quinta-feira, 10 de agosto de 2017

As realidades da Ilíada: o mito que existiu



Nos acostumamos a pensar nas lendas e mitos da antiguidade como contos de fada – o legado iluminista, com sua obsessão pela “razão’’ materialista, conseguiu incutir, por séculos, a ideia de que o fantástico necessariamente era mentira. Assim, arrogantes cientistas e pensadores, educados sob os cânones darwinianos, semearam nos quatro cantos da terra novas verdades absolutas, com o evolucionismo e o empirismo como antídotos contra o misticismo e pilares de uma cosmovisão filosófica onde a interação entre os corpos materiais seria o princípio e motor de absolutamente tudo o que nos cerca.

Nos acostumamos a pensar nas lendas e mitos da antiguidade como contos de fada – o legado iluminista, com sua obsessão pela “razão’’ materialista, conseguiu incutir, por séculos, a ideia de que o fantástico necessariamente era mentira. 

Assim, arrogantes cientistas e pensadores, educados sob os cânones darwinianos, semearam nos quatro cantos da terra novas verdades absolutas, com o evolucionismo e o empirismo como antídotos contra o misticismo e pilares de uma cosmovisão filosófica onde a interação entre os corpos materiais seria o princípio e motor de absolutamente tudo o que nos cerca.Além da tradição bíblica, seja cristã ou judaica, o alvo preferido dos novos sacerdotes do chamado “positivismo’’ histórico era a mitologia grega. Histórias de deuses e heróis pareciam mentiras tão bem elaboradas quanto os feitos de Sansão, Davi, Moisés e Jesus Cristo; isso, contudo, mudou quando a própria metodologia científica divinizada pelos pretensiosos historiadores oitocentistas começou a lançar indícios sobre a veracidade de mitos antigos – ou pelo menos elucidar o que pode ter gerado a lenda.

A descoberta da cidade perdida de Troia, no exato local onde foi descrita por Homero e Pausânias, bem como os indícios de que fora destruída por uma guerra deixaram os senhores da verdade engasgados com a fumaça imunda de seus próprios cachimbos. Quanto mais se escavavam os terrenos do então Império Otomano e do já independente Reino da Grécia, novos indícios, como uma avalanche, surgiam: a descoberta da cidade de Micenas, com suas muralhas imensas; a descoberta de Cnossos, em Creta; e, por fim, o mais impressionante e definitivo achado, as Cartas de Tawagalawa, escritas em tabletes de argila por escribas da corte real dos hititas e dirigidas a “um reino além do Egeu’’, solicitando a extradição de um aventureiro rebelde hitita, não sem antes confirmar que “chegamos a um acordo sobre Wilusa, por causa da qual fomos à guerra’’. Wilusa era, descobriu-se no fim dos anos 1990, o nome hitita que designava Ílion, ou seja, Troia. Seu governante era Aleksandu – Alexandre, o segundo nome de Páris, filho do rei Príamo e príncipe de Troia, o causador de todo o conflito narrado por Homero, segundo reza a mitologia.

Nada disso significa que deuses caminharam entre os mortais ou serpentes de sete cabeças foram mortais por semideuses. Contudo, tudo aponta para uma base real para os mitos antigos que formaram o Ocidente tal como o conhecemos. Pensemos bem: da mesma forma que culturas menos complexas, como os índios americanos ou os aborígenes australianos, utilizam mitos e lendas como forma de comunicar eventos que realmente aconteceram, a mesma metodologia poderia ter sido utilizada pelos antigos. O mito nada mais foi que uma forma de transmitir às gerações futuras o legado histórico dos povos, de forma metafórica, metonímica até. Além da história em si, os mitos agiram como transmissores daquilo que havia de mais importante e precioso para qualquer povo: a cultura. A língua, a religião, os costumes, os valores morais e até mesmo visões filosóficas – essas, por sinal, deram origem ao que chamamos posteriormente de “filosofia grega’’ – estavam e continuam expressos nas lendas de Hércules, Aquiles e companhia.
Assim, Zeus pode não ter sido um deus poderoso cujo trono se assentava no Monte Olimpo, mas um patriarca semi-lendário do qual descendiam as principais famílias nobres da Velha Grécia micênica, por exemplo. As possibilidades são infinitamente interessantes.

Contudo, o elemento mais importante não é tanto a história real metafórica que os mitos transmitem mas, sobretudo, os valores culturais e morais que encerram. A Ilíada homérica é farta em tais referências.

O próprio início da narrativa oferece problemáticas interessantes. Acossado pela peste enviada pelo deus Apolo (o protetor de Troia), o rei Agamenon, líder máximo dos gregos, é obrigado a devolver a capturada filha do sacerdote do deus do sol, sua parte no butim. Como compensação, tomou como sua a escrava Briseis, também captura no mesmo ataque, que havia sido a parte de Aquiles. Revoltado, o grande guerreiro se retira do combate, o que inicia uma série de derrotas para os gregos (que aqui são chamados de “aqueus cobertos de bronze’’) que terminam com a quase destruição da armada.

Percebe-se que, ao contrário de outras narrativas antigas (como o épico de Gilgamesh), há um turbilhão de emoções, paixões e, sobretudo, do desejo egoístico em tais episódios. Por causa do corpo de uma escrava, os dois grandes guerreiros gregos lançaram a semente do que quase foi uma derrota total para os aqueus. A paixão de Aquiles pela escrava (contrariando o estereótipo de que o grande guerreiro mantinha um relacionamento homossexual com seu primo Pátroclo, o que em nenhum momento é sugerido na narrativa) e a paixão de Agamenon pelo poder e pelo desejo de posse são a causa da ruína.

Esse verdadeiro fatalismo (onde as paixões mundanas e materiais são quase sempre a causa dos desastres) é como uma nota musical dominante que permeia todo o poema. Na verdade, a própria guerra em si aparenta ser, no fundo, uma máxima moral: o homem é qualificado por aquilo que deseja. São as escolhas humanas, seus desejos e paixões que o tornam digno de louvor ou de escárnio; e é com uma escolha que toda a guerra da Ilíada se inicia.

É a escolha de Páris, logo narrada por Homero. Na verdade, apesar de ser filho do Rei Príamo e da rainha Hécuba, Páris foi abandonado para morrer pelo próprio pai quando sua irmã Cassandra previu que ele seria a causa da destruição do reino inteiro. Salvo por um camponês e criado como tal, Páris descobriu sua origem real e foi acolhido como membro da família real, para desespero de Cassandra. Tal detalhe – o fato de ser um príncipe criado como camponês, ou seja, como alguém bruto e ignorante e habituado à tarefas grosseiras como lavrar a terra – influencia decisivamente na escolha decisiva que o príncipe “maldito’’ fará: eleito como árbitro pelos deuses para julgar qual deusa seria mais bela, Páris na verdade decidiu não qual divindade seria mais atraente, visto que nenhuma delas desfilou, como num concurso de miss universo (ou miss Olimpo) para o ávido príncipe; a sua decisão deu-se de acordo com o que cada deusa ofereceu em troca do título de mais bela do universo.

Ora, isso é confirmado por causa da participação de “Palas Ateneia’’, ou Atena, no “concurso’’. Longe de ser descrita na mitologia como bela, Atena era uma deusa bélica que pouco se importava com trejeitos femininos – diz-se que era virgem. Logo, a “beleza’’ que Atena expressava não era algo físico, mas valorativo, abstrato, filosófico até: ao contrário do que suas concorrentes ofereceram, a deusa ofereceu sabedoria, justiça e a fama de grande guerreiro a Páris. Tratam-se das virtudes mais elevadas não só dentre os micênicos, mas dentre quaisquer povos da antiguidade.
Mas Atena não se mostrou mais interessante do que a deusa Hera. Descrita como uma mulher bela, a esposa de Zeus ofereceu algo fantástico e sem paralelo, mesmo para a megalomaníaca mitologia grega: Páris seria o rei da Ásia caso a escolhesse. Trata-se do poder ilimitado, a tentadora oferta que talvez tivesse sido aceita por qualquer outro dos muitos filhos de Príamo.

Ora, vimos que Páris não fora criado como Príncipe, mas como um camponês. Como tal, seria estranho, para não dizer incompatível, com sua falta de “cultura’’ ou de educação formal e moral, que escolhesse a sabedoria ou a glória imperial. Como muitos sabem, a escolha do príncipe foi pela oferta da deusa Afrodite: o amor da mais bela mulher do mundo, a Rainha Helena de Esparta. Lembre-se que Afrodite não era a deusa de qualquer tipo de “amor’’, como o sentimento de uma mãe pelo filhou ou a fraternidade dos irmãos entre si, mas sim de um amor sensual. Sem delongas, era a deusa do sexo, da paixão que levava os amantes à loucura e destruía famílias e casamentos – e trazia a destruição do lar e até mesmo da civilização, como ocorreu com Troia.

Assim, sem pensar em seu próprio país, Páris escolheu o amor sexual. Como camponês, optou pela luxúria. Tudo isso traz uma lições interessante: seguir os instintos da carne é a conduta a se esperar da maioria dos homens (visto ser Páris um camponês); a duração do prazer, embora intensa, é efêmera e sem posteridade (filhos de Páris com Helena, se existiram, não sobreviveram à guerra); a destruição do vínculo matrimonial e familiar causa caos e guerra; o preço pela obediência à luxúria é a destruição de si mesmo e de todos ao redor. O vício, a matéria, as paixões baixas, tudo o que seria atribuído por Platão – ávido leitor da Ilíada – como proveniente da alma animal do homem, leva à destruição caso não controlado pela força e pela sabedoria de homens mais iluminados.
Heitor e Príamo figuram, na Ilíada, como esses homens iluminados. Se um ou outro tivessem sido eleitos como árbitros da disputa entre as deusas, certamente teriam escolhido a vitória na guerra ou o reinado sobre a Ásia – e, historicamente, a localização de Troia permitira a construção de um império. Os dois tentam defender o povo e a cidade do que sabem ser a extinção de seu povo. Longe dos atributos divinos de Aquiles e outros heróis gregos, Heitor e Príamo são muito “humanos’’, mas encarnam o “melhor’’ da humanidade. O rei de Troia, nos poucos cantos onde figura, se apresenta como um homem idoso e sábio, que arrisca sua vida indo ao acampamento aqueu para pedir, humildemente, ao inimigo Aquiles que lhe conceda o favor de enterrar o corpo do morto Heitor, exterminado pelo próprio herói aqueu.

Príamo estava disfarçado e aparentemente sem qualquer tipo de proteção ou guarda. Despojado da realeza, era nada mais que um pai, movido por um amor muito diferente daquele que dominara Páris, tentando enterrar o corpo do filho. A sequência da descrição dos funerais de Heitor, que paralisam momentaneamente a guerra, descrevem sobre como o respeito àqueles que já se foram oferece uma chance de paz; ou respeito não exatamente aos mortos, mas ao que eles transmitiram. A força do costume de respeito aos mortos – visto que o desejo de Aquiles era deixar que as aves de rapina e animais devorassem o corpo de Heitor, o que era visto como tremenda desonra e impedimento para que o herói fosse agraciado com a estada nos chamados Campos Elísios, o paraíso da mitologia – venceu o desejo de vingança cega de Aquiles, que chorou diante do rei de Troia.

Ora, Heitor e os troianos são apontados como “domadores de cavalos’’. Séculos depois, Platão utilizou a metáfora do condutor da carruagem para expressar o ideal de equilíbrio e harmonia tanto no interior do homem quanto em sua sociedade: é controlando os cavalos do desejo por meio dos arreios da razão que o condutor se dirige para o caminho que deve seguir. De uma certa forma, talvez os troianos, e não os aqueus, é que são apresentados como os verdadeiros heróis da história. Isso não significa que mereciam ganhar a batalha, visto que, do outro lado, os aqueus foram abençoados pelos deuses para vencer.

Essa vitória parece não ter se dado só pela superioridade numérica ou da qualidade dos guerreiros aqueus. Na verdade, até mesmo os deuses agiam como se seguissem um “script’’. Zeus é descrito, durante as batalhas, como portador de uma balança, onde ora o peso pende para os aqueus, ora para os troianos, mas subordinado à alguma orientação do próprio destino. Sim: a história tinha um fim pré-determinado. Os troianos perderam a guerra no momento em que acolheram e protegeram, até o fim, um adúltero – mesmo que se tratasse de seu próprio príncipe. Mesmo honrados, mesmo portadores de bons motivos para se defender e sob a liderança de homens sábios, a lei do retorno deve prevalecer. Afinal, o desequilíbrio causado por uma paixão insensata deve ser restaurado.

Os acontecimentos narrados pela Odisseia, contudo, fazem crer que o castigo destinado aos troianos por um simples adultério foi desproporcional. Os vitoriosos, em grande parte, nunca voltaram para casa, ou se voltaram tiveram fins trágicos. Agamenon foi assassinado pela própria mulher; Ajax, o grande guerreiro e homem de voz mais alta dentre os aqueus, morreu de forma vergonhosa em um naufrágio; Ulisses, ou Odisseu, perdeu todos os seus homens e enfrentou uma exaustiva jornada de 20 anos para retornar para casa. Aquiles, como se sabe, foi assassinado por Páris com uma flecha envenenada no calcanhar, durante seu casamento com a princesa Polixena. O casamento com uma bela mulher o matou.

Com essa série de mortes, o equilíbrio seria restaurado. Os deuses, meros agentes de um destino misterioso e pré-ordenado, restauram o equilíbrio que sua própria vaidade causou. Afinal, quem, se não a deusa Éris, a divindade da discórdia, seria a causadora da dúvida sobre qual deusa seria a mais bela? A maçã dourada, o prêmio que terminou com Afrodite, germinou toda a situação. Parece simplista, mas a discórdia causada entre os deuses em prol do que parecia ser um título estético aparentou ser uma disputa entre valores e paixões; dentre os homens que combateram, foi uma luta entre a honra (aqueus) e a sobrevivência (troianos). Nada disso, contudo, foi um preto-no-branco: os troianos protegeram um adúltero, mas tinham mais honra que os aqueus; os aqueus venceram por que sua causa (a preservação da família e de sua própria cultura, visto que o rapto de uma matriarca aqueia punha em risco sua própria posteridade) era justa, mas se excederam em tal tarefa e foram punidos por isso.

Tamanha foi a repercussão dessa guerra de valores que a própria mitologia se encerrou pouco depois dela, coincidindo com o fim da civilização micênica. Com a morte dos grandes heróis, o caminho estava aberto para um século de guerra e invasão que sepultou a era dourada da mitologia.

As escolhas trazem consequências; são elas quem definem quem você é e as consequências das suas atitudes; escolha sempre a honra e a sabedoria contra as paixões baixas; preserve as tradições de sua cultura e história; condutas negativas geram efeitos negativos. Eis a grande sabedoria da Ilíada.

É, em suma, impossível deixar de acreditar na veracidade desses ensinamentos. Imaginar Aquiles e Heitor lutando ante às muralhas de Troia se torna mais palatável quando esse conflito se dá, diariamente, no interior de cada um de nós.


E você, qual das três virtudes escolherá para nortear sua vida? 

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