sábado, 18 de agosto de 2012

Tânatos, Fobos e Hipnos, a Santíssima Trindade: o panteão dos deuses pós-modernos

 Os deuses pós-modernos e suas oferendas: sacrifícios humanos

Religião é algo que combina muito pouco com a pós-modernidade. A aversão dos nossos tempos a certos valores e crenças morais de cunho universalista e ontológicos, reveladas por instâncias superiores à mente humana pelo "Sagrado'' é um verdadeiro palavrão diante de uma sociedade guiada pelo pensamento existencialista, hipersubjetivista e, por vezes, niilista que marca a pós-modernidade. Mas mesmo em épocas assim - e a pós-modernidade não será a primeira ou a última era de império do relativismo que a humanidade conheceu, conhece ou conhecerá-  podem ser explicadas de acordo com as "divindades'' que nela predominam. Deuses que não possuem nomes, nestes dias, mas que, com fins meramente expositivos- e com vistas a usar um pouco de etnologia das palavras para explicar melhor quem são esses novos velhos deuses- vamos nomeá-los com os epítetos criados pelos bons e velhos gregos.

Tânatos era, como é hoje, o deus da morte da Grécia Antiga. Cruel e implacável em sua armadura de ossos e tendões humanos, perseguia e vencia mesmo os mais bravos heróis, e nem Hércules ou Aquiles lhes escaparam, na mitologia. Hoje, Tânatos é a morte que amedronta o ser humano, sendo o motivo pelo qual a sociedade experimentou avanços tecnológicos, culturais e materiais sem precedentes, construindo cidades de pedra, impérios alimentados pelo ouro negro, maravilhas das comunicações, sistemas políticos e sociais complexos e eficientes que garantem proteção, conforto, e bem estar a pelo menos uma parte da humanidade. É uma sociedade que, diversamente da matriz medieval (que saudava a morte como libertação e mesmo um obstáculo superável, a partir da esperança na ressurreição e na vida eterna), está em permanente fuga da morte (que é todo custo evitada): a humanidade organizada, onde os homens se unem para se guardarem, alimentarem e auxiliarem (ou, resumindo bruscamente, se explorarem mutua e reciprocamente), é uma dádiva do medo ancestral da morte, solidificada na solidão, na fome, no frio; hoje, Tânatos é a exclusão do sistema econômico capitalista (visto como o sistema que assegura a vida), que reserva suas benesses (a vida) para uns poucos eleitos, enquanto outros são ofertados à Tânatos, os pobres e miseráveis do mundo. Embora não seja adorado, Tânatos é o cruel perseguidor que é a fonte da adoração de seus irmãos.

Diziam alguns sábios antigos que o verdadeiro e mais poderoso dos deuses era Fobos (ou Phobos), o Medo. O seria da morte, sem o Medo da morte? Fobos é a força vital pelo qual sociedades e sistemas culturais foram criados, isto é, para perpetuar a vida, atrasar a morte e para construir uma base pelo qual os descendentes daqueles que sobreviverem um pouco mais também possam viver; o medo das coisas faz com que o homem tente evitá-las, vencê-las até. As tradições coletivas ajudaram os gregos e os povos antigos a manter o meio de vida que assegura a segurança material diante da fome, da guerra e do frio, e nelas os ancestrais sobreviveram, de certa forma. Na pós-modernidade, a falta de vinculação às tradições, onde cada homem é senhor absoluto de suas opções morais, fez agigantar o medo. Medo do sofrimento, medo da morte (que é o medo de ser excluído do sistema), que leva o homem a buscar integrar-se á nova ordem pós-moderna para sobreviver. Aqui reside o paradoxo da pós-modernidade: o super-homem, teoricamente livre, não pode optar senão pelos valores impostos pelo capitalismo neoliberal para ser aceito socialmente, e com isso, tranquilizar-se do medo e fugir da morte. É uma ditadura de (des)valores disfarçada de liberdade absoluta e dela decorrente, já que optar por ideias contrárias ao sistema traz o fantasma do Medo e da Morte como maiores sanções. 

Mas um mundo fundado em deuses do Medo e da Morte seria insuportável. E, aqui, entra o irmão de Tânatos, Hipnos, o deus grego do sono. O sono traz tranquilidade e paz interior, e nela mesmo um mendigo pode sonhar com castelos encantados ou coberturas de luxo de frente à praia de Copacabana. O sonho (em grego, Morfheus, o filho de Orfeu) oferece ilusões que amortizam as dores e afastam o medo; e os melhores sonhos, na pós-modernidade, são os prazeres oferecidos pelo sistema (bens materiais, sexo, admiração alheia), que podem ser comprados, segundo reza a cartilha capitalista, pelo esforço, trabalho e lucro - ou pela especulação financeira desinibida; filosoficamente, a maior das ilusões e a de que, determinando todos os seus valores e objetivos, o homem pode ser seu próprio deus. Conjuntamente, o sono leva as pessoas a se conformarem com a sociedade e a dirigirem suas atenções aos sonhos de prazer: no fim, o sono leva a submissão do homem ao ideário capitalista neoliberal, por meio das promessas deste, materializadas nos sonhos que este oferece, enquanto o mundo, tal como ele é (um reino de horror onde homens exploram uns aos outros) fica encoberto. 

É uma fenômeno chamado por Marx de "alienação'', e que, em seu tempo, era manifesto na religião, o ópio do povo. Hoje, o ópio do povo são os sonhos do capitalismo, acalentados por bilhões, mas realizados por pouquíssimos- o que explica a onda de depressão sentimental que afeta todo o planeta, manifesta nos assustadores índices de suicídio e autodestruição por vícios em drogas; as pessoas descobrem, tarde demais, que simplesmente consumir, satisfazendo os prazeres, não traz felicidade alguma. Perdem o sentido de suas vidas e definham dolorosamente, quando os sonhos evaporam no ar como a névoa da manhã quando cortada pelos raios do sol; quando percebem que não são deuses, mas mortais. Hipnos submete os homens à ordem e, tal como o personagem mitológico, sussurra lascívias aos desavisados filhos de Adão da pós-modernidade, levando-os ao seu reino de ilusões e mentiras- que é o que os sonhos são.

Mas o Panteão da pós-modernidade não age como na mitologia grega, onde os deuses tinham seus próprios interesses e pouco se lixavam uns para os outros. A morte impulsiona os homens a se organizar na ordem capitalista, assim como o medo, que funcionam como punições àqueles que contra ela se rebelarem; o sono e os sonhos ajudam a esconder a realidade, tornando-a suportável e até desejável; e, no fim, os três são um só deus, já que um depende do outro e por meio deles se realiza. Talvez a maior das mentiras contadas por esses deuses e seus sacerdotes-  mega-banqueiros, empresários, políticos-, veiculadas por meio da mídia (o mensageiro dos deuses, ou um Hermes pós-moderno, se preferirem; curiosamente, Hermes também era o deus dos ladrões...) seja a de que o sistema capitalista realmente salva da morte e supera o medo. Na verdade, o próprio capitalismo e a pós-modernidade se assentam no medo e na morte, onde os homens se matam e dominam uns aos outros para impor suas opções morais ou satisfazer seus prazeres, numa guerra de todos contra todos, onde cada homem é o lobo do homem. (Ao lado, Hipnos e Tânatos).


Não por acaso, o capitalismo pós-moderno comandou as maiores guerras da história (com seus 200 milhões de mortos), sendo responsável pelo maior número proporcional de seres humanos, em todos os tempos, em situação de extrema desnutrição (fome) e pela maior explosão de concentração de renda já vista, a ponto de fazer os faraós corarem de vergonha. E toda essa grande mentira faz perceber que os três deuses são apenas fazes de uma única divindade, demoníaca e monstruosa: o Mercado, o sistema, o capitalismo pós-moderno, aquele que diz trazer liberdade aos homens (que supostamente a teriam por via do consumo e do trabalho livre) quando, paradoxalmente, lhes impõe a maior das tiranias. A tirania do indivíduo sobre ele mesmo, que acredita ser seu próprio deus (no sentido de fonte da moral e da razão), a ditadura de seu medo da morte e da exclusão social, mas também de sua busca pelos sonhos do prazer, que ele próprio aceita!

A razão da ascensão de deuses tão hediondos assim é simples. O Deus até então dominante, cristão e platônico, foi morto e enterrado, simbolicamente, pelo "progresso'' técnico e filosófico humano. Nietzsche e Feurbach acreditavam em Deus como uma criatura feita à imagem e semelhança do homem, que esqueceu que a criou e lhe deu vida própria. Sendo esse Deus apenas uma ilusão para confortar a humanidade ou par favorecer a dominação de classes opressoras (segundo Marx), não há uma ordem moral ou social estabelecida, a razão não tem sua fonte em Deus e muito menos a história segue um padrão racional. Deus, na pós-modernidade, está morto e, com ele, todos os valores morais e a própria razão como meio de entender o mundo. O grande vácuo deixado por Ele foi ocupado pelo Medo, pela Morte e pelo Son(h)o, que se unem nem um único rosto, o Mercado. Substituímos o amor, a misericórdia, a busca do bem-coletivo e a esperança, o quadripé fundamental do cristianismo, pela morte, medo, sonhos vazios e submissão a um sistema brutal e despótico.

A terrível Santíssima Trindade de nossos dias é, além de mentirosa, dona de um apetite voraz. Os sacrifícios humanos feitos a eles, como os do 1,25 bilhão de almas que padecem de fome ou dos 1 milhão de iraquianos mortos na guerra dos EUA contra seu país são exemplos disso. Um rapaz da periferia de alguma grande cidade brasileira, com grande potencial em ciências naturais, mas que nunca obteve acesso a estudos de qualidade e que, por isso, passa a vida como mecânico amador, tal como seu pai, também é exemplo de mais uma vida imolada nos altares de sangue e ossos, por nossa sociedade a nossos deuses.


Digo que se tratam de deuses, de certa forma, porque neles estão presentes a submissão da humanidade à uma força superior (quem mais poderoso, do que o medo, a morte e o son(h)o?), que tem um culto organizado, sacerdotes, profetas e fieis, que somos nós. Talvez sejam mais como os "espíritos'' da humanidade, como Nietzsche uma vez preconizou, o Dionisíaco (a destruição criativa, o caos, a busca do prazer) e o Apolíneo (a luz, a ordem, a moral). Se a humanidade oscilou de uma era onde o Apolíneo dominava para os tempos de supremacia do Dionisíaco, hoje são os três deuses que se sobrepõe à ordem ou ao prazer. (Ao lado, representação moderna de Tânatos, a morte)

O maior dos trunfos do panteão é simples: sua ditadura cruel é desejada pela humanidade, porque esta entende que, por meio dela, pode ser livre, realizar prazeres, mesmo que isso tenha consequências; que podem ser deuses de si mesmos. Mas o  deus único do Mercado é o único verdadeiro, já que o fato de o sistema se apoia no medo, na morte e no son(h)o fica oculto.

Esses são os deuses que tememos e adoramos sem saber, que não tem vontade própria ou um rosto. Um panteão oculto, filho da crise filosófica e espiritual da humanidade que, eliminando os deuses da velha ordem (e "o'' Deus, o arquiteto do universo, fiador da razão e fonte da moral, no qual, pessoalmente, creio), não deixaram ao homem mais que instintos, o medo da morte e os sonhos. Eles explicam o espírito da atual época e lhe personificam... e, como todos os deuses, ídolos de coração de pedra, podem ser destruídos. 

Quando a humanidade voltar a não temer a morte ou a exclusão e der o último grito de liberdade, Tânatos, Hipnos e Fobos, unidos no Mercado, serão derrubados de seus tronos e queimados no altar do esquecimento. A última rebelião contra os deuses, a última revolução, é a libertação do medo e dos falsos sonhos que o capitalismo oferece. Isso implica em ser perseguido pelos paladinos do sistema. 

Felizmente, essa rebelião já começou. O mundo pós-moderno se derrete rapidamente, mergulhando no caos que dará início a uma nova era... a contestação já é global e, apesar de mal-estruturada, contagia cada vez mais pessoas com a descrença no capitalismo. Normalmente, os deuses morriam, na cultura grega, sem a adoração de seus fieis ou sem oferendas; e, como tal, sem medo da morte ou dopada por sonhos medíocres, a humanidade poderá ser livre. Nesse sentido, sobram dois caminhos: voltar ao Deus cristão, que espera de braços abertos, ou ir em direção ao desconhecido, correndo atrás da ancestral promessa de que o próprio homem pode ser seu deus (e que, como vimos em Roma, nas ditaduras fascistas e no atual pós-modernismo, não deu lá muito certo). Assim, talvez um dia, mais próximo do que pensemos, sobre nós haverá apenas o céu.

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