domingo, 8 de abril de 2018

As quatro nulidades no mandado de prisão do ex-presidente Lula



Desde a última quinta, o mundo político brasileiro entrou em choque em a expedição, em tempo recorde, do mandado de prisão destinado ao ex-presidente Lula. Mesmo sem saber do que se tratava, muitos se aventuraram a dar pitaco de juristas - inclusive "juristas'' que no máximo leram algum resumão de internet sobre direito processual penal - e a bater palmas para a celeridade no combate à "impunidade''. 

Todavia, a impunidade - ou a sensação geral de - não justifica o atropelo às formalidades legais que um mandado de prisão deve possuir. Aqui, tentarei, de forma mais ou menos coloquial, demonstrar quatro nulidades presentes na "ordem de prisão'' de Luiz Inácio Lula da Silva, traduzindo, na medida do possível, toda a teoria e o rigor técnico-dogmático que a matéria exige. 

I - Pequena introdução.

O modelo de privação da liberdade brasileiro é centrado no Judiciário. Com exceção dos crimes militares, o cometimento de crimes civis enseja a prisão em flagrante, caso o delito ocorra às vistas do condutor (aquele que prende o mal-feitor) ou tenha acabado de ocorrer; a prisão temporária, modalidade curta de privação da liberdade que almeja evitar que o suspeito destrua provas, enquanto e interrogado; a prisão preventiva, baseada no risco que o suspeito oferece para a ordem pública, pela sua capacidade de continuar a cometer crimes, bem como pelo perigo que sua ação livre representa para a apuração das provas que instruirão o futuro processo penal, além do risco de fuga; e, por fim, a execução da sentença penal condenatória, onde, ao contrário das demais modalidades, não se fala em provisoriedade, mas em prisão definitiva, pelo tempo da condenação. 

Em todas estas, o Judiciário se faz presente. Sem a ordem fundamentada (na lei, entendendo-se esta em sentido estrito, considerando-se o conjunto piramidal formado pela Constituição e pelas leis como um verdadeiro "bloco de legalidade'') de um juiz, qualquer prisão é absolutamente ilegal. As ilegalidades podem se dar desde a incompetência (a falta de poder jurídico da autoridade que decretou a prisão) do juiz, ausência de formalidades essenciais no mandado (como a escrita errônea do nome e localização do detento) ou mácula a direitos e garantias fundamentais. O mandado de prisão expedido pelo EXMO Juiz Sérgio Moro se enquadra na segunda e na terceira hipóteses.

II - Da ilegalidade por ausência de comunicação processual entre instâncias.

É interessante notar que, prevendo a iminente prisão quando do julgamento dos embargos de declaração por parte do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a defesa do ex-presidente tenha interposto um habeas corpus preventivo (um remédio que impede a prisão ilegal iminente do paciente, a vítima do ato ilegal), no Superior Tribunal de Justiça (o órgão competente para conhecer de coações ilegais por parte de ato de desembargadores federais), que, negado, ensejou a interposição de outro habeas corpus, perante o Supremo Tribunal Federal.

Conforme é de conhecimento geral, o STF denegou a ordem (o pedido de proteção ante à coação ilegal levantada pela defesa; significa, basicamente, que o STF entendeu que não é contrário à Constituição a execução da pena após o julgamento em segunda instância), em um julgamento acompanhado pelo país inteiro. Ocorre que o resultado do julgamento não foi comunicado, formalmente, ao TRF da 4ª Região.

Mais que uma firula processual, a ausência de comunicação das decisões entre as instâncias (no caso, da maior instância judicial do país, o STF, ao TRF 4) é um atentato direto à eficácia dos atos processuais praticados, visto que, para produzir efeitos, uma decisão judicial, tal como um ato administrativo, precisa ou ser publicada ou comunicada ao destinatário. 

No caso, a autoridade coatora (o desembargador-relator do processo contra Lula no TRF 4 ou o presidente do órgão) deveria ter sido notificado da decisão do STF denegando o HC; ora, não se trata de mera formalidade. Não há a produção de efeitos antes de tal notificação - um mero documento, em formato PDF, digitalizado e com um "recebido'' por parte do destinatário. Sem isso, chega-se a um nível tal de baixaria processual que não é mais necessário a um tribunal superior notificar o inferior, via malote digital, carta rogatória ou qualquer outro meio de notificação oficial; basta apenas que os membros do tribunal inferior liguem a TV ou consultem os sites de notícia para terem conhecimento das decisões dos tribunais superiores e, assim, tomem as medidas cabíveis... 

Assim sendo, houve flagrante descumprimento de formalidade legal, visto que as comunicações entre juízes e tribunais devem se dar de acordo com o formato prescrito pelo Código de Processo Penal (via cartas precatórias, quando um juiz se comunica com outro de igual hierarquia; carta rogatória, quando um Tribunal se comunica com um juiz inferior; carta de ordem, quando um tribunal ou juiz se comunica com uma autoridade judiciária estrangeira; ou uma simples notificação genérica, utilizada para todos os demais casos), fazendo incidir o art. 564, IV, do CPP, que diz haver nulidade quando ocorre a omissão de formalidade essencial ao ato - quer mais essencial a uma decisão judicial o ato da notificação entre um tribunal e outro, sem a qual a decisão não possui eficácia?

A ausência de notificação oficial vicia, na origem, o ato do TRF 4 que ordenou ao Juiz Moro expedir o mandado de prisão; e, como se há de ver, foi a senha para o cometimento da próxima nulidade.

II - Da quebra de isonomia.

Em que pese mais polêmica, é impossível deixar de notar uma patente quebra do tratamento igualitário devido ao Tribunal ante a seus condenados. Não se pode negar que, além do próprio processo criminal em si ter tramitado com uma velocidade avassaladora, a expedição de uma ordem de prisão com menos de 24 h do julgamento de um HC no STF, do qual não houve notificação formal, superou todos os demais casos já tratados pelo TRF 4, que não aguardou a notificação do STF para emitir o mandado, como o fez em outros casos.

Assim, ao adotar uma postura diferenciada para o caso do ex-presidente, determinando o início do cumprimento da pena de forma tão rápida (seguindo-se à expedição de mandado de prisão contra o ex-presidente pela 13ª Vara Federal de Curitiba em singelos 22 minutos após receber, corretamente, a notificação do TRF 4 nesse sentido) o TRF 4 e o juiz de primeira instância adotaram uma celeridade incomum e prejudicial ao acusado, coisa que não fizeram com outros acusados em outros processos. 

Isso não quer dizer que o ex-presidente tinha "direito ao atraso'', mas sim que, em se verificando um certo ritmo de trabalho comum no TRF 4 e na vara de primeira instância que deixam o tempo de expedição de um mandado de prisão em X dias, adotar X/2 dias para um condenado específico evidencia uma predisposição especial em executar a pena de tal sentenciado mais rápido que os demais, o que, de forma clara, configura mácula à imparcialidade dos julgadores do TRF 4 e da Vara Federal de Curitiba. 

Para ficar claro: se um juiz trata de "agilizar'' a execução da pena de um condenado, destoando do tempo de execução normal para os demais sentenciados, demonstra claramente estar contaminado por paixões e convicções pessoais e, ao representar o Estado-juiz, fere de morte o direito à igualdade do condenado, que passa a ser tutelado por uma autoridade judiciária que não é imparcial, mas tem um especial interesse em sua prisão, a ponto de diferenciá-lo, de forma negativa, dos demais condenados. Trata-se da aplicação de rigor excessivo contra um indivíduo, aplicando a lei de forma diferenciada, fora do tempo de espera normal, agravado pela provável "coordenação'' entre a primeira instância (vara federal) e a segunda instância (TRF 4), onde essa última ordenou a execução da pena sem ter sido notificada pelo STF para tal, e a primeira emitiu o mandado de prisão em tempo recorde. 

Aqui, se trata de mácula ao direito fundamental da igualdade.

III - Da ausência do esgotamento recursal em segunda instância. 

Como um jogo de dominó cujas peças derrubam umas às outras, uma nulidade acaba implicando em outra. O tratamento "especialmente mais rigoroso'' com o ex-presidente - para se usar de eufemismos - implicou, acima de tudo, na ordem para o início da execução da pena antes mesmo de encerrada a atuação do TRF 4 no processo criminal em questão. 

Em que pese o próprio Tribunal ter declarado, no acórdão que negou a apelação do ex-presidente que, in literis "tão logo decorridos os prazos para interposição os prazos para interposição de recursos dotados de efeito suspensivo, ou julgados estes, deve-se ser oficiado à origem para dar início à execução das penas'', confirmando que a pena só pode ser executada depois de ser julgado o último recurso possível a ser manejado pela defesa ainda perante o próprio TRF 4 (o que, no caso, consistiria em um embargos de declaração questionando os primeiros embargos de declaração interposto contra o Acórdão que julgou a apelação), o mesmo tribunal determinou a execução imediata da pena - sem ter sido notificado pelo STF da denegação do HC, sem adotar postura semelhante com outros condenados e, claro, sem se atentar para a existência de recursos possíveis de serem utilizados pela defesa ainda perante o próprio Tribunal. 

Explicando sumariamente, nesse sentido, a apelação de Lula foi julgada e, da decisão que a negou (e ainda aumentou a pena do ex-presidente), a defesa opôs um recurso (os embargos já falados), que interrompe o prazo de outros recursos e ainda suspende a eficácia da condenação. Ocorre que a lei diz categoricamente que qualquer decisão pode ser embargada e, inclusive, há entendimento pacífico que isso envolve a própria decisão que julga os embargos, desde que se alegue omissão (o tribunal não se pronunciou sobre determinada tese da defesa), obscuridade (o tribunal não foi claro em algum aspecto da sua decisão) ou ambiguidade (o tribunal adotou algum fundamento ou decisão de duplo sentido). 

Em suma, ainda havia o prazo de 2 (dois) dias para a defesa interpor novos embargos. Isso poderia gerar a contestação de que, assim, a defesa sempre poderia interpor novos embargos, impedindo o julgamento final em segunda instância; no entanto, o § 2º do art. 619 do CPP é claro em afirmar que o relator do processo no Tribunal pode indeferir, sozinho, os embargos que não preencherem os requisitos que acima listei, considerando-os meramente protelatórios. Tal possibilidade não escapou à argúcia do Juiz Sérgio Moro, que assim mencionou sua opinião sobre tal expediente: 

"Não cabem mais recursos com efeitos suspensivos junto ao Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Não houve divergência a ensejar infringentes. Hipotéticos embargos de declaração de embargos de declaração constituem apenas uma patologia protelatória e que deveria ser eliminada do mundo jurídico. De qualquer modo, embargos de declaração não alteram julgados, com o que as condenações não são passíveis de alteração na segunda instância.''

A argumentação de Moro é estranha. Basicamente, ele, o juiz de primeira instância, está a antecipar uma decisão - a de que novos embargos de declaração - que somente caberia ao TRF 4 e ao relator do caso perante tal órgão. Mais que isso: Moro usurpa a competência do TRF 4, de forma consentida com este, ao declarar que qualquer tipo de embargo oposto pela defesa seria protelatório. Não satisfeito, vai além e diz que o direito de interpor embargos ante o julgamento de outros embargos, assegurado pelo Código de Processo Penal, é uma "patologia'' que deveria "ser eliminada''. Fecha com chave de outro ao sentenciar que os embargos não ensejam alterações do julgado - esquecendo que os embargos de declaração podem sim, excepcionalmente, ter efeito infringente (ou seja, são capazes de alterar a decisão embargada) se assim o órgão competente entender. Basicamente, Moro diz que do acórdão prolatado pelo TRF 4 não cabe qualquer recurso, chegando ao ponto de invadir, em letras miúdas, a competência do tribunal ao qual ele mesmo está vinculado. 

Todavia, somente com a declaração do TRF 4 de que novos embargos interpostos são protelatórios de fato haveria o exaurimento de sua competência - não cabe a Moro esse tipo de decisão. 

Assim, se encerraria formalmente a jurisdição do TRF 4, permitindo-se o início execução da pena. Sem se aguardar esse prazo final, bem como o julgamento colegiado ou individual desse último embargo, não houve uso total das competências do órgão colegiado, pelo que não se pode executar, desde logo, a pena privativa de liberdade. 

IV - Da última nulidade. Da conclusão. 

O último ponto é o mais interessante de todos. Se resume, basicamente, ao comentário sobre uma curta frase, escrita em um livro muito especial, embora cada vez mais desprestigiado. 

Não me refiro à Bíblia, que embasa indevidamente jejuns políticos. 

Não me refiro a artigos jornalísticos, escritos por pretensos especialistas que fazem pesquisas no Google e posam de entendedores do assunto. 

Não me refiro aos artigos e entrevistas de juristas de aluguel ou partidários, que, em que pese gozarem de grande e notório saber jurídico, parecem ter esquecido as regras de interpretação textual básicas. 

Sim, o art. 5º, LVII, da Constituição Federal é de uma simplicidade que chega a evocar o antigo brocardo exegético de que "in claris cessat interpretatio'' (na clareza da lei, não há interpretação). Eu reformularia o ditado para "quando a lei é clara, descabem interpretações que distorcem-lhe o seu sentido salutar'': "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.''

Vamos por partes: "ninguém'' quer dizer que tal direito se estende a TODOS; "culpado'' quer dizer "condenado'' de forma definitiva; "trânsito em julgado'' nos lembra os verbos transitivos, que "transitam'' entre as palavras, pelo que podemos aludir que a sentença penal condenatória não mais transita - é, dessa forma, "imóvel'', ou seja, não será mais enviada para algum órgão superior reapreciá-la, se tornando inalterável. Essa junção de palavras quer dizer, simplesmente, que não se pode executar a pena de um condenado sem que este seja definitivamente condenado, sem que não mais caibam quaisquer recursos. Pense numa jarra de leite derramado. 

É um absurdo completo que a corte constitucional deste país ignore a singeleza de tal interpretação, para transformar "trânsito em julgado'' em "trânsito em julgado na segunda instância'' alegando que o "clamor social'' contra a "impunidade'', bem como que "o sistema anterior só beneficiava aos ricos'' e que "os recursos para cortes superiores só servem para protelar a pena''. 

Creio, sem nem pestanejar, que quando nem mesmo a mais alta corte do país respeita a Constituição que deve guardar, não se pode falar que, "se o STF chancelar, tá valendo''. Ora, se a Constituição proíbe o início da pena antes que a decisão condenatória se torne inalterável e impassível de ser reapreciada por outro órgão judiciário, estamos diante de não apenas uma nulidade, mas do esmagamento de um direito/garantia fundamental de presunção de inocência, que vicia, de forma insanável, qualquer decreto de prisão embasado em tal entendimento. 

Basicamente, o STF diz que o protelamento do início da pena é culpa dos acusados (que recorreriam demais), e não da sua própria desorganização e incapacidade e das do STJ. 

Tal atitude significa que a corte excelsa transfere a culpa pela demora no trâmite dos processos aos acusados, que somente estão exercendo o direito de terem suas condenações apreciadas perante o STJ e STF, direito garantido pela própria Constituição, da qual o STF se diz guardião. Esse direito basicamente some e nos deixa com o seguinte questionamento: imaginando que, depois de 4 anos da interposição de um Recurso extraordinário (esse, perante o STF), os ministros decidem que o recorrente foi condenado com base em uma lei que contraria a Constituição (ou que houve alguma nulidade que contrariou a CF) e libertam-no, como se pode justificar a esse cidadão o que foram esses quatro anos em que ficou detido "iniciando o cumprimento da pena''? Havia pena, e não há mais? Em resumo: como mandar iniciar o cumprimento da pena, se ainda existe chance de que a própria condenação seja extinta? O que fazer com os anos de pena cumpridos? Será que sumirão, como num passe de mágica, com as penadas imperiais dos ministros do STF? 

De toda forma, não se pode alegar um "problema prático'' para simplesmente reescrever, a bel prazer, a Constituição.

Especificamente, a Constituição está sendo "reescrita'', de forma especialmente prejudicial, para o ex-presidente Lula: mesmo que seu processo tenha tramitado em velocidade recorde perante Moro e perante o TRF 4, não havendo que se falar em "risco de impunidade''; mesmo que o TRF 4, instigado ou intimidado por Moro, negue-lhe os recursos a que ainda tinha direito (os embargos dos embargos), sem considerar que este não atrasariam em mais que uns poucos dias ou semanas o início da execução da pena; mesmo que o TRF 4 ordene a Moro que expeça o mandado de prisão de Lula, sem ter sido formalmente comunicado pelo STF da denegação da ordem (inaugurando a publicidade das decisões judiciais via Rede Globo); mesmo que (e aqui vai o mais grave) a maioria dos ministros do STF seja contra a execução da pena após o julgamento na segunda instância (no caso específico do julgamento do HC do ex-presidente, a ministra que decidiria a questão votou contra suas "próprias convicções'', denegando a proteção que ela mesma acredita que o paciente tem direito) - mesmo que tudo, absolutamente tudo, em seu caso escape aos motivos que levaram o STF a permitir a prisão após o julgamento em segunda instância, a seu caso foi aplicado tal entendimento.  

Essa extraordinária conjugação de fatores permitem uma triste, mas dura conclusão: o julgamento do ex-presidente Lula, pelo menos no que se refere à sua prisão antes do trânsito em julgado perante a segunda instância, foi absolutamente nulo, em diversas fases e aspectos. Foi um julgamento político, diferenciado, mas não para privilegiá-lo, mas para destacá-lo dos demais cidadãos e tratar seu caso com especial rigor.

Mais que simples nulidades, as ilegalidades cometidas em tais trâmites são perigosos precedentes que tem potencial para atingir a qualquer cidadão do país. Pois, oficialmente, qualquer um de nós pode simplesmente virar alvo de uma autoridade judicial e terminar sofrendo um "tratamento diferenciado'' com o bater de palmas geral de uma sociedade punitivista. 

"Eu sou você amanhã'' nunca foi um alerta mais lúcido. E digo que, quando os julgamentos fogem dos textos jurídicos (como a lei e a Constituição) para serem justificados e embasados segundo expectativas políticas ("anseio de punição dos corruptos''), todo e qualquer cidadão pode ser vítima de um tribunal de exceção. A violação de direitos fundamentais agride não só à "vítima'' específica, mas a todos os cidadãos do país, por extensão. 

Nunca antes a expressão "somos todos Lulas'' foi tão verdadeira.