domingo, 8 de abril de 2012

Livros para não ler: "Guia politicamente incorreto da História do Brasil''


                                    Luís Carlos Prestas, Machado de Assis, Dumont, Plácido de Castro, Zumbi e Vargas: memória histórica brasileira em perigo

Certo dia, um eminente professor da Faculdade, em aula ministrada sobre a evolução do sistema de vigência de leis no Brasil, citou, talvez para matar o tempo diante de um assunto não muito interessante, alguns livros que ele considerava adequados quando se fala de História do Brasil. Um deles, para minha surpresa, foi o "Guia politicamente incorreto da História do Brasil''. Escrito por um jornalista. Isto mesmo. Um jornalista... da "Veja''.

Por respeito ao nobre jurista, acabei por conseguir um exemplar emprestado e o li, ansioso pelas informações nele contidas. Tive um banho de água fria.

O autor desta amálgama de contradições históricas absurdas inicia a sua "obra'' expondo seu objetivo com semelhante aberração: desmistificar os mitos que, segundo ele, caracterizam a história nacional. O primeiro deles é a própria visão do Brasil como um país explorado, algo que ele classifica como um "clichê'' imposto pela historiografia marxista a todos os países subdesenvolvidos. Assim, propõe recontar alguns momentos da História nacional, sob o ponto de vista da direita politica (que ele denomina de "visão politicamente incorreta''). Ou seja, ignora-se todo o processo de expoliação que o país sofreu- Leandro Narloch, o autor do "Guia'', se limita a dizer que a história dos países latino-americanas é sempre contada de tal forma, por "problemas de identidade''. Para enaltecer a identidade nacional...

Em seguida, o servo da família Civita ataca nossos pobres indigenas. Segundo ele, os portugueses ajudaram os índios a preservar a floresta e os retiraram da idade da pedra- ele compara a chegada dos portugueses ao Brasil com a descida dos integrantes de uma nave de "guerra nas estrelas'' em nosso mundo, trazendo-nos coisas como sabres jedi em troca de nossas riquezas... Narloch vai mais longe ao afirmar que os indíos eram tão incapazes de trabalhar a terra que passavam por períodos de fome, não conheciam a roda ou mesmo tinham tanto desprezo pela sua cultura que a abandonaram pelas ideias europeias... foi isto que, segundo ele, fez "desaparecer'' tantos indíos... gostaria de saber como uma civilização tão decadente quanto a indígena possuia mais de 20 milhões de membros, mais que França, Inglaterra e Portugal juntos, no século XV, e como, em nome da inteligência, conseguiram sobreviver 10 mil anos sendo tão incapazes.

O próximo passo de Leandro é destruir a visão dos negros escravizados como vítimas de um sistema injusto. Diz-se que africanos criaram a escravidão e lutaram contra ela; que escravos possuiam escravos, depois de forros (libertos); que o sistema acabou por pressão inglesa, baseada em ideais humanitários... é preciso ter muita boa vontade para crer nisto...

Quanto ao capítulo dedicado ao "Samba'', sem comentários. Aqui, o autor apenas conta a história do popular ritmo brasileiro destacando o fato de que este nasceu de uma junção de culturas musicais e que não há nada "autêntico'' no nosso sambinha... como se o fato dele provir de tantos ritmos diferentes não evidencie nossa maior característica: a mistura cultural, esta sim, criadora de uma cultura nacional sem paralelo no mundo. Original, sim, porque provêm do todo... alguém ensine ao Narloch o sentido de "originalidade'' em termos de cultura...

E quanto ao Acre e ao resto da Amazônica? Narloch conclui seus pensamentos sobre a história da anexação acreana ao Brasil com a seguinte mensagem: seria melhor que o Brasil tivesse pago para livrar-se dos estados do Norte. Simplesmente abandonado a área que, segundo ele, só dá prejuízo aos cofres públicos. Esquece-se dos milhões de brasileiros, iguais a ele, e da riqueza de uma região como a  amazônida. Entregá-los ao domínio da Bolívia ou dos EUA, é o conselho do "grande historiador'' da revista Veja.

Lembra-se de nosso maior artista, Aleijadinho? Segundo Narloch, a figura do homem que produziu as mais belas esculturas é uma invenção dos intelectuais do século XIX e dos modernistas. Um invenção muito empírica, vale dizer, porque o corpo de Aleijadinho foi analisado por várias vezes. E suas obras, reconhecidas como de sua autoria pelos maiores cientistas da arte da Europa.

Confesso, sobretudo, que gargalhei quando li a opinião do jornalista sobre a atuação dos comunistas no Brasil. Retrata-se Luís Carlos Prestes como um trapalhão; a Coluna Prestes é vista como um bando de malandros em busca de dinheiro e aventuras, matando e estuprando, literalmente, o interior do país para isto; chama-se de "ingênuos'' aqueles que lutaram contra a ditadura militar; mente-se desvairadamente, ao afirmar que a esquerda planejava um golpe militar antes de 1964; atesta-se que a guerrilha provocou o endurecimento do regime militar; afirma-se que o socialismo implantaria um regime mais sanguinário que o dos salvadores do capitalismo, os militares... aliás, a única boa menção é com relação ao "salvamento'' do capitalismo no país. Ah, quase esqueço: lembra da tortura? Narloch diz apenas que os militares "não tinham experiência'' em interrogar os presos... 

Ao longo do livro, Narloch diz que o Brasil é como um paciente que busca sua própria identidade, e que "inventa'' algumas para atingir tal objetivo. Ou seja, a visão do Brasil sobre si mesmo é mera mistificação, em torno de heróis nacionais e acontecimentos grandiosos, que, segundo ele, são frutos de uma historiografia "errada'', marxista, "politicamente correta''... 

Acho isto interessante. Me pergunto se, antes do marxismo, realmente se fazia historiografia neste país. Narloch esqueceu da história oficial do Brasil, dos grandes heróis, do positivismo histórico, da passividade do povo, que nela simplesmente não aparece, da ausência de conflitos sociais, do decoreba de datas e acontecimentos no ensino da História, das boas relações com as grandes potências, que, cheias de amor para dar, tanto fizeram pelo nosso país... a verdadeira história que merece tomates é a que, ainda hoje, aliena nossos alunos com datas e decorebas inúteis, destinados a enaltecer grandes heróis como Pedro I e Caxias, que não passam de farsas... 

Será mesmo, mister Narloch, que o fator econômico não prepondera? Você, meu caro leitor, vendo-se o que os países do G-8 fazem, hoje, por dinheiro, desconfiaria das barbáries que eles fizeram no passado, com o mesmo fim? Será que somos responsáveis pelo caos que é Brasil, ou o imperialismo não nos deu este grande presente? Por acaso, a guerra do Paraguai aconteceu por causa da "vaidade'' e "loucura'' de Solano Lopez, como se afirma no livro? Ah, eu acho que a saída para o mar através do Prata tem muito mais a ver com isto... assim como a política interna uruguaiana da época.

É inegável atestar o que um não profissional, com interesses meramente políticos, pode fazer ao tentar reescrever, sob um viés ideológico, a história de um país tão explorado, por dentro e por fora, como o Brasil. Na verdade, é uma das primeiras tentativas da direita brasileira de escrever sobre História, desde o fim dos anos 1920. E a nota é a mesma a ser atribuída quando os historiadores oficiais da República Velha se aventuravam a redigir e outorgar a história brasileira: zero, zero, zero... Ou melhor, expulsão do colégio, do país e das nossas livrarias.

Nenhum comentário:

Postar um comentário