domingo, 17 de junho de 2012

O que é pós-modernidade?

                                                           Bem-vindos ao caos da pós-modernidade

Toda ação humana, ao menos em princípio, objetiva um fim. Não fugindo a essa regra, também aqui nos destinamos a um fim, ao refletir, periodicamente, sobre certos temas pertinentes à juventude pós-moderna; aliás, esse é o público-alvo de nossas postagens, não no sentido de reafirmar os valores de tal época histórica, mas de oferecer uma alternativa viável ante a tais princípios que, justamente por seu relativismo, posam de valores absolutos.

Dessa forma, cabe aqui esclarecer-se o termo "pós-modernidade''. Dizem os filósofos que tal signo designa a era na qual o pensamento humano foge aos princípios do modernismo, buscando sua superação; ou, simplesmente, trata-se do tempo posterior à modernidade. Essa, por sua vez, baseia-se no humanismo e no empirismo, tendo herdado, ao mesmo tempo, a tradição filosófica de Platão e Aristóteles e, por outro, assentar-se sob a epistemologia de Descartes e Francis Bacon. A ideia básica é que, por meio de um método de conhecimento, pode-se descrever objetos de estudo tais como eles são e, assim, dominá-los, a fim de utilizá-los para fins próprios da humanidade. Crê-se, sobretudo, na razão instrumental como o elemento que ordena o universo; ou, melhor, a razão é o meio de descoberta do sentido apriorístico da realidade. Tanto Descartes quanto Bacon dizem que, por meios racionais, pode-se distinguir o verdadeiro do falso. O segundo, contudo, diz ser o conhecimento dos fatos empíricos (ou fenômenos da natureza) o único conhecimento possível.

A metodologia científica da modernidade é, assim, baseada na filosofia da consciência- o indivíduo, através da razão, desvela a ordem e o sentido da realidade, que lhe são dados a priori (daí o pensamento ser pressuposto da existência), que é classificada em conceitos abstratos. O sujeito individual, assim, usa a linguagem como mero ente entre o sujeito e o objeto que transmite suas essências. O conhecimento é, assim, uma operação individual e engendrada na mente do sujeito.

O modernismo centra a humanidade, como um todo, como o elemento que dá sentido ao universo e aos valores morais (embora toda a ordem da natureza e o embasamento ético dos valores tenham como pilar a existência de Deus- "o relógio pressupõe um relojoeiro''), e como a destinada a um futuro glorioso (A "Nova Atlântida'' de Bacon), atingido pela plena dominação da natureza. Conhecendo as leis físicas regentes dos fenômenos naturais, o homem poderia manipulá-la a seu favor e, com isso, dominar  a natureza, deixado de ser um mero ser frágil diante de tais fenômenos e, por meio de seu controle, garantir a escalada rumo a um futuro glorioso e utópico. Esse viés filosófico, contudo, via o constante debate entre racionalistas (que acreditavam ser o conhecimento uma dádiva do raciocínio humano, sob hegemonia da dedução lógica) e empiristas (que pensavam ser o conhecimento autêntico oriundo da experiência).

No campo da política, a mesma divergência refletia-se. As novas teorias do Direito Natural, que agora é fruto da razão (mesmo que criado por Deus, que, nesse sentido, não pode alterá-lo) afirmam que a razão humana pode dar ao homem leis naturais, genéricas, universais e imutáveis; os próprios valores morais são universalizáveis. Contudo, enquanto os empiristas, como Hobbes, afirmaram o relativismo moral e creram no pensamento humano como um fenômeno empírico (pensar era movimentar-se, para ele). 

Assim, no campo da moral, os valores continuaram a ostentar um conteúdo imutável e universal (o homem deve libertar-se da natureza). Essa cruzada de libertação e racionalização geral da sociedade (oriunda do método cartesiano, onde qualquer objeto poderia ser dividido em partes, reconfigurado, enumerado da escala mais simples à mais complexa e dotado de ordem) gerou um pensamento político onde o Estado deveria ser limitado pela vontade dos cidadãos e, por outro lado, seus poderes componentes, visando o equilíbrio da unidade política, deveriam ser desconcentrados e sistematizados, para evitar o excesso e garantir a liberdade natural dos cidadãos. A politica era vista como um objeto que, tal como  natureza, teria um equilíbrio a ser atingido pela divisão de suas funções (no caso do Estado, legislar, governar e julgar) em mãos distintas, segundo regras distintas. O Estado liberal, constitucional e assentado na Separação dos três poderes é o reflexo do chamado "projeto iluminista'' sobre a política.

Visando evitar mais divagações sobre a modernidade, escolhi para representá-la seu maior filósofo, o home que hegemoniza o pensamento moderno, resolvendo seus embates teóricos e consolidando seus postulados. Kant.

Kant parte da epistemologia como base da construção de seu sistema de pensamento. Em sua obra, digladiam-se empiristas e racionalistas, sem que se opte por nenhuma de suas correntes; na verdade, a opção kantiana é por um "caminho do meio'': o conhecimento é realmente iniciado pela experiência, mas todo conhecimento só é possivel pela presença de mecanismos racionais a priori de apreensão do conhecimento. Esses mecanismos são anteriores à experiência sensível e reorganizam, na subjetividade do indivíduo, o objeto de estudo, para que este se torne inteligível; o tempo, a causalidade, o espaço, diz Kant, são exemplos de tais mecanismos. O que há é uma verdadeira reconfiguração do objeto (a matéria adquire uma forma inteligível), por meio das formas puras da razão. Aqui, empirismo e racionalismo se fundem em uma unidade dialética. O que é apreendido pelo homem é apenas a aparência do objeto (fenômeno), permanecendo a coisa em si (noumeno) incognoscível.

Seguindo esse mesmo raciocínio, Kant afirma também existir, no campo da moral (e, consequentemente, da política e do direito), mecanismos racionais a priori. Logicamente, pressupõe-se que o homem é livre para realizar suas opções morais, mas apenas opções morais racionalmente desejáveis, que realizem a liberdade apriorística do homem. O homem dá-se ordens que tem como fim a realização da própria liberdade ("imperativos categóricos''), neles embutidas; essas ordens são racionalmente desejáveis quando podem se tornar universais (quando qualquer homem poderia dá-las a si mesmo para realizar a própria liberdade; por exemplo, qualquer homem escolheria, racionalmente, não mentir). Assim, esses imperativos que o homem dá-se são universais na medida em que são racionalmente desejáveis, não portando um conteúdo específico, apenas uma forma que permite distinguir o desejável em termos morais do imoral e indesejável. No direito, essa fórmula se repete, mas em nível coletivo: a população dá ordens a si mesma, objetivando realizar a própria liberdade por meio de imperativos que são fins em si mesmo. Por realizarem a liberdade da sociedade (o conceito de direito), também objetivam permitir a co-existência de arbítrios (a justiça, segundo Kant), sendo, por isso, ordens coercitivas, que podem obrigar os dissidentes a seguirem as definições da maioria; o limite da liberdade é a própria liberdade, onde a invasão de um na liberdade alheia é repreendida por meio da aplicação de sanção. O único direito natural do homem é ser livre. O homem, assim, para realizar sua liberdade, deve organizar-se em um Estado baseado na separação dos três poderes e adequar sua conduta ao que for resolvido pela maioria.

Esses imperativos da maioria se consolidam na forma de leis abstratas, comandos impessoais que se dirigem a todos. Pode-se, admite Kant, legislar sobre tudo e simplesmente dar uma solução para cada caso concreto de dissídio judicial (legalismo).

Por fim, a razão pura (epistemologia) funde-se à razão prática (política, moral e direito), na forma dos mecanismos racionais a priori, que fundam uma moral formalista universal, fundada pelo consenso da maioria. O império desta e sua transformação em centro emanador de imperativos morais é um dos pilares da modernidade, ao lado da dominação da natureza pela razão e da filosofia da história progressista em Kant, no fim, a humanidade derrotará o misticismo e se dirigirá a um futuro de liberdade e justiça, garantida pelo domínio da natureza.

As teorias positivistas, contudo, retomam o naturalismo empirista e "engavetam'' Kant até quando os pensadores europeus o "redescobrem'', na vigorosa luta contra a semiótica e o existencialismo.

Kant levou ao auge a Modernidade. Depois dele, teorias filosóficas se insurgiram contra a hegemonia do projeto iluminista, em uma rebelião emanada de três centros distintos: a filosofia de Nietzsche, as teorias da linguagem e a fenomenologia existencialista. Isso, claro, sem citar a crítica marxista à modernidade (considera-se aqui que Marx é um continuador do projeto iluminista, aplicando todos seus postulados).

Apesar da coisa em si ser incognoscível, a realidade é a reconstrução do objeto; é aparência. O desejo de ver as coisas como elas realmente são- como no filme "Matrix''-, contudo, ainda permanece no pensamento positivista, vigorosamente combatido pelo pós-modernismo.

Tais teorias tem em comum a ideia básica de que é impossível descrever o objeto de estudo tal como ele é, já que sua reconstrução mental é uma verdadeira criação dele. Cada homem, individualmente, é o centro significador do universo e da moral, e é verdadeiramente livre, no sentido em que pode dar-se quaisquer valores sem qualquer limitação. A razão é apenas um discurso dentre os possíveis e a dominação da natureza não guia o homem rumo ao progresso necessariamente (podendo destruir a humanidade, como ocasionado na ascensão do nazi-fascismo e da bomba atômica).

A vontade da maioria perde status após ela mesma suicidar-se, na década de 1930, ao referendar a instalação de regimes totalitários. O homem deve existir no mundo e, a partir de suas escolhas, construir sua própria essência.

Por outro lado, a moral tradicional é vista como um estorvo escravizante, imposta por escravos inferiores como meio de consolação ante suas desgraças; imposta aos ricos, que ignoram a "lei da seleção'' da natureza, onde os melhores devem esmagar os mais fracos e realizar todas suas vontades, pelos pobres do passado. Mais que isso, a moral cristã-platônica herdada por Kant (que é visto como um fraudador da liberdade; se tenho que escolher o que é racional para os outros, não para mim, como serei livre?) não possui mais um conteúdo definido e imutável ou mesmo uma forma imutável, componente de um mundo metafísico, mas como simples falácia. 

Nietzsche diz que o homem deve libertar-se da moral metafísica e irreal dada pela vontade da maioria e fundada em Deus para se tornar a verdadeira fonte dos valores, do conhecimento e da moral, tornando-se um "super-homem'', ao negar a realidade (niilismo) e externalizar toda a sua natureza (o gosto pelos prazeres carnais, injustamente repelidos pela moral cristã; a competição e vitória dos mais aptos, sem elevar-se ao mesmo nível dos ricos os "humildes''). Ou seja, faça o quiser, siga seus instintos, entregue-se à irracionalidade! Com Deus "morto'', o fundamento de obrigatoriedade da ciência (que pressupõe ser Deus o ordenador da realidade que o método científico desvela, em Descartes) e dos valores morais some, deixando o homem livre para seguir suas próprias vontades.

A redução do mundo à linguagem teve, por outro lado, consequências devastadoras. Dizem os semióticos de que a linguajem não é um terceiro ente que se interpõe entre o sujeito e o objeto, mas a condição de possibilidade do conhecimento- é ela quem constrói, subjetivamente, o mundo, sendo sua função descritiva uma mera possibilidade de uso. É o uso da linguagem em seus contextos específicos, em combinações convencionais, que constrói a comunicação e mesmo o mundo ao redor do indivíduo. Na verdade, o próprio mundo é reconstruído na mente do indivíduo a partir da interpretação dos jogos da linguagem- o ser, como em Kant, permanece incognoscível, enquanto o ente, ou para Husserl, o fenômeno, é o que é interpretado pelo homem. O último vai mais longe e diz que a essência dos objetos está na mente do indivíduo, em sua interpretação subjetiva.

Alguns dizem que o mundo é ininteligível ou que o conhecimento é impossível por causa dos defeitos da linguagem. Por outro lado, a história humana não é governada por leis específicas, muito menos a sociedade- a realidade não possui um sentido dado a priori, e a humanidade marcha em sua sina em meio ao caos.

Na pós-modernidade, filha de tais pensadores, não existem valores absolutos dados pela vontade da maioria, a ciência não pode descrever objetos como eles são (pela linguagem ser vaga e ambígua, portadora de vários significados- e, essencialmente, pelo objeto ser reconstruído pelo observador, segundo suas preferências subjetivas), a dominação da natureza pode conduzir ao desastre, a velha moral é uma forma de escravização, a verdade é individual, a essência é determinada pela existência. Busca-se cada vez a mais completa individualização, onde as verdades são íntimas de cada um. O homem enquanto ser individual dá sentido ao mundo e o conhece de forma totalmente diversa dos demais, não podendo comunicar essa diferenciação por causa do caráter incognoscível se sua subjetividade. Não existe sentido a priori, valores a priori ou mesmo vontade da maioria. As ilusões da modernidade, com sua filosofia da história progressista, são belas relíquias do passado, e a história caminha irracionalmente, em um mundo caótico. 

Reconheceu algo em comum? Sim, a pós-modernidade é o nosso mundo. Um mundo que dissolveu os valores abstratos e genéricos, que destruiu as verdades absolutas e se esforça para tornar cada um senhor absoluto de sua vida. Talvez o único valor absoluto seja a determinação do homem somente por ele mesmo. Há um igualitarismo total, como já deve ter percebido.

O homem vitruviano, símbolo da modernidade, é uma representação cabível à pós-modernidade: o homem como o centro significador do universo, mas, dessa vez, sem verdades, de qualquer ordem, generalizantes

O que pouco se discute, em Filosofia, é a relação conveniente entre o sistema pós-moderno e o atual sistema econômico neoliberal e globalizado. A única determinação real que o homem dá-se é para determinar uma pauta individual de consumo, o que esconde a verdade inconveniente de que o próprio homem torna-se um produto a ser vendido. 
A verdade é que pouco importa se não podemos descrever a realidade tal como ela é, pela impropriedade da linguagem. Pouco importa se o significante gera um significado convencional e não válido por si, ou que cada homem é o centro significador do universo. A verdade inconveniente escondida pelos "profetas'' do pós-modernismo é que suas ideias, como o modernismo, também não respondem as dúvidas humanas e vêm se tornando um desastre cada vez maior, engendrando uma sociedade cada vez mais violenta, desigual e destrutiva.  

O complexo da pós-modernidade, com suas glorificações da liberdade existencial, encaixa-se perfeitamente em uma realidade sócio-econômica onde uma única Lei universal ainda é válida e necessária ao sistema: a Lei do Mercado, que é a norma da competição. Muito ao estilo de Nietzsche, não acha? O mesmo homem que exortava os "superiores'' a desprezar a moral cristã e esmagar os pobres, se esse fosse seu desejo. Em diversas obras, o bom filósofo sifilítico denominou tal ideia "lei da seleção'', interpretada pelos nazistas como uma uma seleção racial; desnecessário dizer que  figura de Nietzsche foi glorificada na Alemanha hitlerista.

O superindividualismo da pós-modernidade faz o homem ver a si mesmo como uma ilha. Uma ilha que, sem relação com as outras, morre asfixiada. Por outro lado, a pós-modernidade revela sua rejeição total à democracia, resultando em um verdadeiro vale-tudo onde as vontades individuais se sobrepõem e as relações sociais, por isso, se desagregam (a lei da seleção nietzschiana). A preferência pela realização dos desejos carnais (o que é natural na espécie humana, como Nietzsche notou, dando-lhe o epíteto de "lei natural'', a lei do sexo, injustamente limitada pela moral cristã-platônica) se externaliza no consumo- o superhomem pós-moderno é, na verdade, um escravo de si mesmo, na forma de seus prazeres, e do sistema que acaba por sustentar quando realiza tais prazeres.

Os valores se materializaram em objetos de consumo, um feito inédito na história humana!

Nesse ponto, a grande charada da pós-modernidade é que vive-se em um sistema que garante a liberdade moral de todos, mas apenas de forma aparente, visando condicionar, por meio da mídia e de outros meios, cada homem rumo à realização do prazer, por meio do consumo, associado à felicidade e à inclusão social. Valores morais genéricos são danosos à essa "lógica'', porque têm o papel de limitar as possibilidades de realização do prazer, que se encarna da Lei do Mercado. Assim, aparentemente livre, o homem pós-moderno fica preso na gaiola do sistema neoliberal capitalista, pronto para ser mais um objeto de consumo do próprio sistema. Nada melhor para dominar os escravos, do que dizer-lhes que eles são livres. 

Ao lado, a figura representa a individualidade do ser humano diante dos seus semelhantes; livre, ao passo em que todos parecem iguais, sente-se autorizado a oprimir seus semelhantes e "forçá-los'' a serem livres. A multidão, contudo, caminha a um único fim: a alienação coletiva nas mãos do sistema autosuficiente, ao buscar a realização de seus prazeres

Como romper esses últimos grilhões? Como libertar o homem se si mesmo, da ditadura dos prazeres que, na verdade, esconde tirania de um sistema econômico que impõe os valores- ou desvalores- pós-modernos como absolutos?

Discutir alternativas à pós-modernidade é um dos objetivos das reflexões que fazemos aqui. E é o que esperamos fazer, daqui para a frente, com sua participação. E vamos lá.

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