sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Dirceu e Genoino: o crepúsculo da geração de 68


Hoje o país se dividiu em comemorações e manifestações de repúdio. Como é típico, afinal, de uma nação historicamente dividida em dois pólos políticos que se enfrentam e se revezam no poder desde a independência. José Dirceu, o verdadeiro poder por trás do Lula do conto de fadas, está encarcerado. Genoino, outro manda-chuva do partido mais popular do país, idem. São dois nomes que, a independer de suas atuais funções na política nacional, trazem à lembrança de todos os que viveram e sofreram com o jugo da ditadura imagens, no mínimo, de herois. Dirceu era líder estudantil e comandou a histórica passeata dos cem mil embalado pela morte de Edson Luiz; Genoino combateu no Araguaia, foi torturado e massacrado. 

Ambos representam uma geração histórica que se convêm chamar de "geração de 68'', que se formou politicamente na luta contra o regime militar e, com Fernando Henrique Cardoso, chegou ao poder, a independer de suas divisões. São políticos, diga-se, que formularam um modelo político de desenvolvimento misto, com as bases do nacionalismo trabalhista de Vargas com nacos da doutrina socialista, que no Brasil consistiu, em sua evolução, na proposição de um Estado de bem-estar social cristalizado na Constituição de 1988. A carta magna atual, assim, é o símbolo maior de sua vitória política sobre as forças reacionárias que apoiavam o regime. E os dois condenados petistas foram peças-chave na garantia, no texto constitucional, de uma série de direitos sociais e da instituição de uma ordem econômica gerida pelo Estado. Por outro lado, eram defensores, como herdeiros da rebelião juvenil de 68, de uma maior liberação moral e flexibilização dos costumes. 

O que é interessante observar é que essa geração só toma o poder quando uma vez coligada com as forças que sempre combateu. Coroneis do interior do país ligados ao PMDB, ruralistas do PR, industriais de vários partidos. Formalmente, a ideia era estruturar um grande pacto entre capital e trabalho, unidos pelo desejo de retomar o desenvolvimento nacional, em uma aliança que possibilitasse uma histórica conciliação entre exploradores - alguns dos quais um dia apoiaram o regime militar ou surgiram pelas benesses dele, financeiramente falando- e explorados. Mas na verdade a frouxa aliança escondia a adesão da heroica geração de 68 à velha forma de fazer política: distribuir poder, fazer alianças em detrimento do pensamento ideológico e vontade popular enriquecimento através da coisa pública. A política das boas relações e do presidencialismo de coalizão. 

E eis que pagar dívidas de campanha dos aliados políticos é praxe nesse jogo de poder, e foi assim que Dirceu e seus "comparsas'' arcaram com os débitos do PTB e de alguns políticos isolados. A isso foram juntados uma serie de fatos desconexos, como o contrato ente o BB e a agência de publicidade Delta de Valério, a qual recebeu uma bonificação de volume musculosa, entendida como dinheiro público (quando todos que trabalham no meio publicitário consideram dinheiro da agência...) e o suposto pagamento de propinas a um ex-deputado petista, também através de contratos de publicidade. Tudo isso foi amarrado numa lógica duvidosa e criou-se a ideia de que "se tratava de uma quadrilha'' embasada pela ideia de que, se Dirceu comandava o governo na Casa civil e o partido, ele necessariamente deveria "comandar também'' as ações "criminosas'' desenvolvidas pelo grupo do poder, por que tem o domínio final do "fato''. E o resto é história. 

Hoje todos foram presos, como uma vez foram no regime militar. Dessa vez não por perseguição política, mas por vontade política do STF em reprimir as práticas da "boa e velha política'' tão presentes ainda hoje. Isso é positivo, indubitavelmente... contudo, me espanta a seletividade do Tribunal supremo. Há 15 anos o "mensalão tucano'' espera por julgamento, e a partir do próximo ano a pena em abstrato de boa parte dos envolvidos vai prescrever. Triste ver o fim de Dirceu e Genoino, que arriscaram a vida em nome de ideais elevados, encarcerados por terem cedido às mesmas tentações do poder que tanto combateram quando jovens e idealistas. Apertaram as mãos dos homens que, um dia, armaram os militares para combatê-los na ditadura; tomaram champagne com os que beberam o sangue da nação; deram os braços aos que uma vez os apedrejaram. E o fim não poderia ser diferente. Por que a história e o povo condenam muito mais facilmente e pesadamente os idealistas e herois que se deixam corromper do que aqueles que são vilões assumidos desde sempre.

Assim, além do rigor do julgamento incidir mais gravemente sobre os mocinhos do que sobre os bandidos (alguém acha que uma condenação do Batman não seria muito mais pesada que a do Coringa?), talvez Dirceu e Genoino tenham agora de realizar uma última contribuição para a política nacional. Se uma vez lutaram contra o regime militar, hoje suas imolações na cadeia podem os tornar símbolos de uma nova era de intolerância, em todos os níveis, não com a corrupção em si, mas com as práticas políticas arcaicas que ainda prendem o Brasil ao pior dos subdesenvolvimentos: aquele voltado para o enriquecimento de uma elite cada vez mais robustecida. Sua punição por aderirem à velha política pode, quem sabe, representar uma mudança na cultura política incutida por um repúdio generalizado ante à classe política. E, mesmo agora vilões, terão feito mais pelo país do que quando, um dia, subiram ao pedestal glorioso de herois na luta contra o regime militar. 

domingo, 3 de novembro de 2013

Todos os "santos'' - o que é a santidade?


O que é a santidade? Há pouco tempo, pensava eu que "santidade'' era uma característica inatingível portada por homens e mulheres esculpidos em pedra que decoram as Igrejas. Pessoas que eram muito diferentes das quais se encontra habitualmente: modelos de perfeição moral, marcados pela dor e sofrimento em renegar ao mundo para servir a Deus. O sacrifício por eles feito, assim, me estranhava e até mesmo assustava; pareciam eles tão distantes de serem alcançados quanto as estrelas dos céus; totalmente inumanos, pois negavam, com suas renúncias, ao que me parecia mais natural ao ser humano. 

Essa mácula de tristeza, seriedade, pudor e abstracionismo, descobri, não passa de pura invenção ou estereotipação que é imposta pelo senso comum. A santidade não é algo que está além do homem, mas, sim, é intra omnes: ser santo é seguir a própria e verdadeira natureza humana. Não a fisiológica, mas a espiritual, a de amar sem medidas, tal como Deus, e por isso se entende doar todo seu ser em prol do próximo. E, longe de serem pessoas tristes e infelizes, os verdadeiros santos são poços eternos de alegria e felicidade, por que encontraram a fonte do amor na doação. O único sacrifício que fizeram foi o dos seus próprios interesses e vontades mesquinhas em prol dos demais seres vivos. Amaram, como Deus amou, até o fim de suas forças e, ao perder sua vida, acabaram por ganhar uma nova, eterna. A maioria desses santos, contudo, não são venerados nas Igrejas. 

Um sem número deles jamais serão conhecidos, mas o amor que praticaram os fez adentrar ao Reino eterno. Essa maioria, contudo, é de pessoas simples, tal como pronunciado no Evangelho "para adentrar a Meu Reino, deveis ser como crianças''. Isso não significa, por sua vez, portar ingenuidade ou inocência. Uma criança se diferencia de um adulto por ser "vazia'', livre de ideologias, filosofias ou preocupações materiais, e totalmente confiante em seus pais. Deve-se estar vazio, livre da "riqueza de espírito'' para aceitar a Deus e Nele confiar como uma criança confia em seus pais. Isso é "ser pobre de espírito'', mas rico de Deus. Não é por caso, por outro lado, que alguns dos maiores santos foram pessoas pobres, materialmente falando: a miséria e a abnegação dos bens do mundo auxilia numa maior valoração da cooperação coletiva e incute uma busca permanente pelo bem estar do próximo. As pessoas mais felizes que conheço, certamente, são aquelas que voltam para casa, depois de 8 ou 10 horas de trabalho cansativo, satisfeitas em terem uma família ou amigos para quem se doam completamente. 

A pobreza de espírito, assim, não raro, coincide com a pobreza material, e não por outro motivo que Jesus tanto andava entre os pobres e marginalizados; é contra eles que a dor vem mais forte, e é no solo fértil da periferia que as sementes de Cristo afloram mais rapidamente. A questão da pobreza conduz a mais uma indagação. Como pode, diante da santidade dos pobres, o Criador permitir tanta opressão contra eles? Será Ele injusto? De que vale ser santo? Tais indagações, que levam muitos a se afastarem da Igreja, é respondida pelo fato de que a justiça de Deus não é a do "olho por olho'' talionesca e erroneamente disseminada pela teoria da retribuição (Deus castiga os injustos e premia os justos) mas sim a da misericórdia. Ele não pune um tabefe com outro; dá a outra face. Não fez cair um raio sobre os que o crucificaram; perdoou-lhes e, assim, os salvou. Assim, ao invés de conclamar a destruição dos opressores, Deus oferece o caminho do perdão, por que a traça e o tempo irão erodir toda a riqueza e poder pelos quais os grandes do mundo tanto se sacrificam. Só o que restará, na vida eterna, serão as boas ações desta vida e perdoar quem oprime e mata por ganância é uma das melhores possíveis; por que são os próprios pecados que condenam o pecador, e a desvirtude é uma forma lenta de suicídio, já que Deus nos brinda com o caminho da vida, mas preferimos, conscientemente, o da morte. Deus não condena, salva e perdoa. 

É nesse ponto da justiça que existe uma falsa dicotomia entre santos e pecadores, como se as duas esferas não pudessem se tocar. A verdade é que todo santo tem seus pecados e todo pecador suas santidades. Contudo, em determinado momento da vida, o santo escolheu superar seus pecados em nome de um bem maior, enquanto que o pecador foi incapaz disso, negando assim sua natureza e condenando a si mesmo à tristeza e morte. O inferno, assim é uma criação da humanidade, e está aqui, ao nosso redor, disfarçado de paraíso material. O custo de nossos prazeres consumeiristas é a miséria de mais da metade do mundo, fome, doenças alastradas, trabalho infantil, condições espúrias que aceitamos para ter um celular ou um carro da moda. O inferno é a destruição das vidas de tantas pessoas, seja pela pobreza seja pela depressão, por um sistema econômico e cultural corrupto, assassino auto-proclamado divino e inquestionável. É o "príncipe deste mundo'' que antes era o império romano e hoje é o capitalismo todo-poderoso, absolutizado; é com ele que não podemos coadunar. Não é possível servir a dois senhores, da mesma forma que não podemos alimentar o capitalismo consumeirista e suas terríveis consequências e ao mesmo tempo portar-nos como servos de Deus. Quantos mais pobres e famintos teremos que sacrificar nos altares dedicados aos novos césares?

Curioso é notar que esse sistema utiliza-se do cristianismo, muitas vezes, como ferramenta de consolo provisório, verdadeira ideologia de auto-ajuda que acaba por renegar a essência do próprio cristianismo. A auto-ajuda é um ode ao egoísmo: um monte de palavras escritas em um livro me ajudarão a ficar em paz, por pouco tempo; eu "me ajudo''. A salvação e a paz do cristianismo levam o homem além dele mesmo: é ao ajudar o próximo que evoluo, e é Deus, não eu mesmo, quem pode me conduzir nesse caminho. E esse é o caminho da santidade, e fora dele não há felicidade possível. Todas as outras formas de felicidade são degenerações desta em especial, por que invertem os polos básicos da felicidade oriunda da doação ao próximo: a pseudo-felicidade é uma forma de auto-adoração, de satisfação consigo mesmo, não com os outros ou com Deus. É uma auto-enganação.


Assim, um verdadeiro santo não tem um coração de pedra como as imagens presentes na Igreja; mas de carne, que pode se ferir e verter lágrimas, sem contudo deixar de amar a tudo e a todos como Deus ama aos seus. Tampouco seguir padrões rígidos de conduta, desumanizados; mas sim realizar a verdadeira natureza humana e, ao perder sua vida em prol do próximo, encontrar a vida eterna e a felicidade sem fim, realizando a justiça de Deus nos mais divinos atos de amor: dar a vida pelo próximo e, realizando a justiça de Deus, perdoar. A perfeição não consiste na adesão e cumprimento de postulados morais vazios, mas sim a vivência prática do amor incondicional, sendo esta a natureza humana, "imagem e semelhança'' de Deus. Santidade e felicidade, assim, são duas faces de uma mesma moeda.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

"Carta perdida'' - capítulo 3





"Paris, 28 de outubro de 1893


 Minha doce alteza,

O burburinho típico de meus círculos sociais fez a mim chegar uma notícia muito diversa das que estou acostumado. Nos cafés frequentados por minha decadente casta ociosa, vosso nome ouvi. Atentei-me um pouco mais, endireitei-me na cadeira. Meus ouvidos beberam cada palavra que me era dita sobre ti como as abelhas que sorvem néctar das flores para semear a vida.

Foi assim que, como um trovão numa noite escura, soube que estavas de volta à cidade. Meu peito deu saltos, meu espírito avermelhou-se mais que meu rosto e meu pensamento dava voltas em torno de teu eixo magnífico... nada mais quis fazer que não encontrar um meio de ver-vos, depois de nossa prolongada ausência um do outro. Saí do café J'Rome saltitante como uma criança e, não obstante a modorra cinzenta do velho nublado de Paris, em meu ser um belo sol de primavera brilhava como nunca antes. Corri a tomar um coche e parti para a mansão de tua família, sob um pretexto qualquer.

Pobre cocheiro. Penso que nunca recebeu tantos xingamentos dos transeuntes. E isto por que eu lhe prometia, minuto a minuto, aumentar sua gorjeta caso chegasse mais rápido ao meu destino, o que o estimulou a tentar algumas manobras arriscadas. A pressa valeu-me uma conversa rápida com a cavalaria republicana, que patrulhava as ruas nesta tarde; não obstante o aborrecimento, quase dei um abraço no truculento sargento que me perguntou o motivo de tanta, e tão perigosa, pressa. Prossegui na minha jornada...

E foi percorrendo as ruas em direção a ti que passei pelos lugares mais importantes para nós, como que revivendo, um por um, todos os capítulos que já escrevemos desta pequena tragédia, romance, comédia... a triunfal Casa do abutres, o Parlamento de Paris, onde cingistes os umbrais antes só reservados aos homens como mera ouvinte, e me vistes a portar a toga dos velhos oradores. Ao adentrar àquele recinto com cheiro de bolor, tédio e esquecimento, senti algo diferente no ar. Um doce perfume, e uma luz rarefeita, que, como um clarão, cegou-me a vista, quando nos teus olhos olhei. Perdi-me no seus mares escuros; arrebatado fui, como que eletrizado por um raio, e balbuciei pela primeira vez na vida ao ministrar meus deveres. Saí daquele lugar com o coração a romper a boca, banhado de suor, tonto de incerteza. Será que tu virias  novamente? E tu, quem eras?

Os dias que se seguiram, sem tua visão, foram como que uma noite incerta. Na mesma noite que o navegante sente ao deixar sua terra e aventurar-se pelo mar, assim fui eu, atormentado pela chance de não mais ver-vos. E não é que, depois das festas de fim de ano, lá estavas? Altaneira, com um belo vestido de veludo negro, um véu a cobrir-lhe as faces delicadas e a pele branca, os cabelos louros soltos, caindo como que uma cascata de sol a me deslumbrar o olhar. E aqueles olhos, que a mim voltastes novamente. E, mais uma vez, fiquei cego.

Depois dos discursos ordinários, recebi os cumprimentos de meus pares e, para minha surpresa, lá estavas tu entre eles. Ao apresentar-te, logo reconheci em vós o nome, as posturas e a docilidade que só a realeza feminina pode portar.  E quão doce era tua voz! Mais que o sibilar dos pássaros, reconfortante como a brisa da tarde, mais penetrante em meu espírito que uma espada afiada. 

No mesmo dia, por meio de um amigo, que por sua vez conhecia outro, consegui ser convidado a um jantar a ser dado pelo teu pai, o príncipe, na mansão herdada por vós após o exílio de tua Casa. Tomei intimidades com os teus, troquei risadas com teus progenitores, demonstrei todo meu vigor intelectual. Mas não estava ali; meu olhar trôpego mal divisava as pessoas ao meu redor; as belas damas convidadas a mim pareciam parte da decoração. O que era isto, Deus, que sentia ao vos ver ali? Uma forma de loucura, uma doce obsessão, uma paixão ordinária? 

Descobri que não era nada disso. Algo muito maior, deveras.

Passei a frequentar vossa Casa daí em diante. Piedosamente, teus nobres pais me pediram que vos ministrastes lições de latim e grego. Posso dizer que, à cada aula, era eu quem mais aprendia. E cada vez, me desconcentrava mais e mais. Logo, em teus olhos não mais vi o brilho da curiosidade... teus gestos, o tom de tua voz, a forma como, ao vos deixar desfechando as lições, parecias desesperada pela minha partida. Estavas tu a enlouquecer também?

A grande Igreja de Santa Madalena cresceu, em seguida, sob meus olhos. Lembras quando lá nos encontramos ao acaso? Eu, antigo pretendente ao sacerdócio, das últimas bancadas divisei teu esplendor. Que o Divino Cristo me perdoe, mas reluzistes mais para mim naquele dia mágico que a cerimônia sacra, e as palavras do senhor bispo escaparam-me dos ouvidos, nos quais só tua doce voz, vívida nas minhas lembranças, ressoava... lá foi que, na hora da comunhão, nos esbarravamos sempre, levemente, para sentir um ao outro. E tantas vezes alegastes indisposição e fostes tomar ar nos ofícios, para ver-me na pequena rua ao lado... pequenos abraços, doces olhares, palavras apaixonadas dali surgiram. Assim te tornastes devota de Santa Madalena, e das fervorosas, por que nunca mais frequentou outra Igreja. Nem eu.

Foi assim que, depois da Igreja de Santa Madalena, meu coração bateu mais forte ao divisar o Café Dominique, tão forte quanto os sinos que conclamavam os fieis para a Missa da tarde. Para lá, num lugar discreto da cidade, perto do antigo palácio real, vos convidei numa tarde quente de julho. E que belo dia... a rigidez entre nós quebrou-se, risadas brotaram, junto a olhares que nos faziam calar por longos minutos. De lá sai, ao vos deixar de volta em tua mansão, como criança a andar pelas ruas tortas perto do Sena, e em longas noites, cantei, como boêmio, as proezas de tua beleza. Diariamente, publicava eu um pequeno poema no Jornal da Manhã, dedicado, secretamente, a ti. Segredos, como sempre. Afinal, és a noiva do príncipe herdeiro de tua terra.

Dizia Cícero que é triste ao homem formar para si ilusões com o fim de negar a realidade. Por mais que me distinguisse na oratória parlamentar ou nos círculos burgueses de Paris, nossos mundos não podiam coligar-se. Teu sangue nobre te forçava a enlaçar-se com outro ser de origem alta. Mas, mais do que nunca, estava eu cego, e conduzia minha carruagem para o abismo das frustrações; desobedecendo Platão, deixe guiar-me pelos cavalos dos sentimentos, afrouxei as rédeas e pus em ferros o condutor da razão. 

Toda paixão que, tal como uma rosa num campo de flores, não deveria nunca ter crescido, passa a causar contratempos. E, gradualmente, conflitos surgiram entre nós, devido à impossibilidade de futuro que tal sentimento, embora grande e sincero, nos impunha. Mas, na medida em que as pequenas brigas aumentavam, a brasa da amor ardia mais forte. Cobri-te de presentes, e tu a mim, e vivíamos em um conto de fadas entremeado por pequenas tragédias ordinárias. Cartas, quantas cartas trocávamos? Pelas noites sem fim, pelos dias longe um do outro. Sentia eu uma agonia, uma dor, certo desespero que não se sabe descrever, e meu espírito só encontrava paz com tuas palavras ou tu presença. E assim era com tu... quantas loucuras e sacrifícios, alteza, pareceram ínfimos ante às vezes que nos vimos na calada da noite?

Foi assim que divisei, entretanto, a rue de Sommeile, tão escondida, onde eu alugara uma pequena casa de varanda onde podíamos nos ver sem incômodos. Ou com menos incômodos. Ali, o doce mel que tanto admirei em ti pude sorver, e tuas mãos pude acariciar; a teu rosto pude finalmente aferir quanta maciez ele denunciava ter; teu perfume aspirei mais que os pobres chineses viciados em ópio. E, também, quantos gritos e blasfêmias dissemos um ao outro, em nossos momentos de tensão...

Todos os grandes amores encontram seu ocaso em pleno auge.

Uma estrela, dizia Ovídio, só mostra o quanto pode brilhar quando despenca do céu, atingida pela inveja dos deuses, que sempre desejam emitir mais luz que toda a criação. Talvez por inveja, mas as três velhas que fiam o destino dos homens e Saturno, este deus cruel, atiraram pedras à ilusão que juntos construímos. Ilusão, alteza, de que o conto de fadas para sempre dura, e que seus finais são felizes. Na verdade, tal como o feitiço que tornou a plebeia princesa até a meia-noite, nossa aventura tinha prazo, prazo para que as carruagens se transformassem em abóboras, e os cavalos vigorosos que puxavam-na, em ratos.

 E assim, com grande emoção, vos conflitei com o pedido de fuga. Venha comigo, disse eu, para o interior do país, para as colônias. Lá poderemos casar, tornar as promessas e desejos de ambos reais. E foi assim que vi em ti a dúvida. Um coração dividido, como disse bem Horácio, não ama totalmente. E assim estavas; e assim quisestes permanecer, até que tivestes que decidir qual perfume não poderia ficar no frasco delicado que é teu peito. Não fui eu a triunfar.

Lembro das noites após aquela entrevista. Uma grande agonia, para mim e para ti; um tormento sem fim; horas que martelavam a dor da tua perda, bem fundo no meu coração espatifado; dias cinzentos e frios, sem vida ou esperança. Quantas lágrimas não derramei? Ainda hoje, nas noites de dor, me pergunto o porquê de tua decisão, ou da aparente irracionalidade de Deus em nos permitir construir algo tão belo para logo depois por em ruína. Como resposta, ouço o sussurro do vento, a bater nas paredes de minha casa, como que a me acusar de muito ter amado.

E, não obstante tudo isso, continuo a vos amar. Deus muito foi adulado com pedidos desesperados, para que Ele, com sua Divina Misericórdia, retirasse, como cirurgião retira uma bala do coração do doente, este amor de mim. Mas, aparentemente, Ele ouve uma coisa, e faz outra; por que só o que consigo é amar-vos mais e mais. Que faço? Que faço, por todos os santos do céu?

Tua imagem não cessa de me surgir; tua voz não consigo parar de ouvir, no vento, no resfolegar das flores, no ruído da chuva beijando a terra, como convosco fiz outrora. Meus pensamentos giram em torno de vós, como os planetas ao redor de um sol, e muito rezo a Deus por um milagre. Que me faça príncipe, para que possa vos tomar pela força da tradição; que me faça herói de guerra, para que possa vos tomar pela força da reputação; que me faça regente da República, para que vos possa tomar pela força da unção popular. Sinto, pois, que nada disso bastaria. Ah, que enorme tristeza!

E tu, o que pensastes, no que pensas? Terás esquecido tudo o que apenas Deus e nós sabemos?

Hoje vi teu retrato, com vosso esposo real, no Jornal do Governo. Parecias feliz, e a legenda abaixo do noticiário proclamava a beleza do amor do mais novo casal real a trocar alianças em Marselha. Poucas vezes tanto quis desaparecer, como quando vi aquela imagem; que o chão se abrisse, e me engolisse para seu seio, e me destrinchasse em mil pedaços. Pois assim ficou meu coração, ao ver-vos longe de mim. Uma mão de ferro fechou-se sobre meu pescoço; meus pés perderam o vigor; minha cabeça esvaziou-se de tudo; meus olhos arderam, e lágrimas me banharam a face vezes seguidas. Toda a frustração, mágoa e decepção que os derrotados sentem na guerra perdida tomaram conta de mim. Nem quando, como Tenente de cavalaria, vi a derrota em Sedan, senti-me tão igual aos cães que fuçam nas lixeiras da muralha de Paris.

Toda a dor dissipou-se quando soube de tua chegada e, ainda mais, quando de ti recebo um bilhete acalentador. Agora, apresso os cavalos para ver-vos. Misterioso é o amor, que tanto nos inflige a dor, para, no instante em seguinte, nos preencher de felicidade. O que faço em diante ou não, não tenho ideia. Meu único desejo é, uma vez mais, ver estes olhos que tanto me paralisam...

Saibas tu que meu amor por ti é tão perene quanto uma estrela a brilhar nos céus. Saibas que, apesar de tudo, meu coração vive, mais forte do que nunca, a bater por vós; saibas que tal sentimento toma conta de mim como que uma força estranha que me faz flutuar, delirar, dançar nas nuvens do paraíso com os anjos do amor. Para ti retorno, nem que seja para ver-vos de longe... pois vou de encontro ao meu destino.

Espera-me, pois, como vos disse tanto, volto para te buscar...


Meu coração é sempre teu,

Minha fé é sempre em ti,

Nosso amor é para sempre eterno,


Jean Marie de Fouquet''

domingo, 13 de outubro de 2013

Do amor, do vento e das palavras



"Recordo-me que um certo filósofo falava no poder quase que cabalístico das palavras; o velho Heráclito. Palavras podem conduzir as consciências dos leitores rumo à viagens incríveis, reflexões inesquecíveis, sensações poderosas, situações irrepetíveis. Contudo, há pelo menos um elemento, um sentimento, uma força cuja mágica das palavras pouco pode alcançar: seria como descrever o que é o vento e como sabemos que, apesar de não o vermos, ele existe e tem tanto o potencial de nos refrescar numa tarde quente quanto de arrasar cidades inteiras. 

Pois nada melhor que o vento para descrever o amor, seja o que se entender por essa velha palavra latina, amore. O vento é uma força da natureza que que a tudo pode envolver, que está aqui e ali, geralmente suave e acalentador, mas por vezes forte e destrutivo. E, como toda força, tem uma direção definida, e atravessa tudo no caminho, de maneira lenta ou arrebatadora, para chegar a esse destino. Assim é o afetado pelo milenar mal do amor.

No fundo, talvez exista algo mais em comum entre o vento e amor. O fato de que ambos só podem ser considerados existentes quando uma vez sentidos à flor da pele; para saber-se o que é, só sentindo. Isso significa que o amor será somente uma fábula infantil para aquele que nunca sentiu-o percorrer todos os rincões de seu corpo, amolecer suas pernas, revirar seu intestino, fazer ribombar seu peito, arder seus olhos e levá-los às lágrimas... e, ainda como o vento, o amor age esculpindo na pessoa que toma um novo ser. Um novo ser, que sentirá algo novo.

Outro filósofo, Nietzsche, dizia que o sentimento, a paixão, a vontade, é aquilo que mais se aproxima de uma "essência'' humana. Um sentimento, dizia, voltado para a construção e destruição de padrões morais, políticos e culturais; com o amor, o eterno retorno ao nada, com a sempre triunfal ascensão da destruição criativa sobre tudo, sofre uma parada brusca. O amor apenas destrói o que havia antes e edifica, em seu lugar, algo que comunga da perenidade dos sentimentos e crenças sempre presentes em quaisquer sociedades humanas. O que se destrói é uma velha pessoa para que uma nova tome lugar no trono dos imortais, posto na assembleia daqueles que, um dia, amaram com todo seu ser a um semelhante. O caminho da imortalidade da alma é a comunhão com princípios e valores elevados, e no topo da hierarquia dos valores, está o amor. Ele é o fim da existência do homem e, por que não dizer, a porta estreita que, tal como um anel, conduz o ser amante à própria fonte do amor: Deus.

Resolvidos os problemas das essências, como e onde acontece o amor é um dos maiores mistérios da humanidade. Dizem alguns que, tal como uma doença endêmica, ocorre seguramente mais entre seres opostos que os iguais. Na verdade, tal ideia segue a tendência, sempre presente no senso-comum, de que o amor é algo radical: ou iguais, ou opostos. A verdade é que os opostos se separam quando a carga que os une termina (a curiosidade, o desafio, a atração pelo diferente...) e os iguais mergulham numa morbidez tão grande que, ao invés de se unirem e se confundirem em um só, tendem a desenvolver diferenças que não tinham antes, para se diferenciar um do outro, e terminam por se tornarem opostos. Essa racionalidade radical não corresponde à "fórmula do amor''. Na verdade, os amores reais, aqueles que encantam gerações em todos os séculos, se dão entre duas almas que encontraram tamanho complemento um no outro que, cada vez mais, ao invés de se diferenciarem, se unem em um laço de dependência sentimental arrebatador, que, tal como furacão, pode destruir tudo que as impede de juntarem-se numa unidade indestrutível. Se tornam, em pouco tempo, como que um só, comungando pensamentos, ideias, vontades, choros e alegrias, e a mulher se torna uma costela, de costel-cordis (coração, em latim), para o homem. O complemento perfeito pode ser aferido pelo simples pensamento de que a perda ocasional da pessoa amada destruiria de tal forma aquela que restou que nada mais vale a pena ser vivido.

E as palavras... para os apaixonados, são cabalísticas. Entretanto, muito cuidado com as palavras: a paixão não descreve o amor. Não há sinômia necessária entre um e outro. A paixão é uma emoção longa e continuada, quase uma obsessão de cunho quase sempre erótico que, como uma chama de fogueira, tende a se extinguir quando cessa o desejo. O amor, por sua vez, não cessa nem com a morte ou a velhice. Voltando-se ao ponto de partida: as palavras apaixonadas estão dentre aqueles que possuem maior potencial cabalístico. A magia de se ouvir um "eu te amo'' sincero pode mover montanhas mais facilmente que o "fogo!'' proferido por um general que ordena um bombardeio sobre uma cadeira de montanhas. A magia que existe nas palavras de amor são como que a própria extensão da alma apaixonada que busca adentrar à alma amada através de seus ouvidos...

Por fim, mágica maior não pode existir no amor que não sua unidade. E uma unidade, contudo, que tal como o branco é a mistura de todas as cores do arco-íris, pressupõe uma reunião entre várias dimensões do amor. Lewis, famoso escritor, elencou quatro tipos de amores, que, como degraus de uma escada, vão dos mais comuns e menos puros aos mais elevados: dizia ele que a afeição (familiar), a amizade, o Eros (amor de cunho sexual/marital) e a caridade (amor divino e incondicional) são várias dimensões de um mesmo sentimento que tem como fonte e finalidade Deus. Se o amor conduz à caridade, ao espelhamento do amor divino, é um amor real que opera mudanças positivas naquele que ama; quando se distorce em egoísmo, endeusando-se, torna-se a negação do amor, como comumente ocorre com Eros. Arrisco-me a dizer que, em relação ao último, só há chance de ter-se amor real se o Eros for a união entre todos os outros amores. Só assim se tornará independente da reciprocidade, pois a amizade traz o companheirismo, a afeição a profunda ligação dos parentes e a caridade a incondicionalidade elevada própria do amor divino.

E se há uma última palavra que pode ser dita pelo amor é que, como o vento, devemos senti-lo mais que tentar descrevê-lo. Só assim, ao invés de se entender como a árvore imortal do amor cresce, possamos encher nossos olhos quando, nas primaveras eternas nas quais os amantes se unem, os frutos penderem belos e viçosos de seus galhos e alimentarem seus dois jardineiros. Por que a eternidade é o prêmio daqueles que consomem suas almas em prol uma da outra, misturando suas cinzas em uma só, da qual renascerá um único ser, vivente para sempre. ''

José Luís Barreto

sábado, 12 de outubro de 2013

Análise de perfil - Eduardo Campos


Praticamente desconhecido das massas, embora seu nome esteja na boca e na mente de todos os políticos e jornalistas do país nos últimos dias, o homem mais poderoso de Pernambuco é uma personalidade enigmática, fascinante e, por isso mesmo, perturbadora. Embora alguns, ainda apegados aos velhos esquemas metodológicos do objetivismo materialista, digam que é empobrecedor, para uma análise política, o exame de elementos psicológicos e subjetivos das grandes personalidades da política, aqui consideramos que o próprio mundo é uma colcha de retalhos formado por extensões e assimilações de consciências individuais e coletivas. O "Eu'' de Eduardo Campos constrói parte da realidade regional e nacional, e, mais que isso, as impressões que essa subjetividade tão complexa deixam nas mentes das pessoas são uma peça fundamental na compreensão do novo fenômeno político do século XXI no Brasil: a ascensão do pragmatismo maquiavelista.

Para a análise do homem político, moral e psíquico por trás de seus olhos de bichano, farei uso de sua última entrevista, concedida à Revista Época.


"ÉPOCA – O professor ganha mal no Brasil?Campos – Ganha mal. Acumulou-se a gestão malfeita no passado, e muitos lugares ficaram condenados a remunerar mal. Se houver diálogo com os professores, e se houver disposição, construiremos uma travessia de resgate de autoestima, fundamental para o resultado no aprendizado. Se o professorado ficar deprimido, não haverá resultado.'' 

Diante de muitos trechos importantes, este em especial me chamou atenção pela superficialidade extrema. De primeiro, a pergunta tinha uma resposta óbvia e tão pronta em si mesma que Campos sequer forçou muito a mente para mudar o raciocínio já presente no questionário: "ganha mal...'' revela a pouca capacidade do governador em ir além do que lhe foi dado e construir respostas e raciocínios mais inovadores. Isso casa perfeitamente com a ideia que me salta à cabeça quando ouço Eduardo falar em público, onde o homem aparentemente decorou um discurso e se esforça, visivelmente, para não ir muito além dele. Esse não é um problema só de Eduardo, mas de muitas pessoas, que tiveram uma educação baseada no velho método jesuíta-positivista de "decorar'' verdades essencialistas presentes nos livros do saber, o que muitas vezes macula e atrofia a capacidade crítica e discursiva; o problema dos pragmáticos é que eles são pouco críticos, pois a cegueira em seguir metas e preservar alianças mata qualquer questionamento que possam ter. Outra característica negativa, presente dessa vez em 99% dos gestores públicos do país, é jogar a culpa dos problemas do presente nos administradores do passado (no caso, o "administrador passado'', Jarbas, é um aliado de Campos hoje...): quando perguntando do problema, Eduardo sabe que, em seu Estado, os professores ainda ganham o pior salário do país. 

A saída é a mais óbvia para um político, ou seja, por a culpa em outro político. Lavando as mãos, diz que a "herança maldita'' impede os aumentos salariais dos educadores... depois, fala em diálogo, algo que pouco cumpriu em sua gestão. Não realizou concursos estaduais para educadores e pouco mais fez que adotar um sistema de bonificação para "premiar'' o mérito dos educadores mais competentes, e tem o sangue-frio o bastante para dizer que a solução para a educação passa por algo que não fez quando teve a chance. E, claro, um grand finale emotivo, tal como o cordialismo brasileiro exige: a crônica do "professor deprimido'', que deve ter sua auto-estima recuperada. Para o eleitor miúdo, uma declaração assim desce bem, mas os mais instruídos torcem o nariz para emotivismos. Como elevar a estima dos educadores? Salários mais altos? Equipamentos? Salas menores? Eduardo a isso ignora e, contrariando seu característico pragmatismo, deixa de apresentar metas claras para a Educação. E não apresenta por que não tem, e quem não tem projeto a apresentar em determinada área apela para a emoção, com o fim de disfarçar o próprio despreparo ou indiferença para com a área omitida...

Enfim, pouco crítico, utilizando-se de artifícios emotivistas para disfarçar sua indiferença quanto à educação, relativamente "preso'' a um discurso pronto e "dado''. Um homem que quer cumprir metas, mas não se questiona ou tem capacidade pra raciocinar além do que foi "dado'' pelo senso-comum pouco pode fazer para transformar um país.



"ÉPOCA – O senhor usa o sistema de saúde pública?
Campos – Já tive experiência de ser atendido em emergência. Já como governador, tive um processo alérgico, estava próximo de um hospital público, e fui lá. Mas tenho seguro-saúde, o mesmo há 20 anos.''


A pergunta foi um ataque frontal do entrevistador, que deve ter dados sobre o caos da saúde pública em Pernambuco. Eduardo mais uma vez foi astuto: como obviamente tem dinheiro suficiente para ter um ótimo plano de saúde (por que só um excelente plano de saúde dura 20 anos no Brasil, sem ser fechado por ordem judicial ou cair em descrédito), optou por dizer como que "olha, eu tenho um Plano de saúde f$#%&@$o, mas o sistema público funciona bem o suficiente pra atender até pessoas como eu, que não precisam, quando necessário. Eu fui e estou vivo; quanto mais quem precisa!''. O argumento reverso foi relativamente bem posto, mas traz suas incoerências. Ora, sabemos que as emergências de hospitais públicos são super-lotadas. Imagine agora que, em meio a centenas de pessoas que chegaram há horas, o governador é trazido em uma maca, em processo alérgico. O que você acha que aconteceu? Que ele esperou, como qualquer cidadão, ou foi prontamente atendido, para indignação dos pobres que ali esperavam horas, em lenta agonia? Isso só denuncia, ainda mais, a imensa desigualdade social que separa Eduardo, milionário, do povo que ele diz representar, miserável.





"ÉPOCA – Qual sua opinião sobre as privatizações, no governo FHC e no governo Dilma? Como trataria a questão?
Campos – Não tenho preconceito com iniciativa privada, nem com Parcerias Público-Privadas, concessões. Não temos no orçamento fiscal brasileiro a capacidade de alavancar os investimentos, como a realidade exige. Temos de chamar a parceria da iniciativa privada. E ela não fará por filantropia uma rodovia, um porto, um aeroporto, uma linha de metrô. Fará para ganhar dinheiro. Precisamos garantir um ambiente que passe confiança e nos ajude a ter investimentos em áreas que melhorem a qualidade de vida e a produtividade da economia.''


Campos aqui se anima mais um pouco. Aqui, critica seus adversários petistas, ao afirmar que "não tem preconceito'' com o empresariado. A verdade é que político algum tem; afinal, alguém tende financiar as campanhas, não é?  Pelo menos, dá a entender, Campos não tem medo de dizer que quer proporcionar doces lucros aos empresários, e, de quebra, resolver os problemas de investimento do país, que estão alarmantes (o governo investe 7% do que arrecada... convenhamos, o PT atualmente é o maior "aliado'' de Campos!). Se apresenta o neto de Arraes aqui como o fiador de um novo pacto entre a poderosa e assustada iniciativa privada e o Estado brasileiro, resolvendo os problemas de hostilidade mútua e, por sua vez, toda solução se baseia na "confiança''. Mais emotivismo? Não exatamente. Um empresário não "confia'' no governo por este ser de direita (FHC adorava praticar calotagens até com seus queridos bancos...), mas por este estar disposto a tudo para honrar os pactos celebrados. Em suma, ele confia no governo se este lhe proporcionar grandes e continuados lucros, de maneira estável. E é isso que Eduardo oferece, ainda mais com um plus para os empresários: "vamos chamar vocês a investirem, mas vamos arcar com boa parte, para vocês terem estradas, portos e aeroportos pra diminuir seus custos, e abrir duas torneiras de dinheiro ao mesmo tempo''. Eduardo é o homem de confiança dos empresários, apesar de ser nominalmente socialista. Sem preconceitos, que se dane as ideologias e a coerência, vamos lucrar!



"ÉPOCA – O Brasil sofre com a armadilha de crescimento baixo. Da nossa riqueza, 40% vão para a máquina estatal. O que fazer?
Campos – O fundamental é desenhar o caminho estratégico. Teremos uma caminhada de uma década. Nessa caminhada, ajustaremos distorções que existem e compatibilizaremos as políticas fiscais e econômicas, num caminho em que passaremos confiança aos agentes econômicos. Há no Brasil mais uma crise de confiança do que uma crise econômica. Os fundamentos econômicos poderiam estar melhores? Sim, mas já estiveram piores. O importante é passar para a sociedade com clareza que há um projeto discutido, de longo prazo, que juntará boas ideias e boas pessoas. Isso conquista a primeira batalha: a batalha da confiança.''


Veja que Eduardo não fala exatamente em como resolverá o problema dos "voos da galinha'' do rendimento do PIB brasileiro. Estratégia, planejamento, longo prazo, fundamentos: tudo isso fortalece a palavra-chave do discurso eduardista. "Confiança''. Todavia, não se trata de confiança dos agentes econômicos no desempenho do PIB brasileiro, mas de confiança no próprio Eduardo. Sabemos muito bem que os 20 mil rentistas que vivem dos R$ 650 bilhões anuais que o governo paga religiosamente para "rolar a dívida pública'' confiam demais no Tesouro e que as empreiteiras e super-empresas sabem que podem obter empréstimos do BNDES na hora que quiserem. Esses confiam muito na economia e sabem que o governo atual fará o que for necessário para manter a os preços estabilizados. O que Campos quer dizer é que ele também é capaz disso, e capaz de propiciar estabilidade regada a aumento do PIB - e, consequentemente, mais lucros. Eduardo não apresenta um projeto, o que seria essencial pra "iniciar a discussão'', mas apenas aponta para a necessidade de debate. Um debate, ressalte-se, restrito a ele e os agentes econômicos, os que devem apresentar suas demandas para "sentir confiança'' na economia. Compatibilizar a política fiscal e econômica é algo tão vazio quanto querer compatibilizar farofa com porco assado, ou queijo com goiabada, por que uma coisa combina sempre com a outra. A política fiscal tem reflexos na econômica, invariavelmente. A batalha da confiança é arrebanhar os empresários que apoiam o atual governo para as hostes eduardistas.



 "ÉPOCA – Aborto?
Campos – A legislação que está aí é a que o Brasil pode ter neste momento.''


Nesse ponto, Eduardo foi curto e grosso. Mas, como toda lâmina de dois gumes, corta dos dois lados. Agrada aos conservadores, demonstrando que as disposições do Código Penal de hoje bastam (aborto como exceção, nos casos previstos em lei, e como crime, em regra), e dá esperança aos feministas, pois se "a lei atual é a que o país pode ter'', no futuro "pode ter outra''. A resposta em apenas uma frase denuncia o desprezo que Campos sente da temática, já que é um homem interessado em apresentar-se como um gestor responsável e confiável, um homem dos empresários e para eles, características aos quais o fato de ser abortista ou não simplesmente é irrelevante. Na verdade, quanto aos direitos das ditas minorias, Eduardo adota o discurso conservador, mas eficientista: "não tenho tempo pra discutir essas questões; tenho de gerir negócios vultosos, orçamentos trilionários, gerar lucros e riqueza. Deixa esse negócio de aborto como está.''



"ÉPOCA – Descriminalização das drogas leves, como a maconha?
Campos – Não é o caso ainda no Brasil, neste momento.''


É impressionante como o discurso de Eduardo é palatável e espelhante ao homem-médio.O brasileiro tende a ser moderado em política: nem radical de um lado, nem do outro, mas se alguém ofertar uma mistura de tudo é mais fácil se identificar. Contudo, na maior parte dos assuntos, o brasileiro é conservador. Tem medo - ou preguiça- de pensar em outras alternativas, e termina "empurrando com a barriga'', e deixa tudo exatamente como está, por pior que esteja. Por mais que existam 6 milhões de dependentes de drogas no país, que alimentam vários impérios do narcotráfico, o melhor a fazer é deixar que a doença continue a se desenvolver. Eduardo quer se aproximar do homem-comum que, ao ler sua declaração, se identificaria de pronto, e encerrar de vez o assunto, com vistas a ir para "questões mais pragmáticas''. Trata-se de um discurso que aparenta desprezar ideologias, quando na realidade reafirma uma delas: a conservadora, moralmente falando. Contudo, com mostras de "seu pensamento de longo prazo'', Campos fala em "neste momento'', indicando que em outro momento pode ser necessário liberar drogas leves. Necessário como? E para que? Para os planos eleitorais de Campos, é claro...



"ÉPOCA – Por quê?
Campos – Porque vivemos uma epidemia do crack. Precisamos romper essa epidemia com outros mecanismos para abrir um debate dessa natureza.''



Confesso que, à uma rápida leitura, é fácil aceitar o que Eduardo diz. Afinal, é tudo droga, não é? E a maconha é a porta do crack. Não temos dados suficientes para concluir tal ideia - embora seja a que eu especialmente me inclino-, de forma que optar por ela é uma questão mais ideológica que científica, mas é o que Campos quer dizer. A epidemia do crack é real, embora seus motivos sejam desconhecidos totalmente: há um sem-número de fatores envolvidos. O pior de tudo é falar em "outros mecanismos''. Mais vagueza é impossível: o cidadão comum, já concordando automaticamente com Eduardo, imagina o que quiser em "outros mecanismos''. Uns pensam em internação compulsória, mais combate ao tráfico, campanhas nas escolas, tudo. Ou seja, é uma casca vazia onde se pode por qualquer conteúdo. E como o cidadão já concorda com Campos, pensa que o "seu'' mecanismo de contenção das drogas está automaticamente sendo considerado pelo governador em sua expressão "outros mecanismos''. Brincar com as palavras e fazer adeptos acriticamente, eis duas coisas nas quais Campos é mestre. E ainda se fala em debate, como se fosse necessário diante da opinião já vencedora de Campos!


"ÉPOCA – Neste ano o povo brasileiro foi às ruas por não se sentir representado pelos políticos. Qual sua resposta a esse cidadão?
Campos – Foram para a rua para melhorar o Brasil. Ninguém sai à rua para piorar. A primeira das mudanças precisa ser na política. Se não mudar a política, não mudará o Brasil. A primeira resposta concreta é dada desde sábado. A gente oferece um caminho diferente, fora dos arranjos tradicionais, para colocar em debate. Isso animará enormemente a juventude, os militantes sociais, os que se preocupam com o futuro do Brasil, os que querem justiça social. Isso animará quem estava desanimado com a política. Qual o resultado? Teremos de esperar 2014 para ver o resultado.''


Essa foi especial. Eduardo não sofreu, em termos de popularidade, com as jornadas de protesto de junho último, apesar de 100 mil pessoas forem às ruas contra "tudo que está aí'', e em vários protestos seguidos a Polícia Militar de Pernambuco ter massacrado os manifestantes (em três das vezes, estive presente e pude conferir a barbárie com a qual os nobres policiais trataram estudantes desarmados, em cenas que pareciam vir do sombrio túnel do tempo de 1968...). O que é curioso é associar a construção de uma aliança eminentemente politiqueira aos movimentos de protesto de massa, como se fossem frutos destes, "uma resposta'' aos anseios populares para "melhorar o Brasil e sua política''. Faz parte da estratégia para captar os votos de Marina, muito popular entre os 5 milhões que marcharam pelas ruas do país nos protestos de junho, e uma manobra, que se reconheça, brilhante e ao mesmo tempo problemática de Campos. Brilhante, por que os desinformados podem crer na aliança Rede-PSB como uma reforma da política dentro da política; problemática, por que a incoerência de se casar o pragmatismo político com o movimento mudancista popular pode resultar em um divórcio pré-gerado, ou automático. Eduardo costuma fazer pactos políticos independentemente de qualquer orientação ideológica, tal como demonstrou ao coligar o PSB, em alguns Estados e Municípios, até mesmo com o DEM. Como este homem pode representar a "renovação'' da política? 

Eduardo não é uma renovação. É uma rearranjo, uma mistura entre todos os "políticos'' que governaram o país desde o século XIX: um bacharel (formado em economia pela UFPE); de família de políticos- uma oligarquia "de esquerda''- ou seja, um oligarca; tecnocrata (seus gabinetes de governo e equipe são de técnicos especializados, que cumprem metas); populista (acostumado a "dourar a pílula'', apresentando-se como grande gestor próximo do povo); demagogo e, essencialmente, um perfeito seguidor da Realpolitik. Ele pouco se lixa para as velhas ideologias. Quer gerar lucros para garantir o apoio dos empresários e pouco importa no que acredita. Ele quer, contudo, se apresentar como o meio-termo, a terceira via, entre o petismo e o tucanato, e até mesmo a síntese entre ambos, mantendo o assistencialismo e a mão-forte do petismo, mas com pitadas de neoliberalismo gerencialista. Uma combinação nunca antes testada nacionalmente e que ressuscita os postulados de Gibbens.

Se dará certo ou não, que se responda com as palavras do analisado desta postagem: "temos de esperar 2014 para ver o resultado''.

A volta dos que não foram


Caros leitores,

Peço que me perdoem a longa ausência, mas há três meses venho tendo um período estafante na Faculdade (do qual ainda não me recuperei mentalmente...). Contudo, o banho de leis, códigos e procedimentos inúteis, que tive de decorar pra passar nas provas, como é exigido de um bom aluno, emperraram-me o cérebro e só o que consigo pensar para destravá-lo é pô-lo em atividade. Cogito, ergo sum.

É assim que dou início à uma nova fase do Blog. Textos mais enxutos e reflexões mais sentimentais serão as principais novidades, embora sempre tenhamos um drink de filosofia e, claro, ofereceremos os característicos canapés da política e da história. Sintam-se convidados a este coquetel, cujo único fim é gerar discussões e, consequentemente, baderneiros, arruaceiros e desordeiros, para que se atirem pedras nas vidraças frágeis e opacas do senso-comum, pichem-se as caricaturas e mentiras com as quais os poderosos justificam seu império de morte e ponham-se abaixo os muros das prisões filosóficas e políticas que mantêm as massas acorrentadas à uma vida consumista sem sentido e suicida, para si e para o planeta.

Indignai-vos,

e... fogo!

JG

segunda-feira, 22 de julho de 2013

As sandálias do pescador


"Enquanto estávamos com ele, nosso coração não ardia?'' ou "cor ardum nostrum'' é a conhecida expressão de surpresa que os discípulos de Emaús cunharam após ouvir as palavras de Jesus, depois de sua ressurreição, consolando-os da decepção ocasionada por sua aparente morte na cruz. Talvez muitos daqueles que acompanharam as primeiras palavras de gestos do Papa Francisco tenham sentido algo parecido, à medida em que seu discurso de apresentação, como a onda poderosa que brota do mar pacífico, despia-se cada vez mais da timidez e alcançava os níveis de uma brilhante entonação, sem, contudo, deixar de lançar mão de sua conhecida simplicidade. Muitos, sim, das ovelhas da fé católica estavam como que os discípulos de Emaús, tristes, abatidos, pouco inspirados com a vinda de Sua Santidade ao Brasil; muitos desdenhavam de sua chegada, tal como os discípulos não creram de pronto na ressurreição de Cristo. Mas bastou sua presença, seu sorriso bondoso, sua imensa humildade, sua ternura e, acima de tudo, suas palavras calmas, embutidas da imensa profundidade característica dos discursos simples, para que todos os ouvintes sentissem uma energia pacífica a brotar de sua figura apascentadora e, logo mais, seus corações arderem. 

Ainda mais quando, educadamente, pediu acesso ao coração do povo brasileiro, demonstrando ter ciência da natureza "cordial'' de nossa cultura, como sinônimo de emotividade - no sentido cunhado por Sérgio Buarque de Hollanda. Cumprimentou as autoridades presentes, e logo foi ao âmago da questão: veio ele para, como Cristo fez, dar nova esperança aos jovens de todo o mundo e incutir-lhes o espírito de pregadores do Evangelho, demonstrando que todos podem ser acolhidos pelo abraço do Cristo. Como sábio ancião, reconheceu a imensa e invencível força dos jovens nas questões da fé, que "botam fé'' em Cristo, e vice-versa... lembrou que não só a eles se dirigirá, mas a todos os seus. E foi a partir de uma bela metáfora que transmitiu a primeira de suas lições: a juventude é a menina dos olhos da sociedade, a impressão de como esta vê a si mesma - significa dizer que ela só vê a juventude. Uma sociedade que vê e deseja uma juventude saudável também o é, e daí o cuidado que se deve ter com os olhos: uma sociedade que meramente enxerga defeitos na juventude é um corpo social cego, que não vê, através desses jovens, a luz do progresso, da oxigenação, do entusiasmo, do futuro. Daí a preocupação com o cuidado desses jovens, e, nesse trecho em particular, Sua Santidade se mostrou muito sensível às recentes demandas da juventude nacional: esta precisa de saúde, educação e segurança, mas não apenas isso. Quesitos imateriais, morais, como a ética e o zelo pela justiça. Enfim, todos os elementos que constituam uma pedra firme no qual os jovens possam construir, livremente, suas vidas. A autonomia, para decidir o próprio destino. Concluiu lançando o abraço da cátedra do pescador a todo o país que lhe acolhe. Nunca a ordem de Jesus a Pedro fez tanto sentido: "farei de ti pescador de homens'', pois mesmo os mais ferinos críticos da visita papal foram cativados pelo magnetismo de um homem que, em tudo, espelha a singeleza de um santo e a simplicidade de qualquer senhor simpático que encontramos nas ruas, diariamente.

Agora, mais do que nunca, o coração do Brasil arde. Arde por um missionário que veio relembrar ao maior país católico do mundo o real sentido de ser cristão: unir, em lugar de segregar; amar, em lugar de odiar; perdoar, em substituição às eternas vinganças. Em uma sociedade cujas demandas sociais explodem, vocalizadas pela juventude, as palavras de humildade e simplicidade de um homem que carrega nas costas, como ma cruz, 1,2 bilhão de fieis, tocam profundamente um povo que, infelizmente, ainda está agrilhoado os velhos vícios do passado, vícios estes que tanto geram a morte e o sofrimento. A chegada do Papa não ressuscitará os jovens mortos pelas balas perdidas e não-perdidas, não transformará nossos matadouros públicos em hospitais dignos, não extirpará os vergonhosos índices de miséria a analfabetismo da nação; mas, sobretudo, suas palavras poderão ter o condão mágico e fantástico de fazer o brasileiro voltar-se, com compaixão, ao seu próximo em necessidade e, enfim, realizar uma revolução espiritual em cada indivíduo. Porque é assim que as grandes transformações ocorrem: muda-se primeiro as pessoas, e essa alteração espiritual provocará uma brusca repercussão material, através do seguimento do belo mandamento do "ame ao próximo como a si mesmo''. É a partir daí que Francisco ensinará que, tal como na multiplicação dos pães, a divisão do pouco que cada um de nós tem pela coletividade satisfará a todos e ainda sobrarão bens em fartura. Questões como o uso de camisinhas, células tronco, anticoncepcionais e demais, diante da universalidade de tal mensagem, chegam a tornar-se supérfluas: para o bom cristão, o que importa é amar, incondicionalmente, e doar-se ao próximo, sendo o último, o servo de todos. E, mais que nunca, o papa faz jus ao seu mais nobre título. O de servo dos servos de Deus.

Enfim, a figura de um papa humilde e caridoso lembra muito o personagem criado por Morris West, no romance "As Sandálias do pescador'', no qual um cardeal eslavo, depois de décadas preso pelo regime soviético, é escolhido como papa, em um conclave improvável - figura muito mais próxima, contudo, ao papa João Paulo II. O Papa Kiril de West enfrentou, com doçura e paciência, os vícios de uma Igreja assentada em vaidades e conflitos de egos, dividida entre ultraconservadores de coração pétreo e os mais ousados modernistas, e logrou superar essas divisões meramente banais em prol do bem maior da fé. A mesma missão espera Francisco, que já iniciou um grande trabalho de reforma da poderosa Cúria Romana, sem jamais deixar de dar ouvidos a ambas as correntes e, pacientemente, reconstruir a unidade da Igreja. E foi a partir do momento em que as sandálias do pescador beijaram o Brasil que se adentrou a uma fase decisiva dessa missão, com a tão esperada reconciliação entre os adeptos da teologia da libertação - perceptível na própria CNBB- e o papa dos pobres. Que seja a partir do Brasil que o papa reconstrua a união da Igreja em prol de sua cabeça: Jesus Cristo.

Bendito o que vem em Nome do Senhor!

sábado, 1 de junho de 2013

Do egoísmo

É frequente que o senso comum politicamente correto - como parte integrante de nossa moral social-  frequentemente contradiga as práticas sociais. Talvez regras morais existam para não serem (tanto) quebradas, ou para ao menos dar um pouco de ordem ao que, naturalmente, é caótico por essência: o comportamento humano. Sendo assim ou não, é de se notar que, especialmente no caso dos brasileiros, em que pese predominar um certo senso de união coletiva e de atenção caridosa ao próximo - herança, segundo o arquétipo ideal de Weber, de nossa tradição católica- está se operando uma escalada do individualismo, talvez em face da contínua norte-americanização da cultura brasileira. Além de vestirmos jeans, comermos McDonalds e agregarmos cada vez mais expressões anglófonas ao nosso linguajar habitual, - e, claro, importamos também as instituições políticas dos EUA, como o seu presidencialismo imperial e seu modelo de supremacia das decisões judiciais, razão do atual choque entre os Poderes da República na quebra-de-braço Executivo/Judiciário- acabamos por, a grosso modo, adotarmos a filosofia de vida tipicamente anglo-saxã. 

Não se trata somente de se operar um robustecimento do individualismo na vida do brasileiro comum, que desgosta-se cada vez mais com instituições que anteriormente congregavam a coletividade e defendiam valores universais, como os partidos políticos, a Igreja Católica - substituída pelas pentecostais de origem norte-americana, onde o fiel tem uma relação direta com Deus, em um misto de auto-ajuda e interpretação literal da Bíblia, ensejando um crescente fundamentalismo (sim, deixe pessoas sem formação adequada interpretar um complexo texto histórico como se lê um jornal e não ficará impressionado com evangélicos enfileirados indianamente, gritando "morte aos gays...'')-, organizações sociais e sindicais, mas de uma verdadeira contaminação cultural (o velho provérbio "o exemplo vem de cima'', aplicado contra Luís XVI e ao fato de que todos, na França, procuravam emular o comportamento esbanjador do rei, tem muita força). A questão básica, penso eu, é que o individualismo emana das próprias instituições coletivistas, sendo causa de seu patente desprestígio: estas acabam se valendo de valores coletivos para defender os interesses privados de seus dirigentes. O padre que cobra o dízimo e tiraniza moralmente seus fieis, mas que utiliza as verbas da paróquia para comprar objetos de luxo ou mesmo ter uma vida sexual ativa; o político que se diz ético, democrata e defensor na família, mas que ostenta inúmeros processos judiciais nas costas, subserviência aos poderosos e algumas amantes (de ambos os sexos!) para variar. O chefe de trabalho que se apropria das criações de seus subordinados, reduz seus salários e aumenta o próprio, ainda assediando as pobres e indefesas secretárias; não se trata de hipocrisia, que é mero efeito, mas de um fruto direto do amor-próprio desenfreado que leva à satisfação de si mesmo às últimas consequências. Em suma, a máscara do coletivismo e do bem maior do grupo caem por terra quando os dirigentes das próprias instituições sociais dão "o mau-exemplo'', que põem por terra a função do grupos sociais. Logo, se dissemina, de cima para baixo, uma forma de viver e pensar que preza, antes de tudo, pelo próprio Eu e as vantagens que pode obter para si, aliando pragmatismo e instrumentalismo moral. 

O individualismo é apenas a primeira fase do processo, onde o homem substitui os valores sociais pelos próprios, mas mantendo uma postura de respeito diante dos primeiros e dos valores individuais alheios. Só que, frequentemente, o individualismo "evolui'' para sua forma superior: o egoísmo. E, aqui, todo o respeito pela coletividade decai completamente, nada mais põe limites os desejos do indivíduo. Quando egoísta, busca se projetar contra todos afim de subjugá-los à própria vaidade, invadindo, se necessário, a esfera de intimidade alheia, pondo-se acima de tudo - como o caminhante das nuvens, ao lado. Maquiavélico, no pior sentido do termo.

Esse processo, assim, corporificado na falta de ética dos dirigentes sociais, é tomado como carta-branca pelos dirigidos para se rebelar contra a coletividade. A ideia básica desenvolvida por Trasímaco, em seu célebre debate contra Platão em "A República'' sobre a Justiça, elucida bem isso: o sofista dizia, basicamente, que a Justiça se confundia com a vontade dos mais fortes, que a usavam para justificar suas ações, que, claro, visavam sempre ao bem dos próprios poderosos. Os mais pobres e fracos, quando justos, apenas seguiam os desígnios dos mais abastados, sendo, assim, os valores coletivos uma peça pregada para mantê-lo submisso moralmente. Partindo da ideia de que esses valores eram relativos e históricos, já que tanto variavam de uma cultura a outra, chega-se a conclusão de que a ideia de justiça, em si, não existe. Ou seja, mais fácil seria ao indivíduo desobedecer ao valor social da justiça dominante, e, assim, realizar a própria vontade, e não a dos poderosos. Trasímaco fez uma verdadeira ode ao egoísmo moral. E, claro, a mesma ideia se dissemina cada vez mais: "vou garantir o meu, vou pensar o que quiser, custe o que custar, já que pensar o que é 'certo' apenas serve a u(ns)m hipócrita(s), não a todos.'' Salve sua pele, traduza-se!

Dizia o velho Freud que, seguindo o rastro platônico, a mente humana tinha uma divisão básica tripartite, onde os desejos irracionais e sexuais eram contidos pelo super-ego, ou seja, pela pressão social internalizada, em uma tensa relação mediada pelo ego, que, a grosso modo, seria uma seleção de quais desejos e características pessoais poderiam ser externalizadas. Quando esse super-ego enfraquece, a mente humana, em seu inconsciente, passa a erodir qualquer limite à satisfação do prazer. Logo, tem-se um desequilíbrio mental de certa ordem, já que, como qualquer órgão, a mente também tem uma lógica interna e uma função, baseada no equilíbrio entre as três camadas. E é esse preciso desequilíbrio que, hoje em dia, é causa frequente de psicoses, depressões e demais perturbações mentais. "Ó tempos, ó costumes'', dizia Cícero, e, hoje, diz-se "ó tempos, ó loucuras''! Ora, só podemos concluir que o inflacionamento do ego só pode ser um desequilíbrio a ser contido pelo robustecimento da pressão social.

Não é preciso recordar que, em épocas passadas, quando o egoísmo suplanta o coletivismo e o bem estar coletivo, gera-se tal divisão na sociedade que esta pouco pode resistir ante à crises profundas; note-se que Roma caiu em um período em que foi dividida por lutas pelo poder, e nunca mais se elevou novamente, onde cada general objetivava o trono, mas não pensava em repelir as invasões bárbaras! Certa vez, um velho monge galês, poucas décadas depois da queda de Roma, escreveu um livro, "Excedio britanae'', denunciando as causas da conquista e destruição da Britânia sub-romanizada pelos invasores saxões. A principal causa da derrota dos bretões foi sua divisão em um grande número de reis, cada um lutando contra os demais em busca do poder: foi somente quando um jovem, Ambrosio Aureliano, reuniu os reis e comandou as primeiras e lendárias vitórias do seu povo contra os invasores, que serviu de base para o surgimento da lenda do Rei Arthur, o mito que, em si, representa, até hoje, a unidade territorial da Inglaterra e marco de legitimação da monarquia inglesa. Quando Ambrosius morre, e seus filhos disputam o poder, completa-se a derrota dos bretões.

Porque são nos grupos sociais diversos que buscam-se apoios e proteção diante de abalos que somente pela coletividade podem ser solucionados: a civilização floresceu a partir dos braços dos homens e mulheres que, juntos, dominaram os grandes rios e retiraram as primeiras colheitas do seio da terra, e foi sua cumulação que permitiu a especialização do trabalho, a geração de riquezas, sua concentração e consequente desigualdade social, um dos pilares do egoísmo. Ou seja, a raiz do amor-próprio desenfreado é, em última análise, a própria união social. Sem esta, pouco há para o intelecto humano objetivar: todos os grandes desafios, e, por sua vez, as grandes conquistas, são coletivas. O que motiva o indivíduo, o que lhe introjeta ambições, são desejos e desafios instituídos pela coletividade; é esta, inclusive, que estabelece como padrão de comportamento o individualismo! Teria Alexandre Magno conquistado o mundo antigo sozinho? E as grandes navegações? E a ida à lua, o que seria, sem os centenas de estudiosos, políticos e militares que para sua consecução se empenharam?

Mesmo que a ética seja um valor imposto, ela não deixa de existir como um fator que une pessoas diversas em prol de objetivos em comum - no clássico do cinema "O poderoso chefão'', um patriarca comanda, protetor e sábio, uma família mafiosa, a qual as vezes precisa oprimir, para garantir que esta sobreviva e, nem por isso, acaba por impor sua visão, egoisticamente, aos demais, sempre procurando ouvi-los, mas sem abrir mão de sua autoridade, sem a qual a família decairia em desagregação e, consequentemente, ao ocaso; é uma relação de dependência entre governantes e governados, que precisa ser reconhecida. E é por isso que a ética geral e universal não pode ser suprimida: sem ela, a sociedade, e nós mesmos, não seríamos viáveis. E se esse objetivo comum serve ou não, realmente, ao interesse maior da coletividade, é algo a ser julgado pelos próprios componentes desta - embora não se possa negar, como Trasímaco, que ele existe! E, atualmente, chega-se a conclusão, neste país, de que o que devia ter funções públicas, seguindo uma tendência histórica, acaba por servir ao desfrute privado: na verdade, diria que se trata de um momento de conscientização a respeito dessa inversão e, claro, o início de um movimento que recuperará o papel das instituições coletivistas, que, uma vez mais, retomarão seu papel de super-ego sobre o hipertrófico Ego de todos nós. Dessa forma, que se reconstrua a ética, que, como uma bandeira, possa representar a síntese entre a tradição brasileira, coletivista, e as influências globalizantes atuais, individualistas, garantidora de um mínimo-ético à nação e, ao mesmo tempo, condições de propiciar a autonomia moral do indivíduo. Assim, certas questões devem ser deixadas à escolha do indivíduo, mas outras, deverão estar sob guarda das competências da sociedade. Mas isso importa, no mínimo, a repressão ao egoísmo desenfreado e doentio de que estamos começando a sofrer, pelo qual lotamos clínicas psiquiátricas e centros de recuperação de dependentes químicos, além de dar continuidade ao mesmo modelo social explorador e repressor que tanto nos marca, entristece e ilude. O egoísmo é uma máscara, mas com a qual não nos escondemos, mas sim à sociedade, da qual fingimos não precisar, e estigmatizamos como algo negativo e prescindível!

A redução da maioridade penal: "olho por olho, dente por dente''


Poucos temas tem tanto apelo popular. Talvez essa força que a temática penal tenha sobre a coletividade seja o inegável, eterno e universal sentimento de "justiça'' que todas as sociedades tendem a construir: "a cada um o que é seu, à sociedade o que é seu, segundo uma igualdade, uma Justa medida'', já dizia São Tomás de Aquino, entendendo-se aí que, uma vez praticada uma ação delituosa, esta deve ser reparada proporcionalmente, e, nesse sentido, alguns - e não é o caso do célebre Doutor Angélico- buscam um "equilíbrio'' quase absoluto entre crime e sanção -  isso, claro, nas culturas mais primitivas, como já ensinou a tosca escrita do Código de Hamurábi. Acontece que, não obstante os avanços morais e a transformação do conceito de "justiça'', a ideia do "olho por olho, dente por dente'' continua sendo o mais elementar e popular ideal que, segundo a opinião dominante, deve nortear o Estado e suas leis; é, por sua vez, a "origem'' da ideia de justiça, que continua tendo um significado de "proporção, igualdade, equilíbrio'', como bem notou Aristóteles. Essa noção talionesca de justiça, simples, didática e detentora dos charmes cativantes que só as definições extremistas possuem, é a principal bandeira da "cruzada'' que vem sendo empregada por alguns políticos e classes sociais para pressionar uma mudança constitucional que efetue a redução da maioridade penal. Nada melhor, para alguns dos mais apagados políticos do país, que erigir como bandeira a própria justiça, e cavalgar, estreladamente, na indignação contra a "injustiça'' que o tratamento diferenciado aos menores representam aos olhos do eleitorado, rumo às glórias eleitorais e, consequentemente, garantindo seus tronos no Congresso Nacional. Mesmo que isso represente um grande retrocesso e uma desastrosa iniciativa que, equivocadamente bem intencionada, possa agravar ainda mais o problema notável da delinquência infanto-juvenil.

A investida dos setores político-sociais sobre a matéria baseiam-se em três frentes. A PEC 74/2011, de Acir Gurcacz (um político que é filiado a um partido hipoteticamente esquerdista), é a proposta mais inusitada: reduz a maioridade penal, em certos crimes mais graves, a 15 anos. Já a PEC 83/2011 é, de longe, a pior: reduz, plenamente, a maioridade penal para 16 anos, em todos os crimes, sem falar que torna tal idade o marco para o atingimento da plena capacidade civil. Ou seja, aos 16 anos, o indivíduo poderá casar, celebrar negócios etc, e, por outro lado, deverá votar, findando com a facultatividade do voto, que passa a ser obrigatório. Na prática, unifica o regime da maioridade penal e civil em um único marco.

O "linha-dura'' Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, depois de um crime trágico e cruel cometido por um menor em seu Estado, propôs aos senadores e deputados um endurecimento da legislação punitiva sobre os menores de idade. Incorporam suas ideias o aumento do tempo máximo de internação dos menores nas Fundações Casa de 3 para 8 anos, além da criação de um "Regime especial de atendimento'', uma espécie de instituto intermediário, no qual seriam "enquadrados'' os jovens que completarem mais de 18 anos e estiverem "cumprindo medida sócio-educativa'', sendo assim afastados dos que ainda permanecessem menores. Automaticamente, aqueles que praticaram crimes hediondos ou tivessem participação em motins e rebeliões (o que é comum...) destinar-se-iam, uma vez acima dos 18 anos, ao Regime especial. Na prática, trata-se de uma penalização real que transplanta a ideia básica do Regime disciplinar diferenciado (que estabelece uma execução penal mais rígida para os praticantes de crimes hediondos, reincidentes etc), odiado instituto do direito penal, ao sistema punitivo dos menores de idade. Apesar de não alterar a maioridade penal e seu marco, na prática, acaba produzindo boa parte de seus efeitos.

 Por fim, o senador Aloysio Nunes apresentou um "meio-termo'', que vem recebendo amplo apoio na CCJ do Senado e tem parecer favorável de Ricardo Ferraço, relator da proposta: por esta, apenas em crimes mais graves (estupro, homicídio qualificado, participação em grupo de extermínio e demais crimes hediondos) considerar-se-ia plenamente punível aquele que estiver acima dos 16 anos, com a ressalva de que o juiz - e tais casos deveria ser julgados por juízos próprios- só poderia fazê-lo caso vários estudos técnicos de especialistas apontassem o pleno discernimento do infrator, decretando assim a "imputabilidade''. Ou seja, apesar de sedutora por não incorporar os radicalismos próprios das duas outras propostas, a PEC de Nunes apresenta algumas falhas evidentes. Em primeiro, a outorga ao juiz da competência de "decidir'' sobre punibilidade ou não (ou seja: "esse menor pode ser considerado um maior de idade?'') do infrator relativiza um direito fundamental do menor de 16 anos, positivado na constituição: a própria garantia dos 18 anos como marco da responsabilidade penal. A questão é: em nome do direito a justiça (?) e à segurança, pode o juiz relativizar um direito fundamental do adolescente? Quem teria mais peso na balança hermenêutica dos princípios? Dizem os teóricos do princípio da proporcionalidade que a redução de um direito fundamental deve ser meio absolutamente necessário à consecução de outro direito fundamental, cujo sacrifício importasse em maior dano; assim, diriam os defensores da redução, a sociedade "ganha mais'' segurança e justiça do que os jovens ganhariam caso seu direito prevalecesse, e o dano ao direito é menor, considerando o caso da segurança ser sacrificada em nome da garantia dos 18 anos. 

Será mesmo? 

Os que tem vivência na área da aplicação do direito penal sabem que, muitas vezes, conceitos complexos como os direitos em questão são muitas vezes palavras-vazias que justificam decisões baseadas na equidade - no "achismo', diga-se, estimativamente. Abre-se uma brecha para a indeterminação jurídica que pode embasar aplicações siderais da lei, mesmo que tal atividade tenha de ser embasada em pareceres técnicos. Esse é outro dos problemas: o enorme custo que representaria constituir toda uma estrutura para "classificar'' quem "tem discernimento ou não'', representada por psicólogos, técnicos etc. Como se o discernimento pudesse ser "quantificado'' como se afere a massa de um objeto ou a temperatura de um corpo! 

Ah, essas tentações, dentro da ciência jurídica, de simplesmente importar metodologias de outras ciências como se estas pudessem garantir alguma objetividade ao indeterminado e impulsivo Direito, que tanto espelha as parcialidades! O máximo que tais estudos poderiam fazer seria "estimar'' a plena capacidade volitiva do "agente'', o que, conjugada com a técnica de "balanceamento'' do princípio da proporcionalidade efetuada pelo juiz (vale a pena mandar o jovem para a cadeia, restringindo seu direito fundamental, em nome da segurança social?), pouco poderia, em teoria, dividir com precisão "aqueles que entendem e que não entendem'' as consequências de seus atos criminosos.

Por outro lado, a proposta tem seus atrativos. Como mais de 90% dos crimes cometidos - ou infrações...- pelos jovens abaixo dos 18 anos não tem potencial lesivo - o velho furto, porte de drogas etc-, a mudança acabaria atingindo os poucos responsáveis pelos crimes bárbaros tão divulgados pela mídia, e que insuflam os clamores populares em prol da punição impiedosa dos "de menor''. Ou seja, ao invés de permitir-se que assassinos e estupradores juvenis se escudassem em um direito fundamental - e já dizia Ulpiano que, se um direito é aplicado literalmente, sem exceções, como preceito absoluto em todas as situações, ter-se-ia injustiça: "summum jus, summum injuria''!-, tendo o mesmo tratamento que o ingênuo ladrão de comida ou portador de maconha, instituir-se-ia uma forma de tratar igualmente aqueles que cometeram infrações díspares: se um assassino e um mero ladrão acabam na mesma Fundação Casa, pouca distinção haveria entre eles, sendo assim juridicamente válido, e até necessário, que ambos fossem tratados segundo suas ações, sendo o primeiro punido como "adulto'', e o segundo, como "menor''. Essa, de fato, seria uma aplicação correta do princípio da igualdade em sua matriz aristotélica: "tratemos os desiguais de maneira desigual, segundo suas condições, equilibrando-as''. Mas não é só com base em formalismos pode-se decidir sobre uma questão de tão grande monta. É preciso romper os limites gélidos da dogmática e principiologia jurídicas e adentrar à realidade flamejante do panorama social em que se vive.

O problema real é que, ao punir um jovem, mesmo que esse seja precisamente consciente de seus atos e autor de crimes chocantes - na expressão datenista do problema...- como se adulto fosse, este iria parar nos mesmos presídios e penitenciárias dos adultos. E, da mesma forma que os mais de 80% dos presidiários do país, que nessas casas obscuras adentram por crimes sem potencial lesivo, e dela saem como criminosos profissionais, tornando-se, em mais de 50%, reincidentes, assim acabariam estes jovens. A ressocialização, palavra mágica e mais mítica que o el dourado perdido, jamais teria como se efetivar. Nosso sistema penitenciário não recupera, não transforma, não concientiza e sequer pune como deveria: apenas massacra almas, transforma homens em farrapos morais, concentra toda a sujeira que deveria lavar e a intensifica em todos os que por lá passam. O que faria com jovens menores de 18 anos? Sairiam de lá com que perspectiva de vida, eles, estigmatizados desde a tenra idade, marcados como criminosos da mesma forma que o gado é chumbado para o matadouro? Estaríamos, além de inchar o sistema penitenciário já a ponto de estourar com sua crônica superlotação, a dar corda em uma bomba-relógio: os jovens que mandaríamos para a cadeia um dia dela retornariam, e se já os julgamos tão ruins antes, como os julgaremos depois de sua volta? E o que farão eles com a sociedade que os rejeitou uma vez, e certamente rejeitará outra? Como política criminal, promover uma mudança que importe em punir mais pessoas, mesmo que seja de forma mais restrita como a apresentada por Aloysio Nunes,  simplesmente agravaria, a longo e médio prazo, os problemas sociais da delinquência juvenil, embora, a curto prazo, proporcionasse uma falsa sensação de satisfação do senso comum de justiça, que propiciaria doces frutos eleitorais para aqueles que se dizem porta-vozes da sempre injustiçada classe média. 

Assim, reduzir direitos para, pragmaticamente, solucionar problemas práticos de segurança social não se vem mostrando muito eficaz, historicamente falando. A introdução do RDD, da lei de crimes hediondos e a enorme penalização simbólica que explodiu desde meados dos anos 1990, em que pese reduzirem direitos e garantias fundamentais, não conseguiram combater o galopante aumento do número de infrações. Iremos, agora, penalizar mais, tendo em vista essa desastrosa experiência? 

Há mais de 20 anos, o Brasil viu o problema da violência explodir. Como remédio, adotou o caminho mias óbvio: reforçou as polícias militares, contratando mais soldados, equipamentos, viaturas; expediram-se leis penais cada vez mais duras e guiadas por forte comoção social; construíram-se presídios em mais que o dobro dos existentes. A chamada política de tolerância zero terminou, décadas depois, legando ao país o aumento de 1/3 no número de assassinatos e fazendo com que o numerário de presidiários saltasse de 80 mil para mais de 500 mil. O encarceramento em massa, muitas vezes em caráter cautelar (ou seja, prende-se o "acusado'' em meio ao inquérito policial e ao processo penal, sem se ter sequer certeza de sua culpabilidade) foi desastroso para o país. Isso por não por causa da frouxidão (muito pelo contrário) de uma legislação que criminaliza crimes hediondos e instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado, mas sim pela incapacidade em se suprimir a reincidência, que supera a marca dos 80%. Criminalizar condutas e expandir a atuação de um direito penal hipertrófico é o único caminho a não se seguir, e incluir a juventude nesse triste destino é dar continuidade à essa política que só fomenta ainda mais a violência.

O pior de tudo é a iniciativa do senador Ivo Cassol de levar o tema a "plebiscito'' nacional, evitando discussões legislativas e livrando os políticos do ônus de decidir o problema. O fato é que 89% da população, em pesquisas recentes  do DataSenado, é a favor da redução, sem entender de fato o problema e portando o velho senso de justiça talionesco. Uma "justiça'' que, sabemos bem, nada tem de justa, uma vez que sua cruel proporção ridiculamente matemática e seu tratamento igualmente pesado para todos resulta na morte da verdadeira justiça, piorando o problema que virtualmente combateria e, ainda mais, violando o principio da isonomia e os direitos dos jovens menores de 18 anos.

Uma questão que, particularmente, defendo é a responsabilidade social de cada cidadão. Se é certo que vivemos em uma sociedade injusta, cujas estruturas econômicas e morais os condicionam a reprodução dessas injustiças e desigualdades, temos uma quota de responsabilidade pelos subprodutos que a sociedade consumista, necessariamente, regurgita contra nós. Assim, a grosso modo, quem arma o jovem que nos assalta somos nós mesmos, ao não mudarmos nosso sistema educacional e garantir a ele, pelo menos, uma chance de escolher entre o crime e a justiça, e toda vez em que votamos, como aqueles velhos hábitos morosos e irracionais que temos ao coçar o nariz como se fosse uma atitude banal, em políticos como os que defendem a redução da maioridade penal e a manutenção do status quo social. Se é certo que a vontade humana é livre, é certo também que ela é condicionada pela realidade sócio-histórica do indivíduo e mesmo suprimida por elas: entre a liberdade e as necessidades, como uma tese e uma antítese, o criminoso adota uma síntese, usando sua liberdade em excesso para suprir suas necessidades - cujos causadores indiretos somos nós, concentradores de renda, consumistas, alienados que pouco fazem pelo mundo. Eis a formulação hegeliana do crime; a sociedade e nós somos responsáveis, em parte, por ele! Seria de grande imaturidade, injustiça e falta de humanismo procurar um bode expiatório- o jovem infrator-, e nele descarregar nossa fúria acumulada não só contra seus crimes, mas contra todos os crimes, da mesma forma que os antigos romanos faziam ao jogar criminosos - na maioria, que eram detidos por roubar pão para não morrer de fome- aos leões, para delírio do povo que, distraído, não se importava da tirania dos imperadores e seus asseclas patrícios. Temos um incêndio - a violência- para apagar: ora, e tentaremos extinguí-lo jogando mais lenha na fogueira, alimentando o fogo, combatendo violência com violência? O fogo só se extingue pela água ou pelo ar, pelos seus contrários! É isso que temos de fazer, recuperar e ressocializar esses jovens infratores, quebrando o infernal ciclo da violência (comete-se um crime, seguindo-se uma pena, seguida de novo crime - reincidência- seguido de novas penas mais altas...) e retirando o combustível do incêndio, que morrerá ao consumir a última cinza de violência. Nós alimentamos esse fogo, e podemos apagá-lo!

Repudiadas as propostas de redução da maioridade penal, fica a pergunta, tão utilizada como argumento e cartada final dos defensores do endurecimento penal: se penalizar não resolve, o que solucionará o surto de violência que vive-se hoje, que agora se alastra, disseminando-se pelo anteriormente pacífico interior do país, onde a presença do Estado é precária e cambaleante? A resposta é clara aos de bom-senso. Não há como "resolver'' um problema social de raízes tão profundas e historicamente complexas com as penadas do legislador, nem a curto, nem a longo prazo. Estas podem, segundo von Kirchman, transformar bibliotecas inteiras em lixo, mas não tem o condão de transformar o Brasil em um país mais seguro por si só. Já temos leis de mais, eis outro problema! Reduzir a maioridade penal é jogar o problema da delinquência juvenil para debaixo do tapete. A verdadeira solução está muito além disso.

Pouco podemos fazer, a não ser recuperar o falido sistema de internação (as Fundações Casa) de menores infratores, deixando de concebê-los como "projeto de prisões'' para reinventá-los em um espaço no qual o jovem possa ser sim punido, mas que tenha meios de reinserção social, com a instalação de cursos técnicos, estrutura digna, continuação dos estudos, acompanhamento psicológico e médico real; e isso, claro, estabelecendo tratamentos diferenciados de acordo com o "crime'' cometido pelo menor, implantando meios de propiciar um regime mais rígido para quem cometer infrações graves. É preciso fazer o possível para que estes jovens infratores possam ser reformados e que, acima de tudo, não possam "reincidir''. Trata-se de uma medida paliativa, com a qual poderemos ganhar tempo para atacar as raízes reais da delinquência juvenil: a desigualdade social, a pobreza, a miséria, a falta de perspectivas, cuja única solução é a prestação de educação pública de qualidade para todos, junto com toda uma infraestrutura assistencial pública, que, tal como nos paraísos da social-democracia escandinava europeia, possam simplesmente proporcionar tanto ao jovem pobre quanto ao rico meios de, honestamente, obter o próprio sustento. Essa revolução educacional teria, ademais, outro efeito: o de operar uma mudança no paradigma ético do brasileiro, que, enfim alfabetizado, passaria a reprovar as tradicionais manifestações de ilegalidades com as quais nos acostumamos. E, quem sabe, poderia-se enfim extirpar do espírito do povo esse apego irracional à um tipo de "justiça'' barbaresco, no qual o "olho por olho'' tem como único efeito de, no fim- magistralmente apontado por Gandhi-, deixar todos cegos, como são os políticos que propõem a redução da maioridade penal, divisando apenas as vantagens eleitorais que podem dela retirar.