sábado, 4 de agosto de 2012

O show da fé: os desafios do mundo evangélico


Há cerca de dez anos, pouco se via ou ouvia, na Tv aberta ou nas transmissões de rádio, homens engravatados, aos gritos, pronunciando sermões radicais em meio a histéricos louvores de multidões em êxtase, proclamando a Salvação do Senhor e "a Palavra''. Na época- como hoje- essas transmissões, restritas à Tv Record, propagavam as doutrinas do "bispo'' Edir Macedo e expandiam os pilares ideológicos e dogmáticos de seu império, a Igreja Universal do Reino de Deus. Durante a bonança da última década, contudo, o público evangélico cresceu, percentualmente, mais de 61%, o que refletiu diretamente no aumento do poderio econômico das igrejas, que passaram a disputar alguns dos horários mais concorridos nos meios de comunicação em geral. Mais e mais, a nação é bombardeada por horas e mais horas de exaustivas pregações e insistentes pedidos de contribuições para o "mero funcionamento'' das igrejas, o que acaba difundindo certos valores comuns aos evangélicos em substituição aos valores tradicionais brasileiros e, nem sempre, essa "aculturação'' interna pode ser benéfica.

Comecemos, antes de tudo, a investigar quem são a enorme massa de mais de 36 milhões de pessoas que se dizem evangélicas, segundo o último censo do IBGE. Segundo o órgão público, a grande maioria é composta de cidadãos que já estiveram abaixo da linha da pobreza, têm o ensino médio e/ou fundamental incompletos, idades entre 27 e 29 anos (embora existam muitos idosos), estão concentrados nas cidades, têm renda entre um salário e 3 salários-mínimos (63% dos neopentecostais estão na faixa de um salário-mínimo), são pardos ou brancos e tiveram acesso a bens de consumo duráveis há poucos anos. Foram quase 20 milhões de novos adeptos (principalmente nas fileiras neopentecostais, onde a Assembleia de Deus foi a instituição que registrou o maior crescimento), que, pela primeira vez, tiveram acesso a bens básicos como geladeiras, televisões HD, a sonhada casa própria ou um automóvel, o que me permite dizer que boa parte dos novos evangélicas é composta majoritariamente pela também "nova'' classe média, beneficiada pelas políticas econômicas adotadas pelo governo a partir de 2001.

Ou seja, os novos fieis das igrejas, cuja maior é a Assembleia de Deus (mais de 12 milhões de adeptos) foram os maiores beneficiados pelas políticas públicas dos últimos anos, constituindo parte relevante do motor de consumo que alimentou o crescimento econômico do país. É certo afirmar que a grande maioria dessas pessoas associa sua migração religiosa à mudança de vida- não exatamente porque a "moral protestante'' incentiva o individualismo e a poupança, favorecendo o capitalismo e desprestigiando o catolicismo, que caracterizar-se-ia pelo coletivismo e pela caridade, numa visão weberiana- como uma graça Divina. Assim, 58% deles deixaram as hostes da Igreja Católica e buscaram, segundo pesquisas, mais rigidez moral em dogmas religiosos mais simples, mais acessíveis aos fieis que as complicadas filosofias tomistas católicas; o passado de pobreza era visto como uma consequência, pelos evangélicos, por estarem sob o julgo de uma religião não-cristã (muito negativamente tachada mesmo como "satânica'' e "idólatra'', por algumas seitas), sendo a "conversão'' às igrejas um retorno ao verdadeiro cristianismo e o início de uma era de "bençãos e graças'' sobre suas vidas, caracterizada pela melhoria da situação sócio-econômica do país; é uma interpretação diretamente associada à Teologia da Prosperidade que fundamenta, filosoficamente, boa parte das igrejas evangélicas em expansão. Os neopentecostais seriam a mudança contra as tristezas do passado identificado com o catolicismo, embora tenha sido uma religião evangélica tradicional- a Assembleia de Deus, "AD''- que tenha expandido em mais de 3,8 milhões eu séquito de fieis.

A mudança da religiosidade se explica também pela expansão das igrejas em áreas das periferias das grandes cidades, lugares onde a influência da Igreja Católica é menor.

Internamente, a outrora poderosa Igreja Universal do Reino de Deus encolheu 10%, perdendo mais de 300 mil fieis para outros credos, principalmente para a concorrente mais jovem (cerca de 30% de seus fieis vieram da Uiversal), a Igreja Mundial do Poder de Deus, comandada pelo "Apostolo'' Valdomiro, ex-pastor da Universal. É explicável, já que a nova igreja gasta R$ 35 milhões mensais em telecomunicações, possuindo a mais extensa cobertura entre os evangélicos- 23 horas no canal 21, 4 horas na Band e duas na Rede Tv!-, contando ainda com 3000 templos espalhados pelo país. Seu discurso, baseado em uma apelação milagreira sem precedentes, exerce verdadeiro fascínio sobre a nova classe média, sendo, segundo alguns especialistas em marketing, capitalizados por uma ideia de "venda de milagres''.


Mas, apesar do sucesso de Valdomiro, o público evangélico vem optando por igrejas mais institucionalizadas e conservadores, como a AD. Alguns especialistas em Antropologia acreditam que a maior independência dos jovens ante às tradições familiares os dão uma maior margem de liberdade para escolher seu credo- e essas opções se inclinam, ao contrário do que se possa imaginar, rumo às igrejas mais reacionárias, algumas de cunho até fundamentalista. Associam, em grande parte, a prosperidade material à espiritual, sendo a primeira uma benção a ter como prova de agradecimento uma repartição dessa prosperidade material para a expansão da igreja e a conversão de mais fieis à boa nova, o que resulta em mais contribuições, em um círculo virtuoso de crescimento continuado. O "dízimo'', visto e imposto como uma obrigação aos fieis é, assim, um dos pontos controversos da expansão evangélica. (Ao lado, Lula e Edir Macedo na inauguração do canal Record news, pertencente à igreja universal)

E aqui abro espaço para algumas considerações.


De início, a expansão evangélica rumo a valores mais conservadores não é de todo mal. Pelo contrário, já que, infelizmente, a condição católica do país é resultado de uma imposição colonial com claros fins de dominação cultural, e, de todo, a estrutura social arcaica do país teve como um de seus pilares as tradições patriarcais da Igreja, importadas de Portugal e aqui adaptadas às necessidades tropicais. Implica dizer que essa adaptação não passou da adoção do superficial moralismo católico como um véu a encobrir o festival de libidinagens em que se tornou o paraíso tropical brasileiro em seu processo de formação. Pode ser que, finalmente, os brasileiros tenham adquirido alguma criticidade espiritual e tenham se cansado de simplesmente reproduzir valores morais e religiosos, para começar a fazer suas próprias escolhas livres; escolhas direcionadas à adoção de valores morais firmes, simples e substanciais. Daí a escolha por igrejas mais conservadores e mais sólidas.

Os brasileiros estão finalmente decidindo os rumos de suas condutas morais e fazendo livremente a opção pela moralidade, sem que esta lhes seja imposta pela tradição. O grande problema dessa suposta autonomia individual está na pouca tolerância por parte dos evangélicos, que se consideram proprietários de uma verdade absoluta que não convive em harmonia com outras concepções de mundo. Rapidamente, despendem cada vez mais esforços, numa verdadeira guerra "entre bem e mal'', para difundir (e impor) suas crenças à toda a sociedade, que experimenta um surto de liberdade moral e sexual do qual os próprios evangélicos são cria direta, como contestadores da tradição católica e fundadores de uma nova. Paradoxalmente, sua intolerância lhes faz voltar-se para o desprezo pelas políticas públicas de proteção às minorias, educação sexual e mesmo qualquer forma de alteração mais profunda das estruturas sociais, já que, muito além de um pensamento fundamentalista, os ungidos do Evangelho absorveram a ideologia classicamente reacionária da classe média.


Os representantes políticos dos novos cristãos, partindo daí, se reunem na chamada bancada evangélica (ao lado, Marcelo Crivela, pastor da IRUD e Senador da República pelo PRB-RJ), um enorme grupo de parlamentares que age (a meu ver, manifestando democraticamente as opiniões de seu eleitorado) a partir de uma pauta moral conservadora. O aborto, a união gay e a "defesa da família'' fazem parte dela. Infelizmente, boa parte desses congressistas possuem processos judiciais pendentes e sua produção legislativa é, no mínimo, medíocre. Na verdade, utilizam a pauta evangélica para capitalizar seu discurso político e manter um "curral eleitoral'' nas igrejas evangélicas, manobradas a bel-prazer em acordos espúrios entre políticos e líderes religiosos. E, no fim, os valores defendidos apenas travestem corruptos que nada têm de cristãos. No Brasil de hoje, o PRB e o PSC, além de grandes levas do PR, DEM e PSDB (incluindo João Campos, líder da bancada evangélica) são os braços políticos dos movimentos evangélicos, que, em muitas ocasiões, se associam aos ruralistas (a UDR), a bancada do agronegócio, com o firme propósito de barrar projetos de lei mais "ousados''.


Chegamos, assim, à mais uma crítica: os líderes evangélicos, alçados da posição de pastores de periferias, pregando em garagens alugadas, a de bispos, cujos sermões lotam luxuosos templos, se envolvem, com frequência cada vez maior, em escândalos policiais. Temos desde pastores-senadores da República (Magno Malta, do PR-ES, por exemplo) envolvidos em estratagemas de corrupção (a suposta lista do "mensalão'') à fortes indícios de lavagem de dinheiro por parte de Edir Macedo ou dos "bispos'' da igreja Renascer, famosa por ser frequentada pelo jogador de futebol Kaká, que alcançam cifras milionárias. O luxo ostentado pelo enorme poderio econômico das igrejas, sustentadas pelos suados dízimos dos fieis, acaba constituindo uma tentação enorme para os gestores evangélicos, que não pagam, pelas riquezas obtidas, nenhuma espécie de imposto ao governo. Outro problema de cunho ético-legal é descarada venda de milagres, que facilmente poderia ser enquadrada em charlatanismo, que muito preocupa pelo fato de que pessoas com problemas de saúde ou financeiros abandonam tratamentos médicos e/ou oneram-se ainda mais com o pagamento de altíssimos dízimos em busca de, muitas vezes, vãs ilusões comercializadas, de forma espetacular, por homens maldosos, hipócritas e mal-intencionados. Assim, quem controla as atividades dos pastores?


Talvez o maior efeito negativo seja o fundamentalismo religioso. Não somente a já citada intolerância que ele enseja, que já citamos. O que há de mais negativo é a centralização do poder da comunidade, em todos os sentidos, nas mãos dos líderes religiosos. Estes determinam quais as normas morais corretas, as opções políticas adequadas para a comunidade e, muitas vezes, transformam-se em verdadeiros "mensageiros de Deus'', evocando um misticismo quase pré-histórico e irracional que fascina fieis, embora seja um atentado à inteligência; partindo de tais posições, podem manipular a vontade seus seguidores. Isso vai desde "revelações'' sobre a sinceridade das crenças de um candidato a vereador à descobertas sobre a "possessão'' de notas de R$ 100 por espíritos demoníacos, ou mesmo curas de doenças. É o que chamo de "misticismo neopentecostal'', muito associado a um "caudilhismo evangélico'': os pastores passam a centralizar, em mãos de ferro, mas carismaticamente, como "pais'', a vivência de seus fieis, baseando-se em um poder, diria-se, de fundo quase teocrático, em crendices e argumentos de autoridade ("é assim porque Deus (na verdade, eu) disse!''), se tornando líderes políticos, espirituais e morais de populações inteiras, usando a fé para capitalizar cada vez mais poder. A demonização do diferente (sejam outras crenças ou simples posições diversas das sustentadas pelo pastor) é outro meio eficiente da estruturação desses verdadeiros feudos confessionais.

Trata-se do simples uso da boa-vontade dos fieis para locupletação própria. Alguns argumentam que ninguém é coagido a ser evangélico. Existem, contudo, diversas formas de coação, e, uma delas, a psicológica, é a especialidade dos pastores. Jogam com as necessidades das pessoas e acabam vendendo a presença de Deus em suas vidas; montam toda uma estrutura ideológica destinada a persuadir as pessoas, muitas vezes desesperadas; demonizam outros credos (notadamente, os de matriz africana) e se apresentam como escolhidos do Senhor. Para o grupo evangélico, que ostenta pouca escolaridade e pouca renda (ou seja, tratam-se de pessoas que atravessam grandes dificuldades, desde a obtenção de serviços básicos de saúde a oportunidades de emprego) o chamariz exerce uma pressão arrasadora. A doutrinação nos cultos, por outro lado, completa o processo de conversão, onde as interpretações, apesar da mania dos "convertidos'' em dizer que "leem'' a Bíblia, são determinadas pelo pastor, muitas vezes passando pela simples exegese do texto. Interpretações literais, que conduzem à visões arcaicas e mesmo repugnantes do texto Sagrado: a bíblia "evangélica'', neopentecostal, despreza homossexuais, vê a superioridade do homem sobre a mulher, impõe vestimentas, identifica pessoas e instituições com "o demônio'' e, principalmente, impõe valores supostamente absolutos a todos (mulheres que devem deixar os cabelos longos; monogamia e outros). São interpretações conservadoras que tem como principal fundamento de validade o fato de serem "guiadas pelo Espírito Santo'', que oculta o despreparo dos pastores em interpretar textos de alta densidade semântica, escritos entre 3 e 2 mil anos atrás; e, pior, espertamente, aproveitam para incutir nos textos seus próprios valores, como a imposição do dízimo e a ideologia da prosperidade (ou teologia da prosperidade).


Claro que são críticas não generalizadas. Felizmente, o misticismo pentecostal acha-se restrito a credos de pouca abrangência, embora de maior impacto (como IURD ou IMPD). Todavia, o caudilhismo evangélico (autoritarismo dos líderes, expresso também em suas ligações com os poderes políticos), a locupletação e enriquecimento dos pastores a custa dos fieis, a intolerância religiosa, a interpretação literal da Bíblia balizada por valores conservadores e a teologia da prosperidade ficam como críticas gerais ao mundo evangélico. Algumas instituições, porém, merecem ainda mais reprovação por suas desonestas práticas ilícitas, como as já citadas, que invadiram espaços de comunicação públicos (a rádio e a televisão) para impor seus valores, mediante um discurso charlatânico, e arrecadar o máximo o possível das pessoas que, só agora, tiveram acesso as benesses do consumo.

Enfim, de forma muito superficial, traçamos o perfil dos evangélicos e procuramos traçar os motivos de sua recente migração religiosa, associando alguns problemas decorrentes dela. Talvez, em todo início de caminhada, novas crenças necessitem purificar seus valores, fortalecer instituições e sem o conservadorismo (e uma pitada não de intolerância, mas de diferenciação dos demais credos e culturas) religioso isso talvez não possa ser possível. Assim, também é relevante crer que, nesse momento inicial de afirmação dos evangélicos (que, no bicentenário da independência provavelmente destronarão o catolicismo do posto de religião dominante do país) exista muita desordem normativa e falta de apuração de dogmas e instituições, proliferando diversas igrejas com ideias abjetas e objetivos ainda mais espúrios; mesmo a Igreja Católica, antes do início de seu longo reinado como única instituição cristã, enfrentou uma série de seitas (arianos, nestorianos e centenas de outras) para afirmar sua força. Agora, o público evangélico enfrenta o mesmo, já que cada vez mais migra para igrejas protestantes históricas, muito mais firmes e organizadas, e, diga-se, sérias.


O que espera-se é que, uma vez estabilizados dogmas e passado a surto de crescimento inicial, as igrejas fiquem mais tolerantes e abertas ao diálogo, bem como induzam melhoras na realidade brasileira. Sua pregação contra o alcool, drogas, sexo desenfreado e falta de ética na política é muito bem vinda, as atuais circunstâncias, ajudando a refrear alguns aspectos negativos da atual sociedade. Talvez essa seja sua grande contribuição para a eterna formação do Brasil enquanto povo autônomo de imposições culturais externas: o contrabalanceamento do atual caos moral que reina na sociedade. Contribuíram enquanto povo, ao superar suas dificuldades materiais e ascender socialmente, deixando para trás uma vida de misérias e dando início a um movimento de transformação do país que não terá volta. Embora essa mudança social, acompanhada pela de valores que aduzimos no início do texto, tenha seus aspectos negativos, ela é de substancial importância para a construção de um novo Brasil. E, agora, os evangélicos construíram, depois da contribuição (para o bem ou para o mal) do catolicismo, mais uma capítulo da história nacional, com seus valores, sua persistência e, sobretudo, em sua fé em um Deus amoroso; e isso exclui, desse futuro belo, aproveitadores como Macedo e Valdomiro, relegados ao mesmo lugar reservado aos falsos profetas e charlatões: o esquecimento . Que a base moral fundada pelo catolicismo prospere, evolua e constitua uma árvore da vida sob os cuidados evangélicos, pronta a distribuir os frutos da nova moral brasileira em um país do futuro, uma potência econômica, cultural e, acima de tudo, cristã.

Nenhum comentário:

Postar um comentário