego é tão imenso que o próprio governador, em seu silêncio ensurdecedor, deixou claro que as polícias pouco avançaram nas investigações. 

Para 8 milhões de pernambucanos, restou colher a maior e talvez única verdade dita pelo governador. Um alerta de "salve-se quem puder''.

"Está acontecendo''.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Bregas e histórias do Recife

Há seis anos tive que me mudar para o Recife, vindo do interior. Até então, diante do turbilhão de "coisas'' novas, fui apresentado ao "brega''. 

O que seria "brega''? Mais que um "ritmo'', é uma manifestação cultural que vem evoluindo há décadas. Conheci mais de perto, por ironia, quando fui internado em um hospital para tratamento por alguns meses - atrás desse hospital havia uma comunidade onde os "sons'' eram ouvidos quase todos os dias.

O primeiro que ouvi foi esse "hit'' da Banda Nova Reação: 




Difícil explicar. Talvez a falta de "boas'' opções musicais tenha me feito sentir falta dessa música, quando tive alta e voltei para casa. Na verdade, procurei por muito tempo pela música na internet e fui apresentado ao mundo dos ritmos contagiantes, letras que evocavam tristes paixões passadas e danças "do joelho para cima''. 

E aí já era. O brega me pegou de jeito, entrou no sangue e na alma - e, sim, uma festa nunca é boa sem um bom brega. Eu era conhecido, especialmente, por ter um celular munido de uma playlist "impecável'' e tão apropriada para qualquer festa quanto um o zelador do seu prédio para qualquer conserto doméstico. 

Bem, depois de muitos sarra-sarras, calouradas e breguinhas de periferia, eu meio que já ouvia brega todos os dias. Geralmente era o meio se sentir na pele o que estava lá dentro, e quem já passou deve perceber que esses sentimentos se referem às paixões mal-resolvidas e bem resolvidas. E aí veio outro sucesso que me marcou:




A música fala em superar um velho amor com um novo. Quem nunca?

Mas, como tudo na vida, veio a renovação. Era a época dos mega-sucessos de bandas como Kitara, Musa do Calypso, Torpedo e, fechando a excelente geração, Banda Sedutora. A pegada dessas bandas foi bolar sequências épicas e arranjos que te contagiavam com o sentimento das músicas, muito voltado para as coisas do coração; um grande amigo disse que era a "guitarra libidinosa'' o diferencial. Sim, quando mais bêbado você tivesse, mais força a música tinha sobre você. 

E os dramas do coração continuam, principalmente quando a separação até ocorria, mas o amor nunca acabava:



O que seria do novo brega sem os famosos "MCs''? Sabe, a maioria deles é de garotos pobres, que explodiram com algum sucesso grudento e coreográfico. O mais famoso - e pioneiro - é o MC Sheldon, cuja vida atribulada inspira muitos garotos da periferia e embala os bailes de brega nos morros ainda hoje. Quem não lembra do verão de 2013, quando o rapaz dos Coelhos (bairro do Recife) estourou de vez celebrando "olha o verão hein?''?



Na esteira de Sheldon, vieram os MCs Boco (que fazia dupla com Sheldon), Metal e Cego e, mais recentemente, a estrela do momento, MC Troia, o popular "Troinha'', diretamente do Alto José do Pinho. 





O balanço do MC Troia vem conquistando o mundo (literalmente!). Pessoalmente, eu penso que houve meio que uma trajetória de decadência do brega, onde aquelas músicas mais profundas e sentimentais foram substituídas, paulatinamente, por produções mais voltadas às coreografias e alusões sexuais - e um pouco "grosseiras''. Essa tendência sexualizante, justiça seja feita no entanto, já é antiga, como a famosa música "Milkshake'' - polêmica na época em que foi lançada - estourou lá nos anos 2000:





É, você pode ser promíscuo sem apelar à safadeza rasteira (mas quem disse que isso é sempre bom?). Quando se joga essa música no finalzinho de uma festa, esteja pronto para ter ótimas lembranças. Aliás, falando em lembranças, como falar em brega sem falar "nele''? Temos um astro ao redor do qual todos os sucessos do brega orbitam, o pioneiro que inaugurou letras, ritmos, danças e buscou inspiração na música do Caribe e a fundiu com as tradições daqui. Claro, foi Kelvis Duran!



Impossível achar quem tenha mais de 25 anos e não tenha pelo menos uma história com essa música. Só a abertura já dá vontade de dançar, os primeiros 50 segundos já fazem subir aquela vontade de tomar uma cachacinha e o final... bem, só escutando! 

Pra fechar qualquer festa, havia a música perfeita, por que a maioria delas acabava lá pelas cinco da manhã e voar em pensamento nessa época era mais comum do que hoje! 




Ah, e para fechar, é verdade que Kelvis Duran foi o precursor de como o brega é hoje, mas se houve um "precursor do precursor'' foi Reginaldo Rossi. Sim, o cara arrebentava, bicho. Cantou o Recife como ninguém, mas sua limitação mais óbvia era que suas músicas praticamente se reduziam aos aspectos ruins das relações amorosas rompidas... 



É, as vezes em que eu cantei "Em plena lua de mel'' ou "leviana'' imaginando a cara da figura objeto do recalque, dor de cotovelo ou simples saudades mal-resolvidas não estão no gibi. E metade do Recife também! 

Quando olho para trás e percebo o quanto eu vivi em músicas de brega, penso o quanto valeu a pena. O brega é a expressão cultural de um povo sofrido, mas que sabe se divertir, e cujas vivências e desilusões estão nos acordes. A vida é curta e temos que curtir no embalo de um brega enquanto temos tempo, sejam as alegrias ou as tristezas, por que logo será novamente a hora de levantar cedo para garantir o pão de cada dia. 

E ajuda muito quando o motorista do ônibus deixa tocar aquele breguinha, não é? 

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

O país onde os vilões têm finais felizes



O mestre Maquiavel ensinou que o bom político é o que usa tudo em seu favor, até o que em princípio pode o destruir. Ontem, a grande manobra política urdida pela quadrilha suprapartidária que governa o país vem chegando ao seu clímax. 

1 - Um temor: e se eles se voltassem contra nós?

Depois de tremer de medo com as manifestações de 2013, a gangue política do PMDB interpretou bem os movimentos: eram de contestação geral ao estado de coisas, mas toda aquela raiva e indignação difusas precisavam de um destinatário claro e estava óbvio que eles pagariam o pato. Afinal, a menor reflexão indicaria que os responsáveis diretos pela bandalheira, caos nos serviços públicos e politicagem provinciana eram os próceres do PMDB e partidos nanicos de aluguel.  

2 - Camuflar para sobreviver: como apoiar os dois lados em uma eleição bipolarizada

Foi aí puseram em prática o plano: se dividiram em dois (PMDB do Rio, RS, SP, PE, MA e outros Estados com Aécio, PMDB de MG e afins com Dilma) e apoiaram os dois lados na eleição de 2014, sabendo que um dos dois acabaria se tornando o alvo retardado das manifestações de 2013. Acabaram camuflando-se, como parasitas, para saírem vencedores seja qual fosse o eleito. 

3 - Analisando o cenário: quanto pior, melhor

Perceberam que o país saiu rachado, que a crise ia pegar geral e as fatias do bolo das verbas públicas iria diminuir; por isso patrocinaram Eduardo Cunha para formar o centrão, chantagear Dilma e "arrancar mais'' desse bolo.

Vieram as pautas bomba e o país explodiu. Fizeram jogo duplo, ora soltando Cunha da coleira, ora salvando Dilma, mas perceberam que ela e o PT é que condensaram toda a indignação popular. E, nas sombras, estimularam esse sentimento, enquanto mantinham um governo impopular só até o ponto em que lhes foi conveniente. Todo este tempo, se camuflaram apoiando os dois lados em uma batalha cujo único vencedor possível eram eles próprios.

Viram que a crise chegara em níveis ameaçadores para a banqueirada e os parasitas do Estado (vulgo "empresários'' da carteira do BNDES), trouxeram os movimentos anticorrupção para debaixo do braco, derrubaram o castelo de areia de Dilma e dividiram meio a meio o governo com o partido derrotado nas eleições. Adquiriram automaticamente o apoio velado dos eleitores desse partido (quase metade do país). Era a "lua de mel'' do novo governo.

4 - Puxando o tapete: é hora de sair dos bastidores

Prometeram estabilizar o país, se aproveitaram do cansaço popular e elegeram alguns azarados para serem sacrificados (Cunha, Cabral etc.). Se aproveitaram do silêncio da opinião pública e da lentidão da justiça para aprovar algumas reformas e dividiram o bolo que elegeram os presidentes da Câmara e do Senado. Foram os maiores vitoriosos nas eleições municipais, que confirmou sua aposta de que o PT levaria a culpa de tudo no final.

Pela primeira vez desde a saída de José Sarney do poder, o PMDB voltou a exercer diretamente o poder, mostrando sua cara ao mundo e lançando um mudo desafio: somos bandidos sim, somos safados sim e vamos governar sim. E o mundo calou-se.

5 - "A Fortuna ama os ousados''

Misteriosamente, a sorte os favoreceu, o relator da lava jato morreu "acidentalmente'' e agora indicaram o ministro mais forte do governo para sucedê-lo no STF e revisar a própria lava-jato. Isso depois de criar um ministério para proteger um delatado e investigado com as graças do foro privilegiado.

6 - Desvendando as mentes criminosas

Quer saber? O PMDB e sua gangue mafiosa tiveram uma leitura brilhante do cenário político pós-2013. Perceberam que o país iria se dividir em dois, estiveram dos dois lados, se uniram ao que ficou mais forte, souberam a hora de agir e esquematizaram um plano para "sobreviver'' à lava jato. Quase um "pacto''. Agora, surfam no desgaste da crise, na morosidade judicial e no lobby junto ao STF e TSE para governar até 2018 e, logo após, permanecer no governo quando algum tucano for eleito presidente. Vão ficar exatamente onde estão. Talvez por uma década, duas, talvez até o fim da triste história brasileira.

7 - Tudo sob controle: tudo passa, menos eles

Criaram e difundiram o mito mais poderoso de ser derrubado no momento: o de que PT, PSDB e outros "idealistas'' passam, mas eles é que são indispensáveis ao país. Ah, sem eles o Brasil é "ingovernável''. Se infiltraram em tantos lugares e esferas que já são a alma do país. Construíram um império dentro da máquina pública. Como Renan Calheiros, são os sobreviventes, e sobrevive quem mantém o poder na mão, seja qual for a cara que esteja na moeda da vez.

Agora, com o personagem de histórias em quadrinhos no STF, o caminho está aberto para a vitória total. O povo vai pagar a conta calado, os "indignados'' vão ficar quietos com o "lulopetismo'' agonizante para combater, o tucanato moralista ficou atrelado demais ao governo para derrubá-lo e a "esquerda'' vai continuar alienada em suas universidades, debates entre 4 paredes e militância virtual. Exatamente como os gênios do mal pensaram.

É. Na nossa história parece que os vilões sempre ganham.

domingo, 15 de janeiro de 2017

Cem anos e duas Hecatombes em Garanhuns: o que aprendemos?




Já há um certo tempo se busca resgatar a memória de uma das maiores chacinas da República Velha e da cidade de Garanhuns. Quem passeia pelas ruas calmas e frescas da cidade das flores não imagina que, há 100 anos exatos, uma centena de jagunços, cabras e matadores varreram o município em uma onda de vingança quase cinematográfica. Quando um destacamento policial finalmente desembarcou, vindo do Recife, e a poeira baixou, dezenas de mortos lotavam a Igreja matriz da cidade. Dentre as baixas estavam alguns jagunços e, em lugar de destaque, as maiores lideranças políticas de Garanhuns. 

A matança teve como germe fundamental uma rivalidade local espelhada em uma rivalidade regional e uma eleição contestada. O Conselheiro Rosa e Silva, antigo monarquista, era o principal adversário político do General Dantas Barreto, e o Estado de Pernambuco inteiro viu-se obrigado a tomar um ou outro lado. Em Garanhuns, as famílias Jardim, Miranda e aliadas eram "rosistas''; já a família Brasileiro e aliadas apoiavam Dantas Barreto. Basicamente, não existiam grandes divergências ideológicas entre os oponentes, pelo menos do ponto de vista de Garanhuns, embora a eleição municipal para prefeito de 1916 fosse fortemente contestada pela oposição, que publicava notas na imprensa da capital denunciando o "rei da terra'', o Coronel Júlio Brasileiro, e sua a "família imperial''. Ambos os lados, contudo,  representavam o poderio dos latifundiários cafeicultores e das grandes casas de comércio e, para sobreviver, se renderam às políticas de alianças sub-regionais e oligárquicas que era a alma da Velha República. 
O duplo extermínio, que começou com a morte do chefe da família Brasileiro, prosseguiu com o assassinato em massa dos seus opositores e terminou com a fuga ou prisão dos demais apoiadores e parentes dos Brasileiro gerou um vácuo de poder em Garanhuns. Foram décadas de reconstrução, onde as movimentações políticas se tornaram mais ideológicas e homens não diretamente ligados às famílias tradicionais começaram a ascender. Depois da crise do café em 1929, as cabeças pensantes da cidade começaram a imaginar que a cidade possuía outros potenciais. 




















Ao lado, JK em Garanhuns: anteriormente prestigiada pelo esforço de suas lideranças, hoje a cidade é esquecida

Esse "pensamento diferenciado'' alçou voo a partir dos anos 1950. Garanhuns viveu um movimento de industrialização e modernização acelerados. Quando o presidente da República símbolo desse período de renovação, Juscelino Kubitschek, visitou a cidade em fins dos anos 50, a revista Cruzeiro já listava Garanhuns como um dos municípios que mais progredia no Brasil. Já no início dos anos 1960, a mente fértil de Luiz Souto Dourado, um dos maiores líderes da história da cidade, lançou as bases para lançar Garanhuns em outro patamar. E não eram poucas essas bases. Crédito de fomento, apoio às cooperativas, instalação de dezenas de indústrias. Até fábrica de relógio suíço existia na terra de Simoa. 

Com Souto e seus aliados, Garanhuns tinha voz no poder Legislativo estadual e nacional. Foi assim até meados dos anos 80, quando algo foi lentamente mudando no Brasil e no mundo, com a queda do desenvolvimentismo. Por exaurimento, as velhas lideranças foram morrendo ou se aposentando e Garanhuns caiu exatamente na situação que gerou a Hecatombe: o transplante de rivalidades regionais para a órbita municipal. 





















Com alarde, a imprensa de 1950 anunciava que Garanhuns seria o início da luta pela recuperação do Nordeste. Esta luta foi revertida pelos que estão no poder atualmente.


Como em 1917, os anos 1990 apresentaram duas correntes políticas: uma contrária ao grupo comandante do governo do Estado e outra favorável. Quando Miguel Arraes foi reeleito pela terceira vez governador, a rivalidade aumentou. De um lado, o ex-prefeito Ivo Amaral, com larga popularidade e contrário a Arraes, se lançou contra o candidato apoiado pelo então prefeito Bartolomeu Quidute, Silvino Duarte, com a benção de Arraes. O resultado da histórica eleição de 1996 foi, como em 1917, fortemente contestado pelos derrotados. Pairava no ar a suspeita de que "os precatórios de Arraes'' haviam garantido a vitória de Silvino. 

Verdade ou não, o período inaugurado por Silvino rompeu com a tradição política da cidade. Os rompimentos se estenderam desde à uma postura bairrista por parte do prefeito ao rompimento com seu mentor político, o ex-prefeito Quidute. De lá para cá, Silvino foi reeleito, elegeu o sucessor (o ex-prefeito Luiz Carlos) que rompeu com o mentor e se reelegeu. Se vê claramente que a eleição de 1996 marcou uma nova forma de fazer política em Garanhuns: bairrista (onde se passou a desprezar a construção de bancadas estaduais e federais de Garanhuns em Recife e Brasília, em detrimento do apoio a políticos "forasteiros'' em nome de interesses pessoais do grupo político dominante), com um estilo personalista fraco (centrado na figura do prefeito, mas pela falta de força e liderança deste, seus apoiadores acabam se voltando contra ele, como foi o caso do rompimento entre Luiz Carlos e Silvino), formadores de amplas maiores na Câmara (claramente transformada em extensão do poder Executivo municipal através dos "favores'' prestados pelos vereadores com verbas e cargos públicos a suas bases eleitorais), condutores de obras de infraestrutura "para inglês ver'' (sim, são aquelas ruas que estão sempre "em processo de saneamento'' à cada dois anos!) e, o que é pior, total compromisso com o status quo da cidade. Traduzindo: é uma política voltada a beneficiar quem estava em alta nos anos 1990 (empresários empreiteiros e concessionários, comerciantes tradicionais, especuladores imobiliários), através da perpetuação no poder de um mesmo indivíduo que, entretanto, acabava sendo sempre traído pelos "sucessores''. 

A nova "Hecatombe'' se deu quando, apesar de um natural de Garanhuns se tornar presidente da República por longos 8 anos, a cidade pouco se mobilizou, por seus líderes, para aproveitar tal oportunidade. A opção política preferencial foi por um isolamento político da cidade conjugado com o apoio irrestrito de prefeitos e vereadores à lideranças forasteiras que nunca trouxeram um níquel ou uma emenda parlamentar que seja para Garanhuns. As indústrias se foram, os empregos também, a miséria explodiu e os indicadores sociais da cidade das Flores rivalizavam com o de países da África subsaariana. A "Hecatombe'' prosseguiu com desindustrialização, total abandono do homem do campo, criação de barreiras a empreendimentos como o shopping center e à instalação da FAMEG, tudo para que os interesses politiqueiros dos líderes da cidade, que cumpriam ordens dos seus "aliados'' que ocupavam o governo do Estado (a aliança PMDB/DEM/PSDB); estes últimos viam Garanhuns apenas como seu curral eleitoral ocasional. As benesses, como indústrias e grandes obras públicas, foram reservados às bases políticas da referida aliança partidária. Com Garanhuns ficaram as migalhas.

O que aprender com essa nova Hecatombe? É só comparar Garanhuns com cidades de igual ou até menor porte, como Caruaru, Arcoverde, Triunfo, Serra Talhada e Vitória. São cidades que procuraram lançar um desenvolvimento de longo prazo, fortaleceram suas bases políticas para construir bancadas legislativas em Recife e Brasília e correram atrás de investimentos públicos e privados. O resultado é um crescimento econômico que dura até hoje. Para se ter ideia, os indicadores da indústria e agricultura em Garanhuns estão estagnados há anos, enquanto o setor de serviços cresce puxado pelos gastos do governo municipal e especulação imobiliária; já a participação da cidade na geração de riqueza (PIB estadual) em Pernambuco caiu de 1,9 para 1,8 no último ano. Tudo isso se soma ao fato de que, segundo ranking da Folha de São Paulo, Garanhuns é apenas o 3.316º município em eficiência, perdendo para todas as cidades acima listadas e outras que são consideradas "satélites'' da cidade das flores, como Lajedo (1.809º) e Brejão (2.879º). Ou seja: Garanhuns desperdiça, e muito, seus recursos públicos. Quer dizer que um centavo investido em Lajedo ou Brejão rende muito mais em obras, serviços e geração de riqueza do que em Garanhuns - "teoricamente'' uma cidade mais "desenvolvida''. 


Em suma, o 15 de janeiro de 2017 nos faz olhar para o passado para entender o presente. Como antes, uma rixa política entre prós e contrários ao governo estadual (expresso inclusive nas últimas eleições) com o esquecimento o desenvolvimento da cidade em prol de interesses pessoais tanto do grupo dirigente da cidade das flores quanto dos seus patronos em Recife ou Brasília, levou Garanhuns a perder o bonde do desenvolvimento. Já são mais de 20 anos de política bairrista, miúda, voltada para a própria perpetuação, baseada nas famosas "obras sonrisal'' e, à cada 4 anos, a servir de curral eleitoral de fácil predação para os aliados do prefeito de plantão. 

A nossa grande Hecatombe, Garanhuns, é saber que temos tantas potencialidades (terreno fértil, fontes de água, potencial industrial e comercial) e ainda assim nos contentarmos em ser sempre o último cavalo na corrida do desenvolvimento; apesar do pólo educacional que temos, posição estratégica, fartura da terra e vontade de trabalhar do seu povo, existe uma opção política para manter a cidade do jeito que está. Como a placa do shopping center que anuncia o terreno vazio logo atrás de si para todos os visitantes como mais uma promessa vazia, Garanhuns é a cidade do conto de fadas que jamais foi composto. Dessa vez ninguém morreu, exceto os sonhos daqueles que pensaram que Garanhuns um dia seria a terra do desenvolvimento.