sexta-feira, 27 de abril de 2012

O Jusnaturalismo internacional ataca outra vez


Nessa última semana, o Tribunal Penal Internacional, após mais de 60 anos, condenou um ex-chefe de Estado por violações aos direitos humanos. Esta sentença, diz-se, mais que garantir os direitos humanos como verdadeiros princípios gerais do direito, superiores, assim, aos direitos nacionais, abre uma esperança rumo à sonhada ordem jurídica internacional: desde Grócio até Hans Kelsen, o sonho de um direito internacional, assentado em valores democráticos, embala as experiências de instalação de tribunais internacionais. Talvez Charles Taylor tenha realmente sido um criminoso, golpista, assassino e estuprador, mas o que realmente está por trás de uma decisão como essa? Vamos, pois, à História, essa professora severa e pálida, onde estão as respostas para as dúvidas do presente.

Quando da afirmação e centralização das monarquias europeias, vigorava a forte crença em um direito natural emanado de Deus e exercido pelo príncipe, o lugar-tenente de Cristo na Terra, assentadas em São Tomás de Aquino. Todavia, dois problemas práticos decorriam dessa análise: qual príncipe, dentre os dezenas, é o verdadeiro e legítimo representante de Deus (já que o poder político é dado por Deus- Omnes potestas ad Dei)? E, além disso, qual é o conteúdo desse direito natural válido para todos, em todo tempo e lugar? Essas duas indagações legitimavam guerras perpétuas entre os reis pela soberania geral, já que cada um acreditava ter direito natural ao poder. O problema real é que o regnere, ou jus imperii, a própria soberania, engendrada teoricamente por Jean Bodin, ainda preservava o velho ranço romano, o de que o imperator (aquele que detêm a supremacia militar) exerce o poder de ordenar a sociedade; ordenar este que consiste em regular, ou, numa palavra, criar direito. Assim, associando a doutrina romana da supremacia militar ao teocratismo cristão, chegou-se à conclusão de que o poder de "desvelar'' ou revelar o direito natural, e, a partir deste, criar o direito para toda a civilização ocidental (considerada a "jurisdição'' do detentor do regnere), derivava da vitória militar: o escolhido de Deus para governar é o mais forte, e, por sua coroa decorrer da vontade divina, ele estaria apto a, através dos princípios do direito natural, revelados pela razão (a qual era exercida pela clero...), constituir o direito positivo, destinado a impor aos súditos um comportamento desejável. 

Essa derivação do direito positivo do direito natural, através da razão, não excluía uma fundamentação última em leis divinas (estas, inacessíveis, apenas seriam conhecidas na medida em que associadas às leis naturais, os princípios do direito natural), absolutas, "normas fundamentais'' do sistema. Dessa forma, há uma associação necessária entre o detentor da força militar (imperium) e as leis positivas (ordens do rei), que buscam sua fonte de legitimidade em princípios abstratos e racionais, derivados da vontade divina. A vontade do rei, assim, se fundamenta, em última instância, na vontade de Deus, revelada pela Igreja: se é possível saber o desejo divino através da razão, não é necessário ouvir Deus através do povo (Vox populus, vox Dei). Excluí-se, assim, a população das decisões jurídicas.

A disputa dos reis pela soberania no Ocidente, e, em decorrência, pelo poder de impor o que é ou não o direito, buscava, por fim, estabelecer uma ordem jurídica internacional, com uma fonte de poder e de direito, regulado por princípios jusnaturalistas. O problema, como já dito, é a indeterminação do príncipe, já que nenhum rei conseguia dominar os demais e, em decorrência desse vácuo, não se saberia o jus gentile, o direito internacional que se tornaria o único e verdadeiro direito. O leitor experiente, que acompanha as notícias internacionais, já deve ter associado a disputa pela soberania da Europa moderna com a que ocorre hoje, a qual teve como última manifestação a condenação de Taylor, ex-ditador da Libéria, por crimes contra "direitos fundamentais'' estabelecidos em complexos jurídicos internacionais. E os problemas práticos são os mesmos: quem diz, na atual ordem política mundial, o que é direito internacional, superior, hierarquica, polica e moralmente aos ordenamentos nacionais? Qual é o conteúdo desse direito internacional?

Para isso, temos de voltar à algumas reflexões históricas. Em 1648, pelo tratado de Westfália, os reis finalmente pararam de reclamar a posse de uma soberania erga omnes e única, para reconhecer o poder jurídico de cada rei em determinar o direito nacional. Reconheceu-se a soberania nacional de cada reino, ainda repousante na força militar de uma dinastia escolhida por Deus e guiada pela Igreja. Essa convivência entre soberanias internas distintas continuou até a ascensão de Napoleão, após a Revolução Francesa. Esse evento possui, então, uma característica fundamental em nosso pequeno estudo: aqui, o direito natural, fonte da legitimidade das monarquias, é utilizado contra ela. As novas normas superiores são, dessa vez, determinadas pela vontade popular, exercida, por sua vez, através de institutos básicos e universais, como o direito à liberdade, igualdade e fraternidade. Esses direitos naturais, não acessíveis pela razão, mas jorrantes desta, são apriorísticos e inatos à toda a espécie humana, o que autorizou, filosoficamente, o império francês napoleônico a defender o novo regime liberal e, ademais, expandi-lo à toda a Europa. O Exército imperial, então, legitimava sua ação agressiva como uma efetivação dos direitos inatos do homem, ou seja, existem direitos imanentes ao homem, que superam as fronteiras nacionais, nos mesmos moldes da velha teoria tomista. Mais uma vez, aquele que detêm a força militar impõe o que é direito, mesmo que olvidado na vontade popular. Essa tentativa acobertada de impor uma única soberania foi, todavia, derrotada, faticamente, por seis coalizões seguidas das potências absolutistas contra Napoleão.

O liberalismo e mesmo o jusnaturalismo, assentados em Kant e Rosseau, asseguraram, por sua vez, a vontade popular como legítima depositária da soberania, do poder de fazer as leis de uma sociedade. A vontade geral, em Rosseau, e a vontade da maioria, em Kant e Locke, passam a determinar o direito. Todavia, Kant vai mais longe: o direito, como modalidade de imperativo categórico (ordens emanadas do povo que tem como fim seu cumprimento, não servindo de meio para outra finalidade que não si próprias), é eminentemente formal. São ordens sobre comportamentos racionalmente desejáveis (não mentir, por exemplo), aqueles aos quais os indivíduos desejam que se tornem universais. Como um ser humano, qualquer que seja, não deseja, racionalmente, o que não é desejável (uma lei que permita a mentira ao invés de proíbi-la), todos os homens desejaram ordenar, a si mesmos, os mesmos comportamentos e condutas desejáveis. Essas ordens, dadas pelo povo a ele mesmo, permitiriam concluir que o direito estabelecido pelos povos pode chegar às mesmas normas, ao menos de forma geral, se os indivíduos puderem estabelecê-las autonomamente (vontade da maioria), a partir do que é racionalmente desejável, permitindo sempre a coexistência dos arbítrios individuais (a justiça kantiana); não há um conteúdo estabelecido a priori, mas uma possibilidade de, pela razão, os homens se guiarem, juridicamente, mais ou menos da mesma forma. Isso, claro, se procederem de forma racional... o próprio Kant ensejou que, essa obediência ao direito natural formal, às condutas desejáveis, desembocaria numa situação em que todos os Estados, obedientes a essas normas, soterrariam os conflitos internacionais. Estados estariam autorizados a intervir em outros que não respeitassem uma forma de Estado não-belicosa...

O casamento entre esse suposto direito internacional kantiano com os direitos naturais oriundos de Locke e Rosseau foi inevitável. A democracia, os direitos da liberdade e igualdade se tornaram "racionalmente desejáveis'', e constituíam o conteúdo histórico do direito natural capaz de assegurar a coexistência de arbítrios. Essa combinação fatal legitimou as empreitadas imperialistas, que, muito humanitariamente, diziam libertar africanos e asiáticos da tirania, realizando os direitos naturais e racionalmente desejáveis de liberdade, igualdade e fraternidade, permitindo ainda ao povo "liberto'' determinar-se democraticamente. Desnecessário dizer que essas decisões dos países invadidos deveriam se dar conforme o que é racionalmente desejável. Essa ideologia liberal assentava-se, sobretudo, na unicidade da razão, que, universal, válida para todos (já que até mesmo os mecanismos de apreensão do conhecimento são universais, asseverou Kant), tinha como fim os mesmos direitos para todos os homens. E, claro, um país que possibilitasse a outro desfrutar desses direitos não estaria realizando nada mais que a vontade geral e o direito natural, além de permitir o fim dos conflitos entre os Estados (a" paz perpétua'' tão sonhada por Kant).
Tribunal Penal Internacional

Como todos sabemos, o fim das guerras pela disseminação do direito natural não ocorreu, e, pelo contrário, os piores conflitos militares se deram pela disputa dos mercados consumidores. Todos tentaram, longe de permitir às populações dominadas a auto-determinação democrática com base nos direitos fundamentais inatos ao homem, escravizar, vilipendiar e, por fim, dilatar suas soberanias aos países dominados. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os países vencedores acabaram por adotar uma última sugestão de Kant, criando um órgão jurisdicional internacional para dirimir conflitos. Todavia, a mesma contradição permaneceu: para resolver conflitos entre Estados e dentro de Estados-  como nos casos recentes da Líbia, Guiné-Bissau e Síria-, será necessário apelar inevitavelmente à força militar. No fim, quem estabelecerá as normas suprapositivas autorizantes da intervenção- o direito de fato, "natural e racional''- serão os detentores do poder militar, cuja vontade se fundamenta na de seus cidadãos. A voz de Deus agora se exerce através do povo, como na antiga passagem bíblica, mas, alerte-se, de um ou poucos povos: aqueles situados acima do trópico de câncer. Daí que, questionando o liberalismo, Carl Schimitt tenha lembrado que muitos dos conceitos políticos da modernidade são meras repetições das ideias teológicas de legitimação, apenas travestidas de laicismo. 

Com o Tribunal de Nuremberg e a fundação da ONU- e, posteriormente, do Tribunal Penal Internacional- a alternativa kantiana e, claro, kelseniana (Hans Kelsen defendia ideias semelhantes as de Kant), o mundo continuou a emular as velhas teorias oriundas de Roma e refinadas por Kant. Agora, todavia, após a globalização, o poder soberano pode ser, fato, multiexercido, embora um grupo de países- o G5- tenha se arrogado ao direito de fiscalizar o cumprimento de certos postulados- estabelecidos por eles mesmos- pelos outros países, chegando a intervir nos que não se comprometem com a democracia, direitos humanos etc. Evidentemente, uma verdadeira falácia: o parâmetro para distinguir os países que respeitam ou não o ordenamento internacional (Declarações de direitos, diversas...) é apenas o alinhamento dos países periféricos às diretrizes dos detentores do poder econômico e militar. Caímos na velha concepção romanista, onde o direito natural e internacional é determinado por quem tem a força. Nada mais fático, nada mais positivista.

Enfim, Charles Taylor, condenado por crimes de guerra quando presidiu Guiné-Bissau, ilustra bem esse processo. Enquanto esteve no poder, promoveu todas as chacinas imagináveis, beneficiado pela inércia do restante do mundo, mais preocupado em "intervir'' no Afeganistão e no Iraque, para garantir a segurança (um direito fundamental, diziam) do Ocidente e, sobretudo, libertar tais países de tiranias cerceadoras da democracia. O jus imperii, embora mitigado, concentra-se nas mãos desse grupo seleto de países, que determinam o que é ou não democrático: a Libéria, onde genocídios, estupros em massa escravidão aconteciam diariamente era considerado um "regime democrático'', ao passo em que o Afeganistão, e a Síria atual, não. Esse simples fato comprova a determinação do direito por interesses materiais e, de forma alguma, metafísicos e abstratos, como o quis Kant, que apenas acabam por servir de disfarce às verdadeiras intenções dos detentores do poder econômico. A abstração esconde o que está por trás como um truque de mágica oculta a atividade de um batedor de carteiras...

Só agora, talvez como forma de afirmar essa doce ilusão do direito internacional como direito natural destinado a apagar os conflitos entre as nações, Taylor foi punido, depois de anos longe do poder e das negociações com grandes joalherias ocidentais. Como Slobodan Milosevic, foi condenado quando já não oferecia perigo e quando passou a causar prejuízos às potências dominantes. Depois do teatro ocorrido, findado com as imagens de um Taylor cabisbaixo ao ouvir sua sentença e fogos de artifício sendo lançados mundo à fora, setores da mídia- e mesmo intelectuais- chegaram a acenar com a velha pretensão sobre o direito internacional hierarquicamente superior a cada ordenamento nacional...

Por isso, quando se falar em direitos naturais ou fundamentais, suprapositivos, superiores a qualquer ordenamento jurídico, que autorizam intervenções armadas os países que os respeitam contra os que violam as normas internacionais, não se esqueça: tais normas não possuem conteúdo a priori, sendo determinadas por quem possui o domunium ou imperium, a força militar (coercitiva) que hoje se expressa em termos econômicos. Aquele que pode, ordena, cria o direito supremo, pelo qual legitima sua beligerância e justifica a satisfação de seus interesses mesquinhos a custa dos países mais fracos, seus súditos, que ainda tem de adequar seu direito interno às ordens do G5. Isso inclui dizer: a democracia liberal (se é que é possível), a livre entrada e saída de capitais, a desregulamentação econômica e a "integração econômica'' com os países centrais (a "globalização'') são meios de aferir a "adesão das nações às Declarações de direitos democráticas''. As normas de tais institutos são palavras-ocas, cujo conteúdo é imposto por quem tem a força... dito isto, concluo aqui que, como mera justificativa, os direitos naturais e impostos anti-democraticamente vem cumprindo o mesmo papel que o exercido quando em Roma ou na modernidade dos reis absolutos. Autorizar que os fortes dominem os fracos.

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