terça-feira, 5 de abril de 2016

Um golpe no passado, um golpe no futuro


Parecia mentira, mas a democracia morria quando, no ato aparentemente legal do presidente do Senado, a presidência da República foi declarada "vaga'', em 1º de abril de 1964. Manipulando a legalidade, o presidente da Câmara assumiu o poder e baixou a cabeça para o "ato institucional nº 1'', que deu ao Congresso Nacional poder de eleger, indiretamente, o novo presidente do país, afim de completar o mandato interrompido de Jango, que se encerraria em 1965. Juridicamente, a aparência era de legalidade, afinal a vacância da presidência "estava na Constituição''.

Os 52 anos daquela noite fatídica para cá revelam mais coincidências do que diferenças. O ponto de contato que mais salta aos olhos é uma bipolaridade política entre um setor heterogêneo de grupos de esquerda e de centro-esquerda (que variavam de defensores do trabalhismo varguista a um temerário comunismo) e uma "direita'' com leves toques de liberalismo econômico e uma mistura perigosa entre fundamentalismo religioso, conservadorismo social, militarismo e moralismo. Haviam, nos dois lados, cabeças racionais que buscavam alternativas; mas a grande maioria das duas forças se comportava como se estivesse numa verdadeira guerra, estereotipando o outro lado dentro de conceitos e visões pejorativas: entreguistas e nacionalistas; comunistas e "patriotas''; aqueles que fundariam a "República sindicalista'' e os que "defenderiam a democracia.''

A semelhança com o embate dos "coxinhas contra petralhas'' é inevitável, inclusive pela semelhança do que ambos, em geral, defendem. A presença de uma crise econômica de grande envergadura, causada principalmente pela politica inflacionária do governo e agravada pela irresponsabilidade da UDN (o principal partido da oposição), levaram ao rompimento do pacto sócio-eleitoral entre capital/trabalho que davam sustentação ao governo, cuja manifestação mais visível era a histórica aliança entre PSD (um partidão com imensa força política em pequenas cidades e áreas rurais, onde vivia a maioria da população) e PTB (o partido de esquerda e do presidente Jango, que tinha forte apoio urbano de trabalhadores, sindicatos e da classe mais carente). Quando membros do PSD abandonaram a base do governo, como Juscelino Kubitschek e até Ulysses Guimarães, o governo sabia que o fim estava próximo.

A quebra da base de sustentação do governo, no entanto, não esgota os pontos de contato entre o presente o passado. Uma intensa propaganda anti-governo, embora nos dias de hoje mais discreta, foi desencadeada por parte da mídia, enquanto outros setores da mesma defenderam o governo a todo custo. A confusão reinante na opinião pública era clara: se todos os veículos de comunicação tem lado, em quem confiar? E foi assim que os acontecimentos se atropelaram em uma sucessão de desastres que levaram ao ato precipitado do general Olímpio Mourão, que direcionou suas tropas ao Rio de Janeiro para dar início ao golpe militar.

Evidentemente, já nesse ponto o presente se mostra muito mais diverso e complexo do que o passado. Além da ausência do elemento militar na política, a polarização da guerra fria entre comunismo e capitalismo e a intervenção direta de potências externas não se fazem mais sentir, embora a palavra "Cuba'' apareça mais no debate político atual do que "educação''. O protagonismo do poder Judiciário, que na crise de 64 foi vilipendiado e ignorado pelos principais atores políticos, hoje comanda um processo de "limpeza geral'' do Estado brasileiro, que é usado no cenário político para ora fortalecer o governo, ora a oposição.

Muito mais do que naquela época triste, há um enorme desencontro de informações e uma verdadeira avalanche de opiniões, ataques pessoais, seletividade e a sucessão desordenada de notícias que se contrariam favorecendo a distorção dos fatos e uma consequente confusão ideológica, moral e política, que somente dá aos pobres cidadãos a segurança de escolher "um dos lados'' e acreditar na "sua verdade''. Quem não escolhe um lado de vez tem lá suas "simpatias'', mas é certo que, atualmente, é quase impossível ser imparcial quando se está no olho do furacão.

Tudo isso não olvida a principal distinção entre 1964 e 2016, que vem se mantendo até agora, apesar de alguns baques aqui e ali. As instituições públicas - Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal - estão funcionando regularmente dentro das normas estabelecidas. Até agora, não há a constatação de que a atuação de promotores, juízes e ministros de tribunais superiores seja partidarizada como naqueles tempos. O principal problema a ser enfrentado consiste na contaminação dessas instituições - que são representadas por pessoas de carne e osso, com defeitos e virtudes - pela paixonite despertada pelo clamor popular, a adoção de medidas ilegais para perseguir uma "justiça'' a qualquer custo e a quebra da imparcialidade em nome da política (como manifesto no comportamento do Juiz Cata Preta e, a meu ver, do ministro Gilmar Mendes).

Esse temor se justifica pelo fato de que, com a isenção comprometida, as autoridades poderão ver suas operações, investigações e processos anuladas judicialmente (como já ocorrido nas operações Satiagraha e Castelo de areia, que atestaram a culpa dos investigados, mas foram judicialmente invalidadas por abusos cometidos na investigação). Outro problema de confiar a solução da "crise política'' aos operadores judiciais e policiais está no fato de que a classe política, embora golpeada, tem a seu favor o controle do Poder Legislativo e a morosidade judicial das cortes superiores, como o STF (que demorou longos anos para julgar, por exemplo, o mensalão e historicamente vem permitindo que manobras como a renúncia de mandatos eletivos federais acarretem em perda de sua competência, remetendo o processo para a primeira instância e reiniciando o processo - a manobra permitiu que o escândalo do mensalão do PSDB fosse julgado apenas depois de quase vinte anos).

O pior é que, atendendo às "vozes das ruas'' como confidenciou um certo ex-presidente, as autoridades podem derrubar parte da classe política e proporcionar um acordo político entre a oposição e os antigos governistas para esfriar a onda de combate à corrupção, estabilizar a economia e estabelecer um novo e duradouro pacto político. Atualmente, o único obstáculo a esse novo acordo, manifesto na aliança entre PSDB e PMDB (como a antiga UDN e parte do PSD) é o processo de impeachment da atual presidente que, mais desastrada do que Jango, vai se enterrando por si mesma. O "golpe'' consiste em derrubar o governo e mudar tudo sem mudar nada, com a decapitação de algumas lideranças políticas pela justiça brasileira, mas a preservação das velhas oligarquias que sobrevivem loteando o governo de acordo com suas necessidades. É um golpe político, não exatamente jurídico, como se diz - se não fossem as pedaladas fiscais, qualquer outro motivo poderia ter sido alegado para embasar o impeachment. Sim: como os militares, as autoridades podem sim ser o instrumento para que se arme a queda do governo - afinal, parlamentar também é "autoridade'' e o Tribunal do Senado que julgará o impeachment tem, em tese, mais poder político e jurídico que o próprio STF. A diferença é que, dessa vez, o instrumento pode muito bem ser dispensado pelos "autores intelectuais do golpe'', ao contrário dos militares, que assumiram o poder de vez.

Assim, os militares atenderam ao clamor "popular'' e mergulharam o país em algo muito pior do que o que se proponham combater (a "República sindicalista dos ladrões''); as autoridades precisam ter o mesmo cuidado para não escutar os mesmos clamores e entregar algo pior para o país.

É curioso como o Exército se denominava de "poder moderador'' do país, mesma nomenclatura muitas vezes atribuídas ao Judiciário, que nos últimos anos vem legislando e até governando, na "judicialização da política'' e no ativismo judicial. Para evitar uma nova tragédia para o país, é preciso, por parte das autoridades (congressistas, juízes, ministros, procuradores e policiais) temperança, respeito ao devido processo legal e publicidade das operações e processos.

E a crise, como resolver? Aplicando o que faltou em 1964. Faltou diálogo, e diálogo em tempos de polarização, por ironia, só se consegue com a consulta e participação popular, não como massa de manobra em manifestações de rua, mas exercendo democraticamente o poder do voto. Como essa alternativa não se mostra possível pelo acirramento dos ânimos, precisamos, com urgência, de um novo governo, algo somente a ser alcançado pelo reconhecimento do governo atual em sua incapacidade para superar a crise e da oposição em respeitar as leis e o estado de direito desistindo da aventura do impeachment. Um acordo político pode estabilizar a economia e permitir que um governo de transição, com os melhores nomes do país (apesar de que nos faltam estadistas que pensem mais no bem do país do que em perspectivas de poder) possa exercer o poder até as próximas eleições, com ou sem Dilma. Basta ter a vontade de dialogar e o pensamento no bem comum do Brasil.

Como também essa alternativa parece tema de música para um falecido John Lennon (imagine...), só nos resta derrotar o impeachment, continuar a velar pela legalidade das operações e processos judiciais e esperar que as condições do país forcem governo e oposição a um acordo político pelo bem do país. Ou embarcaremos em mais uma aventura que só pode ser chamada de "golpe.'' Não existem soluções fáceis para problemas complexos.

Todos sabem as consequências de 1964. Como uma roupa que não servia mais no corpo, o modelo político daquela época chegou ao ponto de que ou era trocado de vez por um novo ou se remendavam os panos velhos rasgando partes da roupa, para preservar aqueles que sempre comandaram o país. Estamos mais uma vez neste momento: ou transformamos a lava jato, a crise da classe política e do sistema partidário, bem como a crise econômica, em estímulos para avançar rumo ao futuro, com reformas na política, no sistema partidário e na economia, ou vamos permitir que as forças do atraso continuem a comandar o país em um verdadeiro pacto plutocrático. E isso independe de direita e esquerda: as oligarquias políticas não tem ideologia, nem lhes interessa ter.

Podemos tomar nossa democracia ou perdê-la mais uma vez, abrindo o precedente para uma tremenda insegurança institucional para futuros governos, sobre os quais penderá a ameaça do impeachment/recall disfarçado. A crise de uma democracia só se resolve com ela mesma; pensemos duas vezes antes de alimentar o nosso radicalismo e o de outrém; não existem salvadores.

A história nos verá como a geração que levou o país ao abismo ou aquela que soube usá-lo para se elevar.

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