Nos acostumamos a pensar nas lendas e mitos da antiguidade
como contos de fada – o legado iluminista, com sua obsessão pela “razão’’
materialista, conseguiu incutir, por séculos, a ideia de que o fantástico
necessariamente era mentira. Assim, arrogantes cientistas e pensadores,
educados sob os cânones darwinianos, semearam nos quatro cantos da terra novas
verdades absolutas, com o evolucionismo e o empirismo como antídotos contra o
misticismo e pilares de uma cosmovisão filosófica onde a interação entre os
corpos materiais seria o princípio e motor de absolutamente tudo o que nos
cerca.
Nos acostumamos a pensar nas lendas e mitos da antiguidade como contos de fada – o legado iluminista, com sua obsessão pela “razão’’ materialista, conseguiu incutir, por séculos, a ideia de que o fantástico necessariamente era mentira.
Assim, arrogantes cientistas e pensadores, educados sob os cânones darwinianos, semearam nos quatro cantos da terra novas verdades absolutas, com o evolucionismo e o empirismo como antídotos contra o misticismo e pilares de uma cosmovisão filosófica onde a interação entre os corpos materiais seria o princípio e motor de absolutamente tudo o que nos cerca.Além da tradição bíblica, seja cristã ou judaica, o alvo
preferido dos novos sacerdotes do chamado “positivismo’’ histórico era a
mitologia grega. Histórias de deuses e heróis pareciam mentiras tão bem
elaboradas quanto os feitos de Sansão, Davi, Moisés e Jesus Cristo; isso,
contudo, mudou quando a própria metodologia científica divinizada pelos
pretensiosos historiadores oitocentistas começou a lançar indícios sobre a
veracidade de mitos antigos – ou pelo menos elucidar o que pode ter gerado a
lenda.
A descoberta da cidade perdida de Troia, no exato local onde
foi descrita por Homero e Pausânias, bem como os indícios de que fora destruída
por uma guerra deixaram os senhores da verdade engasgados com a fumaça imunda
de seus próprios cachimbos. Quanto mais se escavavam os terrenos do então Império
Otomano e do já independente Reino da Grécia, novos indícios, como uma
avalanche, surgiam: a descoberta da cidade de Micenas, com suas muralhas
imensas; a descoberta de Cnossos, em Creta; e, por fim, o mais impressionante e
definitivo achado, as Cartas de Tawagalawa, escritas em tabletes de argila por escribas da corte real dos hititas
e dirigidas a “um reino além do Egeu’’, solicitando a extradição de um
aventureiro rebelde hitita, não sem antes confirmar que “chegamos a um acordo
sobre Wilusa, por causa da qual fomos à guerra’’. Wilusa era, descobriu-se no
fim dos anos 1990, o nome hitita que designava Ílion, ou seja, Troia. Seu
governante era Aleksandu – Alexandre, o segundo nome de Páris, filho do rei
Príamo e príncipe de Troia, o causador de todo o conflito narrado por Homero,
segundo reza a mitologia.
Nada disso
significa que deuses caminharam entre os mortais ou serpentes de sete cabeças
foram mortais por semideuses. Contudo, tudo aponta para uma base real para os
mitos antigos que formaram o Ocidente tal como o conhecemos. Pensemos bem: da
mesma forma que culturas menos complexas, como os índios americanos ou os aborígenes
australianos, utilizam mitos e lendas como forma de comunicar eventos que
realmente aconteceram, a mesma metodologia poderia ter sido utilizada pelos
antigos. O mito nada mais foi que uma forma de transmitir às gerações futuras o
legado histórico dos povos, de forma metafórica, metonímica até. Além da
história em si, os mitos agiram como transmissores daquilo que havia de mais
importante e precioso para qualquer povo: a cultura. A língua, a religião, os
costumes, os valores morais e até mesmo visões filosóficas – essas, por sinal,
deram origem ao que chamamos posteriormente de “filosofia grega’’ – estavam e
continuam expressos nas lendas de Hércules, Aquiles e companhia.
Assim, Zeus pode
não ter sido um deus poderoso cujo trono se assentava no Monte Olimpo, mas um
patriarca semi-lendário do qual descendiam as principais famílias nobres da
Velha Grécia micênica, por exemplo. As possibilidades são infinitamente
interessantes.
Contudo, o elemento
mais importante não é tanto a história real metafórica que os mitos transmitem
mas, sobretudo, os valores culturais e morais que encerram. A Ilíada homérica é
farta em tais referências.
O próprio início da
narrativa oferece problemáticas interessantes. Acossado pela peste enviada pelo
deus Apolo (o protetor de Troia), o rei Agamenon, líder máximo dos gregos, é
obrigado a devolver a capturada filha do sacerdote do deus do sol, sua parte no
butim. Como compensação, tomou como sua a escrava Briseis, também captura no
mesmo ataque, que havia sido a parte de Aquiles. Revoltado, o grande guerreiro
se retira do combate, o que inicia uma série de derrotas para os gregos (que
aqui são chamados de “aqueus cobertos de bronze’’) que terminam com a quase
destruição da armada.
Percebe-se que, ao
contrário de outras narrativas antigas (como o épico de Gilgamesh), há um
turbilhão de emoções, paixões e, sobretudo, do desejo egoístico em tais episódios.
Por causa do corpo de uma escrava, os dois grandes guerreiros gregos lançaram a
semente do que quase foi uma derrota total para os aqueus. A paixão de Aquiles
pela escrava (contrariando o estereótipo de que o grande guerreiro mantinha um
relacionamento homossexual com seu primo Pátroclo, o que em nenhum momento é
sugerido na narrativa) e a paixão de Agamenon pelo poder e pelo desejo de posse
são a causa da ruína.
Esse verdadeiro
fatalismo (onde as paixões mundanas e materiais são quase sempre a causa dos
desastres) é como uma nota musical dominante que permeia todo o poema. Na
verdade, a própria guerra em si aparenta ser, no fundo, uma máxima moral: o
homem é qualificado por aquilo que deseja. São as escolhas humanas, seus
desejos e paixões que o tornam digno de louvor ou de escárnio; e é com uma
escolha que toda a guerra da Ilíada se inicia.
É a escolha de
Páris, logo narrada por Homero. Na verdade, apesar de ser filho do Rei Príamo e
da rainha Hécuba, Páris foi abandonado para morrer pelo próprio pai quando sua
irmã Cassandra previu que ele seria a causa da destruição do reino inteiro.
Salvo por um camponês e criado como tal, Páris descobriu sua origem real e foi
acolhido como membro da família real, para desespero de Cassandra. Tal detalhe –
o fato de ser um príncipe criado como camponês, ou seja, como alguém bruto e
ignorante e habituado à tarefas grosseiras como lavrar a terra – influencia decisivamente
na escolha decisiva que o príncipe “maldito’’ fará: eleito como árbitro pelos
deuses para julgar qual deusa seria mais bela, Páris na verdade decidiu não
qual divindade seria mais atraente, visto que nenhuma delas desfilou, como num
concurso de miss universo (ou miss Olimpo) para o ávido príncipe; a sua decisão
deu-se de acordo com o que cada deusa ofereceu em troca do título de mais bela
do universo.
Ora, isso é
confirmado por causa da participação de “Palas Ateneia’’, ou Atena, no “concurso’’.
Longe de ser descrita na mitologia como bela, Atena era uma deusa bélica que
pouco se importava com trejeitos femininos – diz-se que era virgem. Logo, a “beleza’’
que Atena expressava não era algo físico, mas valorativo, abstrato, filosófico
até: ao contrário do que suas concorrentes ofereceram, a deusa ofereceu
sabedoria, justiça e a fama de grande guerreiro a Páris. Tratam-se das virtudes
mais elevadas não só dentre os micênicos, mas dentre quaisquer povos da
antiguidade.
Mas Atena não se
mostrou mais interessante do que a deusa Hera. Descrita como uma mulher bela, a
esposa de Zeus ofereceu algo fantástico e sem paralelo, mesmo para a megalomaníaca
mitologia grega: Páris seria o rei da Ásia caso a escolhesse. Trata-se do poder
ilimitado, a tentadora oferta que talvez tivesse sido aceita por qualquer outro
dos muitos filhos de Príamo.
Ora, vimos que
Páris não fora criado como Príncipe, mas como um camponês. Como tal, seria
estranho, para não dizer incompatível, com sua falta de “cultura’’ ou de
educação formal e moral, que escolhesse a sabedoria ou a glória imperial. Como
muitos sabem, a escolha do príncipe foi pela oferta da deusa Afrodite: o amor
da mais bela mulher do mundo, a Rainha Helena de Esparta. Lembre-se que
Afrodite não era a deusa de qualquer tipo de “amor’’, como o sentimento de uma
mãe pelo filhou ou a fraternidade dos irmãos entre si, mas sim de um amor
sensual. Sem delongas, era a deusa do sexo, da paixão que levava os amantes à
loucura e destruía famílias e casamentos – e trazia a destruição do lar e até
mesmo da civilização, como ocorreu com Troia.
Assim, sem pensar
em seu próprio país, Páris escolheu o amor sexual. Como camponês, optou pela luxúria.
Tudo isso traz uma lições interessante: seguir os instintos da carne é a
conduta a se esperar da maioria dos homens (visto ser Páris um camponês); a
duração do prazer, embora intensa, é efêmera e sem posteridade (filhos de Páris
com Helena, se existiram, não sobreviveram à guerra); a destruição do vínculo
matrimonial e familiar causa caos e guerra; o preço pela obediência à luxúria é
a destruição de si mesmo e de todos ao redor. O vício, a matéria, as paixões
baixas, tudo o que seria atribuído por Platão – ávido leitor da Ilíada – como proveniente
da alma animal do homem, leva à destruição caso não controlado pela força e
pela sabedoria de homens mais iluminados.
Heitor e Príamo
figuram, na Ilíada, como esses homens iluminados. Se um ou outro tivessem sido
eleitos como árbitros da disputa entre as deusas, certamente teriam escolhido a
vitória na guerra ou o reinado sobre a Ásia – e, historicamente, a localização
de Troia permitira a construção de um império. Os dois tentam defender o povo e
a cidade do que sabem ser a extinção de seu povo. Longe dos atributos divinos
de Aquiles e outros heróis gregos, Heitor e Príamo são muito “humanos’’, mas
encarnam o “melhor’’ da humanidade. O rei de Troia, nos poucos cantos onde
figura, se apresenta como um homem idoso e sábio, que arrisca sua vida indo ao
acampamento aqueu para pedir, humildemente, ao inimigo Aquiles que lhe conceda
o favor de enterrar o corpo do morto Heitor, exterminado pelo próprio herói aqueu.
Príamo estava
disfarçado e aparentemente sem qualquer tipo de proteção ou guarda. Despojado da
realeza, era nada mais que um pai, movido por um amor muito diferente daquele
que dominara Páris, tentando enterrar o corpo do filho. A sequência da
descrição dos funerais de Heitor, que paralisam momentaneamente a guerra,
descrevem sobre como o respeito àqueles que já se foram oferece uma chance de
paz; ou respeito não exatamente aos mortos, mas ao que eles transmitiram. A força
do costume de respeito aos mortos – visto que o desejo de Aquiles era deixar
que as aves de rapina e animais devorassem o corpo de Heitor, o que era visto
como tremenda desonra e impedimento para que o herói fosse agraciado com a
estada nos chamados Campos Elísios, o paraíso da mitologia – venceu o desejo de
vingança cega de Aquiles, que chorou diante do rei de Troia.
Ora, Heitor e os
troianos são apontados como “domadores de cavalos’’. Séculos depois, Platão
utilizou a metáfora do condutor da carruagem para expressar o ideal de
equilíbrio e harmonia tanto no interior do homem quanto em sua sociedade: é
controlando os cavalos do desejo por meio dos arreios da razão que o condutor
se dirige para o caminho que deve seguir. De uma certa forma, talvez os
troianos, e não os aqueus, é que são apresentados como os verdadeiros heróis da
história. Isso não significa que mereciam ganhar a batalha, visto que, do outro
lado, os aqueus foram abençoados pelos deuses para vencer.
Essa vitória parece
não ter se dado só pela superioridade numérica ou da qualidade dos guerreiros
aqueus. Na verdade, até mesmo os deuses agiam como se seguissem um “script’’.
Zeus é descrito, durante as batalhas, como portador de uma balança, onde ora o
peso pende para os aqueus, ora para os troianos, mas subordinado à alguma
orientação do próprio destino. Sim: a história tinha um fim pré-determinado. Os
troianos perderam a guerra no momento em que acolheram e protegeram, até o fim,
um adúltero – mesmo que se tratasse de seu próprio príncipe. Mesmo honrados,
mesmo portadores de bons motivos para se defender e sob a liderança de homens
sábios, a lei do retorno deve prevalecer. Afinal, o desequilíbrio causado por
uma paixão insensata deve ser restaurado.
Os acontecimentos
narrados pela Odisseia, contudo, fazem crer que o castigo destinado aos
troianos por um simples adultério foi desproporcional. Os vitoriosos, em grande
parte, nunca voltaram para casa, ou se voltaram tiveram fins trágicos. Agamenon
foi assassinado pela própria mulher; Ajax, o grande guerreiro e homem de voz
mais alta dentre os aqueus, morreu de forma vergonhosa em um naufrágio;
Ulisses, ou Odisseu, perdeu todos os seus homens e enfrentou uma exaustiva
jornada de 20 anos para retornar para casa. Aquiles, como se sabe, foi
assassinado por Páris com uma flecha envenenada no calcanhar, durante seu
casamento com a princesa Polixena. O casamento com uma bela mulher o matou.
Com essa série de
mortes, o equilíbrio seria restaurado. Os deuses, meros agentes de um destino
misterioso e pré-ordenado, restauram o equilíbrio que sua própria vaidade
causou. Afinal, quem, se não a deusa Éris, a divindade da discórdia, seria a
causadora da dúvida sobre qual deusa seria a mais bela? A maçã dourada, o
prêmio que terminou com Afrodite, germinou toda a situação. Parece simplista,
mas a discórdia causada entre os deuses em prol do que parecia ser um título
estético aparentou ser uma disputa entre valores e paixões; dentre os homens
que combateram, foi uma luta entre a honra (aqueus) e a sobrevivência
(troianos). Nada disso, contudo, foi um preto-no-branco: os troianos protegeram
um adúltero, mas tinham mais honra que os aqueus; os aqueus venceram por que
sua causa (a preservação da família e de sua própria cultura, visto que o rapto
de uma matriarca aqueia punha em risco sua própria posteridade) era justa, mas
se excederam em tal tarefa e foram punidos por isso.
Tamanha foi a
repercussão dessa guerra de valores que a própria mitologia se encerrou pouco
depois dela, coincidindo com o fim da civilização micênica. Com a morte dos
grandes heróis, o caminho estava aberto para um século de guerra e invasão que
sepultou a era dourada da mitologia.
As escolhas trazem
consequências; são elas quem definem quem você é e as consequências das suas
atitudes; escolha sempre a honra e a sabedoria contra as paixões baixas;
preserve as tradições de sua cultura e história; condutas negativas geram
efeitos negativos. Eis a grande sabedoria da Ilíada.
É, em suma,
impossível deixar de acreditar na veracidade desses ensinamentos. Imaginar
Aquiles e Heitor lutando ante às muralhas de Troia se torna mais palatável quando
esse conflito se dá, diariamente, no interior de cada um de nós.
E você, qual das
três virtudes escolherá para nortear sua vida?
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