segunda-feira, 22 de julho de 2013

As sandálias do pescador


"Enquanto estávamos com ele, nosso coração não ardia?'' ou "cor ardum nostrum'' é a conhecida expressão de surpresa que os discípulos de Emaús cunharam após ouvir as palavras de Jesus, depois de sua ressurreição, consolando-os da decepção ocasionada por sua aparente morte na cruz. Talvez muitos daqueles que acompanharam as primeiras palavras de gestos do Papa Francisco tenham sentido algo parecido, à medida em que seu discurso de apresentação, como a onda poderosa que brota do mar pacífico, despia-se cada vez mais da timidez e alcançava os níveis de uma brilhante entonação, sem, contudo, deixar de lançar mão de sua conhecida simplicidade. Muitos, sim, das ovelhas da fé católica estavam como que os discípulos de Emaús, tristes, abatidos, pouco inspirados com a vinda de Sua Santidade ao Brasil; muitos desdenhavam de sua chegada, tal como os discípulos não creram de pronto na ressurreição de Cristo. Mas bastou sua presença, seu sorriso bondoso, sua imensa humildade, sua ternura e, acima de tudo, suas palavras calmas, embutidas da imensa profundidade característica dos discursos simples, para que todos os ouvintes sentissem uma energia pacífica a brotar de sua figura apascentadora e, logo mais, seus corações arderem. 

Ainda mais quando, educadamente, pediu acesso ao coração do povo brasileiro, demonstrando ter ciência da natureza "cordial'' de nossa cultura, como sinônimo de emotividade - no sentido cunhado por Sérgio Buarque de Hollanda. Cumprimentou as autoridades presentes, e logo foi ao âmago da questão: veio ele para, como Cristo fez, dar nova esperança aos jovens de todo o mundo e incutir-lhes o espírito de pregadores do Evangelho, demonstrando que todos podem ser acolhidos pelo abraço do Cristo. Como sábio ancião, reconheceu a imensa e invencível força dos jovens nas questões da fé, que "botam fé'' em Cristo, e vice-versa... lembrou que não só a eles se dirigirá, mas a todos os seus. E foi a partir de uma bela metáfora que transmitiu a primeira de suas lições: a juventude é a menina dos olhos da sociedade, a impressão de como esta vê a si mesma - significa dizer que ela só vê a juventude. Uma sociedade que vê e deseja uma juventude saudável também o é, e daí o cuidado que se deve ter com os olhos: uma sociedade que meramente enxerga defeitos na juventude é um corpo social cego, que não vê, através desses jovens, a luz do progresso, da oxigenação, do entusiasmo, do futuro. Daí a preocupação com o cuidado desses jovens, e, nesse trecho em particular, Sua Santidade se mostrou muito sensível às recentes demandas da juventude nacional: esta precisa de saúde, educação e segurança, mas não apenas isso. Quesitos imateriais, morais, como a ética e o zelo pela justiça. Enfim, todos os elementos que constituam uma pedra firme no qual os jovens possam construir, livremente, suas vidas. A autonomia, para decidir o próprio destino. Concluiu lançando o abraço da cátedra do pescador a todo o país que lhe acolhe. Nunca a ordem de Jesus a Pedro fez tanto sentido: "farei de ti pescador de homens'', pois mesmo os mais ferinos críticos da visita papal foram cativados pelo magnetismo de um homem que, em tudo, espelha a singeleza de um santo e a simplicidade de qualquer senhor simpático que encontramos nas ruas, diariamente.

Agora, mais do que nunca, o coração do Brasil arde. Arde por um missionário que veio relembrar ao maior país católico do mundo o real sentido de ser cristão: unir, em lugar de segregar; amar, em lugar de odiar; perdoar, em substituição às eternas vinganças. Em uma sociedade cujas demandas sociais explodem, vocalizadas pela juventude, as palavras de humildade e simplicidade de um homem que carrega nas costas, como ma cruz, 1,2 bilhão de fieis, tocam profundamente um povo que, infelizmente, ainda está agrilhoado os velhos vícios do passado, vícios estes que tanto geram a morte e o sofrimento. A chegada do Papa não ressuscitará os jovens mortos pelas balas perdidas e não-perdidas, não transformará nossos matadouros públicos em hospitais dignos, não extirpará os vergonhosos índices de miséria a analfabetismo da nação; mas, sobretudo, suas palavras poderão ter o condão mágico e fantástico de fazer o brasileiro voltar-se, com compaixão, ao seu próximo em necessidade e, enfim, realizar uma revolução espiritual em cada indivíduo. Porque é assim que as grandes transformações ocorrem: muda-se primeiro as pessoas, e essa alteração espiritual provocará uma brusca repercussão material, através do seguimento do belo mandamento do "ame ao próximo como a si mesmo''. É a partir daí que Francisco ensinará que, tal como na multiplicação dos pães, a divisão do pouco que cada um de nós tem pela coletividade satisfará a todos e ainda sobrarão bens em fartura. Questões como o uso de camisinhas, células tronco, anticoncepcionais e demais, diante da universalidade de tal mensagem, chegam a tornar-se supérfluas: para o bom cristão, o que importa é amar, incondicionalmente, e doar-se ao próximo, sendo o último, o servo de todos. E, mais que nunca, o papa faz jus ao seu mais nobre título. O de servo dos servos de Deus.

Enfim, a figura de um papa humilde e caridoso lembra muito o personagem criado por Morris West, no romance "As Sandálias do pescador'', no qual um cardeal eslavo, depois de décadas preso pelo regime soviético, é escolhido como papa, em um conclave improvável - figura muito mais próxima, contudo, ao papa João Paulo II. O Papa Kiril de West enfrentou, com doçura e paciência, os vícios de uma Igreja assentada em vaidades e conflitos de egos, dividida entre ultraconservadores de coração pétreo e os mais ousados modernistas, e logrou superar essas divisões meramente banais em prol do bem maior da fé. A mesma missão espera Francisco, que já iniciou um grande trabalho de reforma da poderosa Cúria Romana, sem jamais deixar de dar ouvidos a ambas as correntes e, pacientemente, reconstruir a unidade da Igreja. E foi a partir do momento em que as sandálias do pescador beijaram o Brasil que se adentrou a uma fase decisiva dessa missão, com a tão esperada reconciliação entre os adeptos da teologia da libertação - perceptível na própria CNBB- e o papa dos pobres. Que seja a partir do Brasil que o papa reconstrua a união da Igreja em prol de sua cabeça: Jesus Cristo.

Bendito o que vem em Nome do Senhor!