sábado, 14 de abril de 2012

Quase deuses?


Desde a antiguidade tardia, o homem, com vistas a explicar os fenômenos naturais e morais, gerou, mediante consensos sócio-históricos, firmados pela tradição, abstrações controladas. Essas abstrações, chamadas de "deuses'' ou espíritos xamânicos, guardavam estreita relação com o ciclo natural do nascimento, da vida e da morte, além de uma possível ressurreição. No fim, os homens esqueceram que foram os criadores de tais figuras que, então, adquiriram vida própria, um sentido por si e uma ontologia absoluta e dogmática; o nascimento da civilização organizada, nas margens dos grandes rios, acabou gerando a antropomorfização dessas abstrações na figura do governante divino: os faraós, basileus, Huangs. As autoridades políticas, claro, apropriaram-se das abstrações culturais para nelas materializar seu poder, firmando um pressuposto inquestionável de legitimidade para sua manutenção no poder. Na verdade, tanto as abstrações anteriores quanto os governantes teocráticos possuíam o mesmo fundamento filosófico e cultural de legitimidade e funcionariedade: o poder de decidir sobre a vida e a morte daqueles pobres mortais que lhes estavam sujeitos.

Passaram-se as eras, e o poder político continuou fundado em crenças metafísicas religiosas, até quando um bando de baderneiros, na França de 1789, resolveu dar um basta à milenar teocracia e instituir um regime político separado das formas religiosas. Ao menos em tese. Vejamos o porque.

Carl Schimitt pode ser considerado o maior crítico não-marxista do modelo liberal, laicizante e capitalista implantado pelos revolucionários franceses. Seu alvo foi justamente o embasamento filosófico de legitimidade do liberalismo no consentimento dos governados e na capacidade de autonomia dos cidadãos: Schimitt acreditava que essas ideias eram meras ilusões, que apenas transladavam da religião o fundamento de exercício de poder da autoridade. Um fundamento teológico, só que dessacralizado. Ou seja, se Deus não mais é a fonte por meio da qual o Estado embasa seus atos, o atributo divino de Deus passa à "vontade geral'', ou à "vontade nacional''. Em suma, uma abstração substituiu outra abstração, mas preservando o mesmo fundamento dogmático: a vontade racional da maioria possui ontologia, sentidos e valores próprios, inquestionáveis. Em suma, Deus agora somos nós, o povo, para o liberalismo, no sentido em que estabelecemos o que é certo ou errado. Mas isso acarreta que, como dito, esse truque retórico apenas legitima as decisões políticas tomadas pelos verdadeiros detentores do poder, os proprietários e banqueiros, que justificam externamente suas medidas afirmando serem estas provenientes da "vontade geral'' empírica, existente por si. Só mais uma abstração criada para dominar, é claro. 

O problema é que nós, os pobres brasileiros do terceiro mundo, copiamos há muito esse Estado liberal dos europeus. Só que, de início, fundimos religião e política, pela Constituição de 1824: o imperador detinha poderes quanto à religião (aprovar a aplicação de bulas papais ao território nacional) e os padres católicos possuiam status de funcionários públicos. Com o golpe republicano, esse Estado semi-teocrático laicizou-se, mas o fundamento de poder continuou a fazer referência à uma abstração absoluta, a vontade da maioria (dos coronéis, é claro). O advento de Vargas substituiu os princípios liberalóides pela vontade da nação, representada pelo seu mandatário (o presidente da República). "Deus'', o ordenador dos valores, do certo e do errado, passou a ser, formalmente, o populacho brasileiro. Em suma, os conceitos e ideais políticas são conceitos teológicos dessacralizados. 

Depois da ditadura e da redemocratização, e principalmente nos últimos anos, um órgão estatal em particular vem ascendendo rumo ao panteão brasileiro. Depois do imperador, da vontade da maioria, da nação e dos militares, um grupo de onze super-cidadãos, fundados nos seus "poderes de interpretação da constituição'', estão se tornando os emissores do certo e do errado, da justiça e da injustiça. Por fundarem os axiomas da sociedade brasileira, apenas validados na Constituição, esse órgão vem ocupando a velha função dos teocratas antigos. Estou falando do Supremo Tribunal Federal.

Os deuses mortais de Roma: Trajano, Marco Aurélio e Antonino Pio. Seu poder fundava-se no exército, no latifúndio escravocrata e na exploração das províncias. Sua legitimidade decorria da divindade do imperador

E nisso falo porque, finalmente, o STF resolveu avocar para si a determinação de quando começa e termina a vida. Na última semana, os ministros decidiram que um indivíduo sem cérebro não tem potencialidade para a vida- apesar de possuir funções vitais (um non sense, no mínimo). Para tal, os novos quase-deuses "inspiraram-se'' em uma analogia "simples'': se um indivíduo que sofre morte cerebral é considerado juridicamente morto, alguém que jamais desenvolveu um cérebro jamais esteve vivo. Não se pode "dar a luz à morte'' e permitir o sofrimento "desnecessário'' das mães. Ou seja, o STF acaba de determinar que a vida humana só surge quando há cérebro no feto.

Vejamos porque isso consiste em arbitrariedade. Um indivíduo que sofre morte cerebral simplesmente tem desmontada sua organização biológica- porque sua espinha dorsal, que concentra os estímulos nervosos, também morre junto com o cérebro. Ou seja, seus órgãos perdem as orientações nervosas, que se pulverizam. É como se cada órgão vivesse por si: já não há mais alguém naquele corpo. No caso de anencéfalos, é diferente: há um tubo neural que concentra os estímulos nervosos. Ou seja, um anencéfalo sente dor, embora não tenha cérebro para decodificar os sinais nervosos e associa-los a uma reação. A dor é localizada, fragmentada, mas há dor. Por outro lado, se consideramos o anencéfalo pela sua estrutura genética, ele é humano- e vivo, sendo está vida derivada de vidas humanas. Logo, ele se enquadra na lei como "nascituro'' (aquele que está por nascer), dada sua potencialidade, nem que seja mínima, para a vida. Mesmo que esta seja de 0,1%, resguarda-se assim o direito a ter direitos do nascituro. Em suma, o direito potencial de nascer. Nossos semi-deuses, pelo contrário, tomando uma decisão política, apenas justificaram, e muito mal por sinal, a preferência de certos grupos pelo aborto de anencéfalos. Faz parte do jogo político, é claro, desenvolvido pelo STF conceder decisões desse tipo e agir de forma ainda mais autoritária e arbitrária em outras, como na convalidação da Lei da Anistia, a Revogação da Lei de Imprensa etc., dentre outras barbaridades jurídicas. 

Agora, ao determinar quando começa a vida e autorizar o assassínio de nascituros, o STF dá um passo indispensável na sua deificação: a decisão sobre a vida e a morte. Os faraós antigos, os reis absolutos, os jusnaturalistas do liberalismo, todos legislaram sobre o inicio da vida e da morte: só existem aqueles que estão registrados nos autos do Estado; só vivem aqueles que nascerem; e, agora, só estão vivos aqueles que possuem cérebro. Além de emitir os valores sociais básicos, a partir de princípios abstratos construídos pelo arbítrio e por interesses mesquinhos, o STF agora se configura como a grande entidade responsável pela tutela do povo brasileiro, praticamente determinando a ética nacional. O papel antes atribuído a entes divinos de validar e emitir valores e normas morais, reguladores de toda a vida do indivíduo, inclusive do momento em que algo está vivo e morto, hoje materializa-se no STF. 

Nossa cultura foi construída, desde o tempo das cavernas, utilizando abstrações, os deuses, como justificantes do estado de coisas; é uma necessidade cognitiva da própria cultura. Essas abstrações foram apropriadas pelos poderes políticos, que com ela legitimaram-se; basta dizer que precisamos, na sociedade, de princípios absolutos que legitimem o status quo. Esses princípios encarnam-se hoje no STF.

Mas, como nos velhos regimes, nossa Corte deificada cumpre um papel determinado. Se o Estado liberal e sua vontade da maioria absoluta escondiam o poder econômico, verdadeiro comandante da política, o STF semi-divino possui uma função simples: a de ocupar as lacunas da inércia dos outros poderes da República. O Legislativo legisla, mas 90% de seus atos versam sobre matérias econômicas; o Executivo governa antes mais os interesses do agronegócio, da indústria e do grande capital financeiro. Alguém tem de ficar com a incômoda tarefa de resolver os conflitos sociais, legislar e ainda amortecer os choques entre outros entes políticos. Para isso, o Judiciário da União sofreu uma hipertrofia gigantesca, destinada a ocupar o desequilíbrio da tríplice balança de poderes.

Há ainda um outro aspecto. A pulverização da ética vivida na pós-modernidade, com a destruição dos valores absolutos e a super-individualização dos axiomas gerou a necessidade, sempre recorrente, de valores mínimos. Esses valores, ante ao egocentrismo ético, devem ser impostos por algo mais que a Moral: é preciso terem forças de lei. E, então, o nobre STF assume o difícil dilema de tentar unificar não a jurisprudência, como o STJ, mas de unifica e homogeneizar os valores sociais, elegendo alguns como absolutos e impondo-os como princípios. É a tese do Judiciário como super-ego da sociedade, a instância repressora do caos e afirmadora da ordem. É a tese do Judiciário ocupando, na imaginação das pessoas, o lugar de deus material. Nossa cultura foi construída, desde o tempo das cavernas, utilizando abstrações, os deuses, como justificantes do estado de coisas; é uma necessidade cognitiva da própria cultura. Essas abstrações foram apropriadas pelos poderes políticos, que com ela legitimaram-se; basta dizer que precisamos, na sociedade, de princípios absolutos que legitimem o status quo. Esses princípios encarnam-se hoje no STF.

Hoje, os onze super-cidadãos assumiram a velha posição dos teocratas, reis absolutos e liberalóides: a de instituição deificada... ao STF, só falta um fator em sua escalada rumo ao panteão: o culto de fieis, algo facilmente conseguido pelos "deuses'' mortais anteriores. Caractere que a corte brilhante procura ardentemente, realizando audiências públicas para "ouvir'' a sociedade, e tomar decisões baseadas em "consensos racionais''; daí, serem "quase deuses''. A fundamentação das decisões no consenso popular é uma abstração que fundamenta o poder cada vez mais arbitrário da Corte, tal como nas velhas teocracias. O deus mortal, então, veste a toga dos ministros do Supremo. 

Cabe lembrar que o culto dos liberais na vontade da maioria, a abstração que fundava o Estado, acabou conduzindo ao suicídio do mesmo, quando a maioria decidiu que a vontade da maioria não era competente para decidir politicamente e que as decisões de Hitler ou de Mussolini eram as corretas. Talvez um dia o STF se julgue inconstitucional, então... a autodestruição é o fim de todos os regimes que, sendo mortais, fizeram-se passar por deuses. Interessante lembrar que os defensores do aborto de anencéfalos comentam que o fato da mãe ser obrigada a ter um filho sem cérebro é decorrente de um fundamentalismo religioso. será que sabem que o STF na verdade ocupa, no inconsciente coletivo, o papel de Deus? Aquele que emite valores básicos, que pune e vigia, que decide sobre a vida e a morte, fundamentado em princípios abstratos... trata-se do velho conceito de deus vingativo, o eterno guarda da sociedade, seu repressor em última instância; uma falácia, é claro, para manter os verdadeiros donos do poder, nossa elite, exatamente onde estão; uma distração sublime; uma abstração que encobre, assim, as coisas como elas realmente são. O fundamento das decisões do STF, enfim, é o mesmo das ordens dos imperadores de Roma: "eu sou deus''. Ou quase. 

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