domingo, 15 de janeiro de 2017

Cem anos e duas Hecatombes em Garanhuns: o que aprendemos?




Já há um certo tempo se busca resgatar a memória de uma das maiores chacinas da República Velha e da cidade de Garanhuns. Quem passeia pelas ruas calmas e frescas da cidade das flores não imagina que, há 100 anos exatos, uma centena de jagunços, cabras e matadores varreram o município em uma onda de vingança quase cinematográfica. Quando um destacamento policial finalmente desembarcou, vindo do Recife, e a poeira baixou, dezenas de mortos lotavam a Igreja matriz da cidade. Dentre as baixas estavam alguns jagunços e, em lugar de destaque, as maiores lideranças políticas de Garanhuns. 

A matança teve como germe fundamental uma rivalidade local espelhada em uma rivalidade regional e uma eleição contestada. O Conselheiro Rosa e Silva, antigo monarquista, era o principal adversário político do General Dantas Barreto, e o Estado de Pernambuco inteiro viu-se obrigado a tomar um ou outro lado. Em Garanhuns, as famílias Jardim, Miranda e aliadas eram "rosistas''; já a família Brasileiro e aliadas apoiavam Dantas Barreto. Basicamente, não existiam grandes divergências ideológicas entre os oponentes, pelo menos do ponto de vista de Garanhuns, embora a eleição municipal para prefeito de 1916 fosse fortemente contestada pela oposição, que publicava notas na imprensa da capital denunciando o "rei da terra'', o Coronel Júlio Brasileiro, e sua a "família imperial''. Ambos os lados, contudo,  representavam o poderio dos latifundiários cafeicultores e das grandes casas de comércio e, para sobreviver, se renderam às políticas de alianças sub-regionais e oligárquicas que era a alma da Velha República. 
O duplo extermínio, que começou com a morte do chefe da família Brasileiro, prosseguiu com o assassinato em massa dos seus opositores e terminou com a fuga ou prisão dos demais apoiadores e parentes dos Brasileiro gerou um vácuo de poder em Garanhuns. Foram décadas de reconstrução, onde as movimentações políticas se tornaram mais ideológicas e homens não diretamente ligados às famílias tradicionais começaram a ascender. Depois da crise do café em 1929, as cabeças pensantes da cidade começaram a imaginar que a cidade possuía outros potenciais. 




















Ao lado, JK em Garanhuns: anteriormente prestigiada pelo esforço de suas lideranças, hoje a cidade é esquecida

Esse "pensamento diferenciado'' alçou voo a partir dos anos 1950. Garanhuns viveu um movimento de industrialização e modernização acelerados. Quando o presidente da República símbolo desse período de renovação, Juscelino Kubitschek, visitou a cidade em fins dos anos 50, a revista Cruzeiro já listava Garanhuns como um dos municípios que mais progredia no Brasil. Já no início dos anos 1960, a mente fértil de Luiz Souto Dourado, um dos maiores líderes da história da cidade, lançou as bases para lançar Garanhuns em outro patamar. E não eram poucas essas bases. Crédito de fomento, apoio às cooperativas, instalação de dezenas de indústrias. Até fábrica de relógio suíço existia na terra de Simoa. 

Com Souto e seus aliados, Garanhuns tinha voz no poder Legislativo estadual e nacional. Foi assim até meados dos anos 80, quando algo foi lentamente mudando no Brasil e no mundo, com a queda do desenvolvimentismo. Por exaurimento, as velhas lideranças foram morrendo ou se aposentando e Garanhuns caiu exatamente na situação que gerou a Hecatombe: o transplante de rivalidades regionais para a órbita municipal. 





















Com alarde, a imprensa de 1950 anunciava que Garanhuns seria o início da luta pela recuperação do Nordeste. Esta luta foi revertida pelos que estão no poder atualmente.


Como em 1917, os anos 1990 apresentaram duas correntes políticas: uma contrária ao grupo comandante do governo do Estado e outra favorável. Quando Miguel Arraes foi reeleito pela terceira vez governador, a rivalidade aumentou. De um lado, o ex-prefeito Ivo Amaral, com larga popularidade e contrário a Arraes, se lançou contra o candidato apoiado pelo então prefeito Bartolomeu Quidute, Silvino Duarte, com a benção de Arraes. O resultado da histórica eleição de 1996 foi, como em 1917, fortemente contestado pelos derrotados. Pairava no ar a suspeita de que "os precatórios de Arraes'' haviam garantido a vitória de Silvino. 

Verdade ou não, o período inaugurado por Silvino rompeu com a tradição política da cidade. Os rompimentos se estenderam desde à uma postura bairrista por parte do prefeito ao rompimento com seu mentor político, o ex-prefeito Quidute. De lá para cá, Silvino foi reeleito, elegeu o sucessor (o ex-prefeito Luiz Carlos) que rompeu com o mentor e se reelegeu. Se vê claramente que a eleição de 1996 marcou uma nova forma de fazer política em Garanhuns: bairrista (onde se passou a desprezar a construção de bancadas estaduais e federais de Garanhuns em Recife e Brasília, em detrimento do apoio a políticos "forasteiros'' em nome de interesses pessoais do grupo político dominante), com um estilo personalista fraco (centrado na figura do prefeito, mas pela falta de força e liderança deste, seus apoiadores acabam se voltando contra ele, como foi o caso do rompimento entre Luiz Carlos e Silvino), formadores de amplas maiores na Câmara (claramente transformada em extensão do poder Executivo municipal através dos "favores'' prestados pelos vereadores com verbas e cargos públicos a suas bases eleitorais), condutores de obras de infraestrutura "para inglês ver'' (sim, são aquelas ruas que estão sempre "em processo de saneamento'' à cada dois anos!) e, o que é pior, total compromisso com o status quo da cidade. Traduzindo: é uma política voltada a beneficiar quem estava em alta nos anos 1990 (empresários empreiteiros e concessionários, comerciantes tradicionais, especuladores imobiliários), através da perpetuação no poder de um mesmo indivíduo que, entretanto, acabava sendo sempre traído pelos "sucessores''. 

A nova "Hecatombe'' se deu quando, apesar de um natural de Garanhuns se tornar presidente da República por longos 8 anos, a cidade pouco se mobilizou, por seus líderes, para aproveitar tal oportunidade. A opção política preferencial foi por um isolamento político da cidade conjugado com o apoio irrestrito de prefeitos e vereadores à lideranças forasteiras que nunca trouxeram um níquel ou uma emenda parlamentar que seja para Garanhuns. As indústrias se foram, os empregos também, a miséria explodiu e os indicadores sociais da cidade das Flores rivalizavam com o de países da África subsaariana. A "Hecatombe'' prosseguiu com desindustrialização, total abandono do homem do campo, criação de barreiras a empreendimentos como o shopping center e à instalação da FAMEG, tudo para que os interesses politiqueiros dos líderes da cidade, que cumpriam ordens dos seus "aliados'' que ocupavam o governo do Estado (a aliança PMDB/DEM/PSDB); estes últimos viam Garanhuns apenas como seu curral eleitoral ocasional. As benesses, como indústrias e grandes obras públicas, foram reservados às bases políticas da referida aliança partidária. Com Garanhuns ficaram as migalhas.

O que aprender com essa nova Hecatombe? É só comparar Garanhuns com cidades de igual ou até menor porte, como Caruaru, Arcoverde, Triunfo, Serra Talhada e Vitória. São cidades que procuraram lançar um desenvolvimento de longo prazo, fortaleceram suas bases políticas para construir bancadas legislativas em Recife e Brasília e correram atrás de investimentos públicos e privados. O resultado é um crescimento econômico que dura até hoje. Para se ter ideia, os indicadores da indústria e agricultura em Garanhuns estão estagnados há anos, enquanto o setor de serviços cresce puxado pelos gastos do governo municipal e especulação imobiliária; já a participação da cidade na geração de riqueza (PIB estadual) em Pernambuco caiu de 1,9 para 1,8 no último ano. Tudo isso se soma ao fato de que, segundo ranking da Folha de São Paulo, Garanhuns é apenas o 3.316º município em eficiência, perdendo para todas as cidades acima listadas e outras que são consideradas "satélites'' da cidade das flores, como Lajedo (1.809º) e Brejão (2.879º). Ou seja: Garanhuns desperdiça, e muito, seus recursos públicos. Quer dizer que um centavo investido em Lajedo ou Brejão rende muito mais em obras, serviços e geração de riqueza do que em Garanhuns - "teoricamente'' uma cidade mais "desenvolvida''. 


Em suma, o 15 de janeiro de 2017 nos faz olhar para o passado para entender o presente. Como antes, uma rixa política entre prós e contrários ao governo estadual (expresso inclusive nas últimas eleições) com o esquecimento o desenvolvimento da cidade em prol de interesses pessoais tanto do grupo dirigente da cidade das flores quanto dos seus patronos em Recife ou Brasília, levou Garanhuns a perder o bonde do desenvolvimento. Já são mais de 20 anos de política bairrista, miúda, voltada para a própria perpetuação, baseada nas famosas "obras sonrisal'' e, à cada 4 anos, a servir de curral eleitoral de fácil predação para os aliados do prefeito de plantão. 

A nossa grande Hecatombe, Garanhuns, é saber que temos tantas potencialidades (terreno fértil, fontes de água, potencial industrial e comercial) e ainda assim nos contentarmos em ser sempre o último cavalo na corrida do desenvolvimento; apesar do pólo educacional que temos, posição estratégica, fartura da terra e vontade de trabalhar do seu povo, existe uma opção política para manter a cidade do jeito que está. Como a placa do shopping center que anuncia o terreno vazio logo atrás de si para todos os visitantes como mais uma promessa vazia, Garanhuns é a cidade do conto de fadas que jamais foi composto. Dessa vez ninguém morreu, exceto os sonhos daqueles que pensaram que Garanhuns um dia seria a terra do desenvolvimento. 

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