sexta-feira, 6 de abril de 2012

A teoria dos Três Poderes no Brasil: um escândalo nada liberal



É comum que se fale, em Direito e na Ciência Política, na famosa doutrina francesa da Separação dos Três poderes, formulada pelo brilhante Charles Secondat, o Barão de Montesquieu. Sem adentrar muito em questões de mérito, o velho Barão, influenciado pelo médico e agregado político John Locke, acreditava que um Estado estável deveria, antes de tudo, desconcentrar seus poderes componentes, confiando-os a diferentes órgãos, que se fiscalizariam reciprocamente. A moderação, então, o equilíbrio do sistema, porém, seria muito mais do que uma simples divisão formal de Poderes- administrar a Coisa pública, legislar e aplicar as leis-, mas uma verdadeira repartição de tais funções estatais aos grupos sociais que possuíssem poder econômico e cultural. Ou seja, as classes sociais que exercessem poder, socialmente, deveriam exercer as funções estatais, formalmente, tornando a divisão dos poderes também material. Se as forças sociais comandassem as forças políticas, conclui Montesquieu, o Estado seria uma instituição estável e pronta a comandar uma nova era de progressos, livre dos conflitos sociais que já se principiavam minar o ainda não "Antigo'' Regime. Equilíbrio dinâmico, enfim, transplantado da física newtoniana para a elaboração de uma nova teoria do Estado. Assim, a burguesia e a nobreza legislariam, o rei administraria a coisa pública e manteria a segurança social e o judiciário (um poder apagado, "quase nada'', segundo Charles) apenas aplicaria mecanicamente as disposições legais, numa divisão de poderes moderada. Leis que eram relações necessárias oriundas da natureza das coisas, ou seja, os fatores sociais, econômicos e culturais que foram formalmente transformados em Lei pelo legislador- o que hoje se chama de fontes materiais do direito. Eis o "Espírito'' das leis.

Mais de dois séculos após a divulgação das ideias francesas no Brasil, vemos o quanto ela resta inaplicada (em seus aspectos formais), desde o advento da Constituição imperial de 1824, que instituiu o sistema da Separação de poderes francês, acolhido pelo liberalismo político como corifeu de suas lutas contra as falidas dinastias absolutistas da Europa, e meio ideal de permitir a livre circulação de mercadorias e o manejo do Estado pelo povo (entenda-se "burguesia''). Sem pretender realizar alguma espécie de troça de tão renomada teoria, aqui afirmo que ela, como todas as instituições políticas "importadas'' dos centros do capitalismo, acabou pervertida, mergulhada em uma confusa espiral política, onde o Estado, Igreja, latifundiários e comerciantes nacionais e estrangeiros se confundiam num mesmo pólo social, em torno do qual congregavam interesses comuns que, para dizer o mínimo, engendraram vínculos tão fortes como as relações simbióticas presentes em certos seres na natureza. E assim, chamaremos essa confusa e complexa entidade normativa, regulativa e repressora- as funções originais dos três poderes- de "simbiose dos poderes'', uma adaptação tupiniquim da teoria de Montesquieu.

Na verdade, pretendemos demonstrar aqui o grau de correção dos aspectos materiais da teoria de Montesquieu- de como os fatores sociais e econômicos constituem o corpo das legislações e, essencialmente, nos centraremos na ideia de que a divisão do poder tende a emular ou a corresponder à divisão das forças sociais, naturalmente pendendo a um equilíbrio político.

O primeiro ponto da Simbiose de Poderes é de que ela não retrata ou descreve as funções do Estado. Este é visto como uma parte- meramente formal, que concentra numa máquina repressora os interesses difusos das classes que o comandam- de um processo político muito maior. Tratamos aqui de "competências'' repartidas entre instituições sociais, classes, atividades profissionais e o próprio Estado. Soberania, território e povo são apenas elementos abstratos que escondem os verdadeiros mandatários do poder.

O segundo, e mais importante talvez, é de que pressupomos um acordo entre essas forças sociais, no sentido em que, ao longo do tempo, e no decorrer das necessidades materiais, tais entes articularam-se para    elaborar uma divisão de poder que equilibrasse as forças políticas na sociedade brasileira, permitindo sua estabilização- com vistas, é claro, ao seu controle, e à obtenção dos próprios objetivos, seja a maximização do lucro, seja a manutenção do poder já conquistado. Trata-se de um "contrato social'' implícito, jamais declarado, cuja estabilidade bamboleia em tormentas econômicas e sociais, ora permitindo que o contrato seja retomado, ora possibilitando sua quebra, numa luta das forças sociais pelo poder e pela implantação de um novo equilíbrio. Assim ocorreu quando da eclosão da Revolução de 1930.

O derradeiro e terceiro ponto ao qual reportamos o leitor diz respeito à identificação dos "atores'' sociais que se firmam como "titulares'' dos três poderes que comandam o Brasil; cabe lembrar que, longe de "separados'', os poderes políticos do Brasil integram-se como diversos organismos interdependentes. O poder de fazer as regras pelas quais se devem pautar toda a sociedade- a faculdade de legislar- se configura  como prerrogativa conjunta entes econômicos e midiáticos (estes últimos, como veremos, derivam seu poder normativo do fato de que também mediam conflitos- exercendo as funções "judiciárias''). Os entes econômicos subdividem-se em três grandes grupos, que agem por vezes uns contra os outros, mas cujos momentos de aliança resultam em "milagres'' econômicos tão comuns na história brasileira: o latifúndio, antigo comandante único do Brasil, agora terceiro maior campo de agronegócios do mundo, produtor de mais de U$ 200 bilhões em exportações;  a indústria, que assumiu o trono de poder vago após a década de 1930, sobrevive a partir do monopólio que possui de certos setores da economia e das medidas protecionistas efetivadas pelo "governo oficial'', possuindo o mercado interno brasileiro à sua disposição (e, assim, movimentando cerca de U$ 1 trilhão, oriundos do consumo interno das famílias); e, finalmente, os protagonistas da atual cena econômica brasileira, os famosos Bancos, "públicos'' e, principalmente, privados. Estes últimos têm uma taxa de lucro (os ditos "spreads'' bancários, a diferença entre a taxa de juros de um empréstimo feito ao banco de um feito pelo banco) que supera os 55 pontos, com taxas de juros ao consumidor acima dos 100% ao ano, mantidas artificialmente. Além disso, controlam 45% do PIB, que constitui o crédito disponível, e as maiores instituições são credoras de mais de R$ 1,8 trilhão, devidos pelo Governo, e de pelo menos 100% do PIB brasileiro (cerca de U$ 2,1 trilhões), juntando-se aí a Dívida Pública, das famílias e de instituições financeiras menores. Tais entes controlam toda a economia, seu salário, o meu, os indíces de inflação, o preço do arroz, seu cartão de crédito... e, claro, são os principais financiadores de campanhas eleitorais e, ainda mais, de escritórios de lobistas profissionais. Esses indivíduos são encarregados de realizar "pressão'' sobre os políticos oficiais, visando obter vantagens para seus patrões, também produzindo projetos de lei, programas governamentais ou mesmo planos econômicos. 

Um exemplo da força dos lobistas: dos mais de 2300 atos normativos emitidos pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal em 2010, mais de 90% versaram sobre pautas econômicas (desoneração de certos setores da indústria, alíquotas de impostos mais leves para produtos do agronegócio, autorização de empréstimos do BNDES, liberação de crédito por bancos públicos etc...). Eis o motivo da "morosidade'' legislativa que o Brasil enfrenta: os parlamentares tem de cuidar, em primeiro lugar, dos interesses daqueles que os elegeram- que, desnecessário dizer, não foi o "povo''. E, claro, são muito bem remunerados, junto com os lobistas, por esse serviço patriótico. Em suma, as leis e atos normativos com os quais o Brasil é governado são feitos sob medida dos entes econômicos; o homem comum continua a ver a impunidade dos criminosos, confusas legislações tributárias, previdenciárias, processos civis e penais irracionais, normas constitucionais jamais aplicadas. Afinal, não interessa tratar de tais assuntos. Entidades econômicas atuam, por meio de seus representantes no Congresso Nacional e de seus lobistas, comandando a produção das regras econômicas (sejam do Direito Civil, econômico ou tributário). Em outro aspecto, a ser analisado mais adiante, diz respeito à relação entre as instituições financeiras e o Governo Federal- que, tendo em vistas os interesses dos primeiros, elabora uma política econômica e monetária cujos princípios são fixados pelo mercado. Os maiores detalhes serão vistos quando descrevermos o Poder Executivo brasileiro- exercido pelas grandes empreiteiras, pelo Exército, pelas oligarquias e os próprios Bancos. Os parlamentares aqui citados são peças essenciais também nesse penúltimo aspecto. 

Aqui finalizamos a primeira parte dessa pequena reflexão acerca dos Três poderes do Brasil. Seguirão as exposições do já citado "Executivo'' e do "Judiciário''. E o escândalo tropical, que revirou o refinado liberalismo europeu às avessas em sua aplicação à realidade brasileira, chegará à conclusões surpreendentes- aguardem os próximos capítulos!

Nenhum comentário:

Postar um comentário