segunda-feira, 2 de julho de 2018

O "ser'' descartável

No meio das sombras que crescem atualmente do ponto de vista ideológico, espiritual e político, um tipo particular de patologia psicossocial vem crescendo, contaminando um sem-número de vítimas numa onda de pseudo-racionalidade, falsa auto-ajuda egocêntrica e obsessão com a quebra de regras por meio de um apelativo chamado à "liberdade'' a custo zero. 

Não gostaria de iniciar falando sobre as consequências nefastas que pensadores niilistas, existencialistas e pós-existencialistas tiveram sobre, principalmente, as juventudes dos últimos 50 anos. Basta dizer que a "condenação à liberdade'' e a radical redução da realidade/moral/consciência ao indivíduo e seus vícios e desejos foi o rompimento do ovo da serpente dessa "onda''. 

"Onda'' multicolorida, obviamente líquida e de baixa densidade. Multicolorida, porque mistura um pouquinho de tudo o que é "moderno, pós-moderno, transgressor''; líquida, porque se adapta a qualquer loucura que o indivíduo defenda e a transforma em bandeira inatacável; de baixa densidade, porque se baseia em aforismos, enunciados prontos do senso comum progressista e frases e ideias de golpe feito, com o fim de impressionar e doutrinar pela enxurrada de compartilhamentos a la modinha. 

Nesse cenário, pessoas tristes e desiludidas são facilmente atraídas pelo discurso do egoísmo libertário. Se você não teve uma infância boa, como as crianças da TV tiveram, a válvula de escape perfeita é rejeitar tudo o que te ensinaram, bem como noções básicas de moralidade e comprometimento, para ligar o botão do "foda-se'' para tudo e para todos. Afinal, você é uma criatura "em evolução'' e as coisas, valores e até pessoas que não acompanharem sua evolução (a satisfação dos seus desejos) estão prontamente disponíveis para serem atiradas na lata de lixo mais próxima.

É, você não pode sofrer por ninguém que seja obstáculo ao seu "autoconhecimento'' e a sua busca por iluminação no lugar mais escuro de todos, dentro de si mesmo. Lá estão seus desejos inconscientes e conscientes, e aí de quem te disser "ei, vai com calma!''. Acima de tudo, o seu próprio nariz. 

O problema é que as pessoas que pensam assim, jogando tudo para o alto em busca de uma "evolução'' e de uma liberdade ilusórias, encontram de tudo, menos liberdade e, decididamente, evolução. 

Fugindo do lugar comum: você não caiu do céu! Para que você esteja aqui, hoje, lendo esse texto (ou não), centenas ou milhares de pessoas, desde seus ancestrais mais remotos aos mais recentes, bem como amigos ou simplesmente pessoas caridosas, trabalharam de alguma forma, se sacrificaram e sonharam com algo melhor para você. E elas fizeram isso acreditando em valores básicos como solidariedade, amor e sacrifício pelo próximo. 

Até mesmo os erros delas, as vezes, te ajudaram. Ter um pai alcoólatra me ensinou a importância de moderar os excessos e de não convir para que ninguém caia nesse vício abominável. O trauma não fez uma ferida, mas uma cicatriz que me deixou mais forte. E aí é que está a grande falha do "preciso evoluir de forma livre e desapegar de tudo'': é tudo uma grande desculpa para fugir dos desafios e problemas que a vida nos apresenta, manifestando imenso medo e covardia em enfrentar as barreiras que se apresentam.

Tem problemas? Todos tem. Tire o melhor deles. A fuga só vai te impedir de ser verdadeiramente grande.

Não gosta da sua mãe? Trabalhe, saia de casa e dê o dedo para ela, que te criou, te alimentou e cuidou de você nas suas doenças. Detesta seu trabalho? Chegue atrasado, "seja mais você'', deixe a carga de trabalho se acumular nos ombros dos seus colegas. Acha merece alguém "melhor'' no seu coração? Jogue fora quem te impede de ser livre para ser usado como um objeto por gente escrota, e parta dois corações, o seu e o de quem já te amou. Cara, deixa de ser covarde: jogue com as cartas que Deus te deu! Cuide das pessoas que Ele pôs na sua vida! Quer evoluir rápido ou evoluir da forma certa?

Eu entendo o vislumbre que a promessa de realização pessoal e independência total que a ideologia do "desapego-de-tudo-e-eu-sou-mais-eu'' provoca. Pessoas de baixa autoestima preferem se iludir com a falsa meta de que, ao jogar tudo para o alto e viveram para si mesmas, sem qualquer limite moral, ético ou qualquer responsabilidade com as pessoas próximas, finalmente se realizarão. Esse vai ser justamente o momento que vão perceber que falharam miseravelmente. 

Sem querer entrar em qualquer argumento religioso, mas uma metáfora, nesse sentido, cai bem: ninguém chega ao céu sozinho. Cada pessoa, cada valor, cada coisa que entra no seu caminho cumpre uma finalidade na sua verdadeira evolução, a única que importa: a de aprender que a felicidade está fora, e não dentro, de nós. São as pessoas, são as ideias, são os valores, que fazem a vida fazer sentido, que dão gosto às nossas ações, que dão um caráter finalístico à nossa existência. Sim, você não evolui por evoluir, nem evolui para si mesmo; você evolui para ser útil para alguém, poxa! Ao irradiar felicidade e amor, você recebe muito mais de volta!

Vem cá: tu consomes vários litros de água e vários quilos de comida por semana. Respiras dez mil litros de oxigênio por dia. Pra acender uma lâmpada, acionas uma indústria geradora enorme e complexa, que somente existe graças a séculos de trabalho de gênios como Galileu, Newton, Tesla e Edison. É sério que você acha que não deve cooperar, nem um pouquinho, com tudo o que te cerca? Não escolha agir como o reizinho do primeiro mundo visitado pelo Pequeno Príncipe. A única coisa que vai conseguir é, se conseguir algum sucesso, olhar para os lados e não ver nada além do vazio que existe dentro de você mesmo. 

Não fugir dos problemas é um primeiro passo. A maturidade, mais do que fazer suas próprias escolhas, é fazê-las de forma responsável. Esqueça a balela de autoconhecimento, iluminação, frases de Clarice Lispector ou de Osho (quem?); a paz interior não se alcança mandando o mundo se lascar e viver em um estado semi-sonâmbulo. Sair descartando "quem te incomoda'', rasgar valores e ideias que fazem sua consciência pesar (por que não mentir? Por que não trair? Por que não falar mal de um amigo para conseguir o emprego dele?), jogar tudo para o alto por que é mais confortável não vai fazer a dor passar. Enfrentar o problema e resolvê-lo sem machucar as pessoas ou rasgar noções elementares de ética e moral, sim. 

Não é fácil optar por respeitar o que herdamos nem a vida que temos. Isso não se significa, jamais, conformismo. Significa que você vai sim subir, mudar, se transformar, mas conservando um núcleo duro que realmente faz de você, você: a imensa e rica herança de valores, vivências, pessoas e sentimentos que você recebeu e viveu. Cultivar o sucesso a partir delas, como os grandes conquistadores e líderes do mundo fizeram, deve ser a sua meta - e não se livrar de tudo para viver uma vida alienada, iludida e desenfreada. 

Sabe de uma coisa? Escutar os outros e respeitar o que herdamos tem um sentido muito lógico. Dois acertam onde um erram, sabe? Trabalho coletivo vence um individual. Ninguém basta a si mesmo! Seus pais e avós te deixaram um "know-how'' (que tal um arquivo?) de experiências e valores. Eles viveram mais que você, acertaram e erraram mais. Calçai as sandálias da humildade, pegue a construção de onde eles pararam e, com as mesmas massa e tijolos, continue. O que você acha que te atrasa te fortalece: não seja um pequeno ditador para impor ao mundo seu tempo e suas crenças de momento. Você não vai fazer o mundo girar mais rápido. Ah, mas se souber como usar o tempo do mundo para navegar pelas correntes da vida... o quão longe pode ir! E, quer saber, quando chegar à uma linda praia de água cristalina, não vai estar sozinho lá. 

Enfim, liberdade é, dentre todos os caminhos, escolher o certo. O que define o caminho certo? Acredite, você vai saber. Na hora certa, as coisas vão se encaixar, sem que você precise atirar ninguém ou nada importante na lata do lixo; as cargas essenciais te tornam forte. Viva sem pressa. Pare de achar que precisa vencer para aparecer. Como liberdade é responder pelos próprios atos, vencer é chegar ao fim da vida tendo feito algo de útil para o mundo e para quem amamos e, assim, para nós mesmos. 

A luz vem de fora. 

sexta-feira, 15 de junho de 2018

A condução coercitiva sob as barbas do Supremo: estancando a sangria


Ver a Polícia Federal, de manhãzinha, "convidando'' alguns figurões a prestar depoimento (de forma forçada) vai deixar de ser uma rotina. Triste fim para fenômenos do partido justiceiro, como o "japonês'' e o "hipster'' da "federal'', que perderão, para sempre, seus 10 segundos de fama.

Nunca vi com bons olhos a "condução coercitiva'', principalmente a do acusado/investigado. Ora, se o sujeito não é obrigado a produzir provas contra ele mesmo, por que é obrigado a prestar depoimento, metido no xadrez de uma viatura como se fosse culpado? Razão jurídica (dentro de uma ótica democrática, garantista), mesmo, não há; na verdade, a "condução coercitiva'' dos tempos pós-lava jato não é a que está no Código de Processo Penal, mas uma "mutação'' que surgiu das necessidades práticas e fins da operação.

A primeira razão é uma exigência da operacionalidade policial. Em operações anteriores contra crimes envolvendo desvio de verbas públicas, os policiais geralmente acabavam sem provas, por que, assim que o inquérito (a investigação, em termos coloquiais) era aberto, os investigados corriam para destruir todas as provas e combinar versões - as que sobravam era oriundas de algum meio ilegal (como alguma escuta obtida sem autorização judicial).

A equipe da PF de Curitiba, depois de uns minicursos nos states, inventiu uma espécie de "blietzkrieg''' policial: a abertura do inquérito coincidia com a detenção dos principais alvos para serem ouvidos, de maneira forçada, ao mesmo tempo em que se realizavam buscas e apreensões em casas, apartamentos e empresas.
Daí, muitos contratempos eram vencidos: as provas não eram destruídas, os investigados eram pegos de surpresa e acabavam "soltando'' algo ou entrando em contradição, os investigados não tinham como saber o que cada um dizia (antes, bastava combinar as versões; mas, e se todo mundo fosse ouvido ao mesmo tempo, de surpresa? Será que o parceiro de lavagem de dinheiro não iria te entregar primeiro?).

Além da razão operacional, vinha a estratégica. Ninguém se engane em acreditar que as autoridades policiais formam suas convicções depois de investigar tudo; na prática, as conclusões vem antes (os policiais sabem - ou pelo menos teorizam - quem está roubando e onde se está roubando, quem poderiam ser os chefes etc., e partem em busca de provas pra comprovar a "tese''). Como as peças de um tabuleiro jogado em conjunto com juízes e procuradores, cada "fase'' operacional, cada condução coercitiva, era desenhada para atacar os flancos abertos do "inimigo'' - o "mecanismo''.

Escolher quem constranger e quem ameaçar com prisão é fundamental para a maior sacada da lava-jato: tentar destruir o "sistema'' da corrupção por dentro, de forma autofágica, de baixo para cima e de cima para baixo, fazendo seus componentes se destruírem - vendo o parceiro conduzido coercitivamente, os possíveis alvos de operações futuras, superiores ou não na hierarquia das organizações criminosas combatidas, já partem em busca da delação, enquanto que o ritmo de conduzidos é tão frenético que não permite que se tome qualquer reação...

A razão psicológica era quase tão importante quanto a operacional e a estratégica. O investigado conduzido era quase tratado como um preso - ou, no mínimo, um muito provável candidato à uma futura prisão. O despreparo no depoimento (quem consegue raciocinar bem depois de ser tirado da cama às 6 da matina?), o medo de falar alguma porcaria, a insegurança por uma futura prisão, o receio de ter a cabeça entregue pelo parceiro conduzido na sala ao lado ou mesmo de ser entregue pelos próprios chefes deixa qualquer um em estado de desespero. E assim nasce um delator.
Apesar de tudo isso, há, juridicamente, outra razão para o sucesso das coercitivas: nosso ordenamento jurídico simplesmente não tinha nenhum expediente que pudesse ser usado em tais fins, nas investigações policiais. Veda-se a "prisão para averiguações'' e, em que pese se autorize a prisão temporária (geralmente para o réu não destruir provas), seu prazo é muito curto, não contempla necessariamente a ouvida do preso e suas hipóteses são muito específicas, geralmente quando já existem elementos probatórios fortes contra o investigado; imprópria, portanto, quando não se tem, justamente, provas...

A coercitiva, assim, sofreu uma mutação. A necessidade de recusa à uma intimação anterior foi discretamente riscada do código de processo penal - na verdade, já vi (não pela TV, mas na minha prática penal) delegados "autorizarem'' a coercitiva do investigado por telefone, sem intimação anterior... - e, como todo abuso jurídico, foi justificada como "opção menos lesiva ao réu'': ora, é melhor (para o "réu'', que ainda não o é por ainda não existir nem denúncia) obrigar o sujeito a ir depor do que prendê-lo temporariamente para isso. Dos dois abusos, o menos ruim, pelo menos.

Na verdade, se transformou a condução coercitiva em meio de detenção cautelar, uma verdadeira "prisão para averiguações'', no que se chega à grande motivação das coercitivas: a política. Mostrar na TV que o dono da Odebrecht, o presidente de algum grande partido ou outro poderoso foram enfiados dentro de uma viatura e constrangidos a depor, enquanto policiais recolhiam malotes e mais malotes de "provas'', foi a principal peça publicitária que garantiu que a conquista e manutenção da hegemonia na opinião pública por parte da operação policial. São quase peças de propaganda em tempo real, que caíram no gosto do povo, para difundir o que eu sempre disse ser um projeto de poder.

Mas não se enganem com a expressão. Não quero dizer que policiais, juízes e procuradores querem "tomar'' o poder ou o governo, mas sim que essas corporações possuem uma "agenda política'' para o país e para si próprias. Ela passa sim pelo combate à corrupção, mas também deixa clara suas marcas ideológicas made in EUA e abarca, na visão de alguns grupos, até mesmo interesses meramente classistas (procuradores e juízes lutam com unhas e dentes por reajustes salariais, manutenção de auxílios inconstitucionais e uma ou outra regalia). Nada disso é claro como se fosse uma "cartilha'' - esses interesses, inspirações e objetivos partem de grupos diferentes dentro desses grupos, se misturam, se conflitam ou se fundem.

Independente do fato de agredir ou não a ordem jurídica (sempre acreditei que sim), o fim das conduções coercitivas deixa as operações policiais em andamento pernetas. Vão ter que se virar com o que já possuem (que não é pouca coisa). Ao lado do desmonte das equipes policiais, restrições orçamentárias e cansaço da opinião pública, estamos perto de ver o fim da lava jato.

Esquisito é, só agora e depois de várias vezes confrontado com a (i)legalidade das conduções (os ministros, inclusive muitos dos que votaram pela inconstitucionalidade do instituto, costumavam chancelar tudo que os policiais faziam nessa seara) o STF tenha riscado o instituto do mapa jurídico. É hora de voltar à "normalidade''.

Será o tal do "grande acordo nacional''?

segunda-feira, 11 de junho de 2018

A abelha que se foi num bater de asas




Das colinas de Efraim
Uma flor surgiu para mim
Entre Ramá e Betel
Tuas palavras deliciavam como mel

Senhora de simples juízos
Tão prática nas suas certezas
Viajante de sonhos, para onde vai tua estrada?
Eu estarei lá, no fim da tua volta ao mundo

Santa sabedoria, prudente amiga
Dize-a que o mais complexo é uma linha reta
Apontando do meu para o seio dessa augusta
E nem Sísero nos vencerá nessa briga

Abelhas trazem a vida
E o teu sorriso, ressureição
Mas o conselho do meu coração
É, para sempre, lamentar tua despedida.

domingo, 8 de abril de 2018

As quatro nulidades no mandado de prisão do ex-presidente Lula



Desde a última quinta, o mundo político brasileiro entrou em choque em a expedição, em tempo recorde, do mandado de prisão destinado ao ex-presidente Lula. Mesmo sem saber do que se tratava, muitos se aventuraram a dar pitaco de juristas - inclusive "juristas'' que no máximo leram algum resumão de internet sobre direito processual penal - e a bater palmas para a celeridade no combate à "impunidade''. 

Todavia, a impunidade - ou a sensação geral de - não justifica o atropelo às formalidades legais que um mandado de prisão deve possuir. Aqui, tentarei, de forma mais ou menos coloquial, demonstrar quatro nulidades presentes na "ordem de prisão'' de Luiz Inácio Lula da Silva, traduzindo, na medida do possível, toda a teoria e o rigor técnico-dogmático que a matéria exige. 

I - Pequena introdução.

O modelo de privação da liberdade brasileiro é centrado no Judiciário. Com exceção dos crimes militares, o cometimento de crimes civis enseja a prisão em flagrante, caso o delito ocorra às vistas do condutor (aquele que prende o mal-feitor) ou tenha acabado de ocorrer; a prisão temporária, modalidade curta de privação da liberdade que almeja evitar que o suspeito destrua provas, enquanto e interrogado; a prisão preventiva, baseada no risco que o suspeito oferece para a ordem pública, pela sua capacidade de continuar a cometer crimes, bem como pelo perigo que sua ação livre representa para a apuração das provas que instruirão o futuro processo penal, além do risco de fuga; e, por fim, a execução da sentença penal condenatória, onde, ao contrário das demais modalidades, não se fala em provisoriedade, mas em prisão definitiva, pelo tempo da condenação. 

Em todas estas, o Judiciário se faz presente. Sem a ordem fundamentada (na lei, entendendo-se esta em sentido estrito, considerando-se o conjunto piramidal formado pela Constituição e pelas leis como um verdadeiro "bloco de legalidade'') de um juiz, qualquer prisão é absolutamente ilegal. As ilegalidades podem se dar desde a incompetência (a falta de poder jurídico da autoridade que decretou a prisão) do juiz, ausência de formalidades essenciais no mandado (como a escrita errônea do nome e localização do detento) ou mácula a direitos e garantias fundamentais. O mandado de prisão expedido pelo EXMO Juiz Sérgio Moro se enquadra na segunda e na terceira hipóteses.

II - Da ilegalidade por ausência de comunicação processual entre instâncias.

É interessante notar que, prevendo a iminente prisão quando do julgamento dos embargos de declaração por parte do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a defesa do ex-presidente tenha interposto um habeas corpus preventivo (um remédio que impede a prisão ilegal iminente do paciente, a vítima do ato ilegal), no Superior Tribunal de Justiça (o órgão competente para conhecer de coações ilegais por parte de ato de desembargadores federais), que, negado, ensejou a interposição de outro habeas corpus, perante o Supremo Tribunal Federal.

Conforme é de conhecimento geral, o STF denegou a ordem (o pedido de proteção ante à coação ilegal levantada pela defesa; significa, basicamente, que o STF entendeu que não é contrário à Constituição a execução da pena após o julgamento em segunda instância), em um julgamento acompanhado pelo país inteiro. Ocorre que o resultado do julgamento não foi comunicado, formalmente, ao TRF da 4ª Região.

Mais que uma firula processual, a ausência de comunicação das decisões entre as instâncias (no caso, da maior instância judicial do país, o STF, ao TRF 4) é um atentato direto à eficácia dos atos processuais praticados, visto que, para produzir efeitos, uma decisão judicial, tal como um ato administrativo, precisa ou ser publicada ou comunicada ao destinatário. 

No caso, a autoridade coatora (o desembargador-relator do processo contra Lula no TRF 4 ou o presidente do órgão) deveria ter sido notificado da decisão do STF denegando o HC; ora, não se trata de mera formalidade. Não há a produção de efeitos antes de tal notificação - um mero documento, em formato PDF, digitalizado e com um "recebido'' por parte do destinatário. Sem isso, chega-se a um nível tal de baixaria processual que não é mais necessário a um tribunal superior notificar o inferior, via malote digital, carta rogatória ou qualquer outro meio de notificação oficial; basta apenas que os membros do tribunal inferior liguem a TV ou consultem os sites de notícia para terem conhecimento das decisões dos tribunais superiores e, assim, tomem as medidas cabíveis... 

Assim sendo, houve flagrante descumprimento de formalidade legal, visto que as comunicações entre juízes e tribunais devem se dar de acordo com o formato prescrito pelo Código de Processo Penal (via cartas precatórias, quando um juiz se comunica com outro de igual hierarquia; carta rogatória, quando um Tribunal se comunica com um juiz inferior; carta de ordem, quando um tribunal ou juiz se comunica com uma autoridade judiciária estrangeira; ou uma simples notificação genérica, utilizada para todos os demais casos), fazendo incidir o art. 564, IV, do CPP, que diz haver nulidade quando ocorre a omissão de formalidade essencial ao ato - quer mais essencial a uma decisão judicial o ato da notificação entre um tribunal e outro, sem a qual a decisão não possui eficácia?

A ausência de notificação oficial vicia, na origem, o ato do TRF 4 que ordenou ao Juiz Moro expedir o mandado de prisão; e, como se há de ver, foi a senha para o cometimento da próxima nulidade.

II - Da quebra de isonomia.

Em que pese mais polêmica, é impossível deixar de notar uma patente quebra do tratamento igualitário devido ao Tribunal ante a seus condenados. Não se pode negar que, além do próprio processo criminal em si ter tramitado com uma velocidade avassaladora, a expedição de uma ordem de prisão com menos de 24 h do julgamento de um HC no STF, do qual não houve notificação formal, superou todos os demais casos já tratados pelo TRF 4, que não aguardou a notificação do STF para emitir o mandado, como o fez em outros casos.

Assim, ao adotar uma postura diferenciada para o caso do ex-presidente, determinando o início do cumprimento da pena de forma tão rápida (seguindo-se à expedição de mandado de prisão contra o ex-presidente pela 13ª Vara Federal de Curitiba em singelos 22 minutos após receber, corretamente, a notificação do TRF 4 nesse sentido) o TRF 4 e o juiz de primeira instância adotaram uma celeridade incomum e prejudicial ao acusado, coisa que não fizeram com outros acusados em outros processos. 

Isso não quer dizer que o ex-presidente tinha "direito ao atraso'', mas sim que, em se verificando um certo ritmo de trabalho comum no TRF 4 e na vara de primeira instância que deixam o tempo de expedição de um mandado de prisão em X dias, adotar X/2 dias para um condenado específico evidencia uma predisposição especial em executar a pena de tal sentenciado mais rápido que os demais, o que, de forma clara, configura mácula à imparcialidade dos julgadores do TRF 4 e da Vara Federal de Curitiba. 

Para ficar claro: se um juiz trata de "agilizar'' a execução da pena de um condenado, destoando do tempo de execução normal para os demais sentenciados, demonstra claramente estar contaminado por paixões e convicções pessoais e, ao representar o Estado-juiz, fere de morte o direito à igualdade do condenado, que passa a ser tutelado por uma autoridade judiciária que não é imparcial, mas tem um especial interesse em sua prisão, a ponto de diferenciá-lo, de forma negativa, dos demais condenados. Trata-se da aplicação de rigor excessivo contra um indivíduo, aplicando a lei de forma diferenciada, fora do tempo de espera normal, agravado pela provável "coordenação'' entre a primeira instância (vara federal) e a segunda instância (TRF 4), onde essa última ordenou a execução da pena sem ter sido notificada pelo STF para tal, e a primeira emitiu o mandado de prisão em tempo recorde. 

Aqui, se trata de mácula ao direito fundamental da igualdade.

III - Da ausência do esgotamento recursal em segunda instância. 

Como um jogo de dominó cujas peças derrubam umas às outras, uma nulidade acaba implicando em outra. O tratamento "especialmente mais rigoroso'' com o ex-presidente - para se usar de eufemismos - implicou, acima de tudo, na ordem para o início da execução da pena antes mesmo de encerrada a atuação do TRF 4 no processo criminal em questão. 

Em que pese o próprio Tribunal ter declarado, no acórdão que negou a apelação do ex-presidente que, in literis "tão logo decorridos os prazos para interposição os prazos para interposição de recursos dotados de efeito suspensivo, ou julgados estes, deve-se ser oficiado à origem para dar início à execução das penas'', confirmando que a pena só pode ser executada depois de ser julgado o último recurso possível a ser manejado pela defesa ainda perante o próprio TRF 4 (o que, no caso, consistiria em um embargos de declaração questionando os primeiros embargos de declaração interposto contra o Acórdão que julgou a apelação), o mesmo tribunal determinou a execução imediata da pena - sem ter sido notificado pelo STF da denegação do HC, sem adotar postura semelhante com outros condenados e, claro, sem se atentar para a existência de recursos possíveis de serem utilizados pela defesa ainda perante o próprio Tribunal. 

Explicando sumariamente, nesse sentido, a apelação de Lula foi julgada e, da decisão que a negou (e ainda aumentou a pena do ex-presidente), a defesa opôs um recurso (os embargos já falados), que interrompe o prazo de outros recursos e ainda suspende a eficácia da condenação. Ocorre que a lei diz categoricamente que qualquer decisão pode ser embargada e, inclusive, há entendimento pacífico que isso envolve a própria decisão que julga os embargos, desde que se alegue omissão (o tribunal não se pronunciou sobre determinada tese da defesa), obscuridade (o tribunal não foi claro em algum aspecto da sua decisão) ou ambiguidade (o tribunal adotou algum fundamento ou decisão de duplo sentido). 

Em suma, ainda havia o prazo de 2 (dois) dias para a defesa interpor novos embargos. Isso poderia gerar a contestação de que, assim, a defesa sempre poderia interpor novos embargos, impedindo o julgamento final em segunda instância; no entanto, o § 2º do art. 619 do CPP é claro em afirmar que o relator do processo no Tribunal pode indeferir, sozinho, os embargos que não preencherem os requisitos que acima listei, considerando-os meramente protelatórios. Tal possibilidade não escapou à argúcia do Juiz Sérgio Moro, que assim mencionou sua opinião sobre tal expediente: 

"Não cabem mais recursos com efeitos suspensivos junto ao Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Não houve divergência a ensejar infringentes. Hipotéticos embargos de declaração de embargos de declaração constituem apenas uma patologia protelatória e que deveria ser eliminada do mundo jurídico. De qualquer modo, embargos de declaração não alteram julgados, com o que as condenações não são passíveis de alteração na segunda instância.''

A argumentação de Moro é estranha. Basicamente, ele, o juiz de primeira instância, está a antecipar uma decisão - a de que novos embargos de declaração - que somente caberia ao TRF 4 e ao relator do caso perante tal órgão. Mais que isso: Moro usurpa a competência do TRF 4, de forma consentida com este, ao declarar que qualquer tipo de embargo oposto pela defesa seria protelatório. Não satisfeito, vai além e diz que o direito de interpor embargos ante o julgamento de outros embargos, assegurado pelo Código de Processo Penal, é uma "patologia'' que deveria "ser eliminada''. Fecha com chave de outro ao sentenciar que os embargos não ensejam alterações do julgado - esquecendo que os embargos de declaração podem sim, excepcionalmente, ter efeito infringente (ou seja, são capazes de alterar a decisão embargada) se assim o órgão competente entender. Basicamente, Moro diz que do acórdão prolatado pelo TRF 4 não cabe qualquer recurso, chegando ao ponto de invadir, em letras miúdas, a competência do tribunal ao qual ele mesmo está vinculado. 

Todavia, somente com a declaração do TRF 4 de que novos embargos interpostos são protelatórios de fato haveria o exaurimento de sua competência - não cabe a Moro esse tipo de decisão. 

Assim, se encerraria formalmente a jurisdição do TRF 4, permitindo-se o início execução da pena. Sem se aguardar esse prazo final, bem como o julgamento colegiado ou individual desse último embargo, não houve uso total das competências do órgão colegiado, pelo que não se pode executar, desde logo, a pena privativa de liberdade. 

IV - Da última nulidade. Da conclusão. 

O último ponto é o mais interessante de todos. Se resume, basicamente, ao comentário sobre uma curta frase, escrita em um livro muito especial, embora cada vez mais desprestigiado. 

Não me refiro à Bíblia, que embasa indevidamente jejuns políticos. 

Não me refiro a artigos jornalísticos, escritos por pretensos especialistas que fazem pesquisas no Google e posam de entendedores do assunto. 

Não me refiro aos artigos e entrevistas de juristas de aluguel ou partidários, que, em que pese gozarem de grande e notório saber jurídico, parecem ter esquecido as regras de interpretação textual básicas. 

Sim, o art. 5º, LVII, da Constituição Federal é de uma simplicidade que chega a evocar o antigo brocardo exegético de que "in claris cessat interpretatio'' (na clareza da lei, não há interpretação). Eu reformularia o ditado para "quando a lei é clara, descabem interpretações que distorcem-lhe o seu sentido salutar'': "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.''

Vamos por partes: "ninguém'' quer dizer que tal direito se estende a TODOS; "culpado'' quer dizer "condenado'' de forma definitiva; "trânsito em julgado'' nos lembra os verbos transitivos, que "transitam'' entre as palavras, pelo que podemos aludir que a sentença penal condenatória não mais transita - é, dessa forma, "imóvel'', ou seja, não será mais enviada para algum órgão superior reapreciá-la, se tornando inalterável. Essa junção de palavras quer dizer, simplesmente, que não se pode executar a pena de um condenado sem que este seja definitivamente condenado, sem que não mais caibam quaisquer recursos. Pense numa jarra de leite derramado. 

É um absurdo completo que a corte constitucional deste país ignore a singeleza de tal interpretação, para transformar "trânsito em julgado'' em "trânsito em julgado na segunda instância'' alegando que o "clamor social'' contra a "impunidade'', bem como que "o sistema anterior só beneficiava aos ricos'' e que "os recursos para cortes superiores só servem para protelar a pena''. 

Creio, sem nem pestanejar, que quando nem mesmo a mais alta corte do país respeita a Constituição que deve guardar, não se pode falar que, "se o STF chancelar, tá valendo''. Ora, se a Constituição proíbe o início da pena antes que a decisão condenatória se torne inalterável e impassível de ser reapreciada por outro órgão judiciário, estamos diante de não apenas uma nulidade, mas do esmagamento de um direito/garantia fundamental de presunção de inocência, que vicia, de forma insanável, qualquer decreto de prisão embasado em tal entendimento. 

Basicamente, o STF diz que o protelamento do início da pena é culpa dos acusados (que recorreriam demais), e não da sua própria desorganização e incapacidade e das do STJ. 

Tal atitude significa que a corte excelsa transfere a culpa pela demora no trâmite dos processos aos acusados, que somente estão exercendo o direito de terem suas condenações apreciadas perante o STJ e STF, direito garantido pela própria Constituição, da qual o STF se diz guardião. Esse direito basicamente some e nos deixa com o seguinte questionamento: imaginando que, depois de 4 anos da interposição de um Recurso extraordinário (esse, perante o STF), os ministros decidem que o recorrente foi condenado com base em uma lei que contraria a Constituição (ou que houve alguma nulidade que contrariou a CF) e libertam-no, como se pode justificar a esse cidadão o que foram esses quatro anos em que ficou detido "iniciando o cumprimento da pena''? Havia pena, e não há mais? Em resumo: como mandar iniciar o cumprimento da pena, se ainda existe chance de que a própria condenação seja extinta? O que fazer com os anos de pena cumpridos? Será que sumirão, como num passe de mágica, com as penadas imperiais dos ministros do STF? 

De toda forma, não se pode alegar um "problema prático'' para simplesmente reescrever, a bel prazer, a Constituição.

Especificamente, a Constituição está sendo "reescrita'', de forma especialmente prejudicial, para o ex-presidente Lula: mesmo que seu processo tenha tramitado em velocidade recorde perante Moro e perante o TRF 4, não havendo que se falar em "risco de impunidade''; mesmo que o TRF 4, instigado ou intimidado por Moro, negue-lhe os recursos a que ainda tinha direito (os embargos dos embargos), sem considerar que este não atrasariam em mais que uns poucos dias ou semanas o início da execução da pena; mesmo que o TRF 4 ordene a Moro que expeça o mandado de prisão de Lula, sem ter sido formalmente comunicado pelo STF da denegação da ordem (inaugurando a publicidade das decisões judiciais via Rede Globo); mesmo que (e aqui vai o mais grave) a maioria dos ministros do STF seja contra a execução da pena após o julgamento na segunda instância (no caso específico do julgamento do HC do ex-presidente, a ministra que decidiria a questão votou contra suas "próprias convicções'', denegando a proteção que ela mesma acredita que o paciente tem direito) - mesmo que tudo, absolutamente tudo, em seu caso escape aos motivos que levaram o STF a permitir a prisão após o julgamento em segunda instância, a seu caso foi aplicado tal entendimento.  

Essa extraordinária conjugação de fatores permitem uma triste, mas dura conclusão: o julgamento do ex-presidente Lula, pelo menos no que se refere à sua prisão antes do trânsito em julgado perante a segunda instância, foi absolutamente nulo, em diversas fases e aspectos. Foi um julgamento político, diferenciado, mas não para privilegiá-lo, mas para destacá-lo dos demais cidadãos e tratar seu caso com especial rigor.

Mais que simples nulidades, as ilegalidades cometidas em tais trâmites são perigosos precedentes que tem potencial para atingir a qualquer cidadão do país. Pois, oficialmente, qualquer um de nós pode simplesmente virar alvo de uma autoridade judicial e terminar sofrendo um "tratamento diferenciado'' com o bater de palmas geral de uma sociedade punitivista. 

"Eu sou você amanhã'' nunca foi um alerta mais lúcido. E digo que, quando os julgamentos fogem dos textos jurídicos (como a lei e a Constituição) para serem justificados e embasados segundo expectativas políticas ("anseio de punição dos corruptos''), todo e qualquer cidadão pode ser vítima de um tribunal de exceção. A violação de direitos fundamentais agride não só à "vítima'' específica, mas a todos os cidadãos do país, por extensão. 

Nunca antes a expressão "somos todos Lulas'' foi tão verdadeira. 

segunda-feira, 12 de março de 2018

Louco

Penso no que não digo
Digo, não penso, mas consigo
E do teu bater de asas faço brisa suave

Pedaços de espelho
Neste sopro, me dão falsos conceitos
Grande e pequena, nova e velho
Fatos mornos; ouço o rifar de um espectro

É uma imagem de açúcar banhada de chuva
Falha minha, do pensar sem pensar
Sumida, acanhada, de olhos a não mais amar

Não pensei e quebrei
Teu quadro retesei e rasguei
O sopro suave te levou do meu amar
Na caixa vazia, louco a querer a volta do meu pensar.

Exílio


Desterrado das serras agrestes
Desatino a carrear pelos prédios inférteis
Desalmado ser, numa ausência de querer

Meu passarinho bateu as asas
E, baixinho, cantou juras falsas
Adeus; e matou meu sonhar
Engolido pela terra, num engasgar

Neste vale estranho e sem vida
Teu canto te fez ninho e amada
Das pedras fostes, sozinha, a flor colhida

Pedras que não te atiro no ar
Vai, te põe a sonhar
Egresso ao beijo das folhas mortas
Eu, estrangeiro de caminhadas tortas.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

As realidades da Ilíada: o mito que existiu



Nos acostumamos a pensar nas lendas e mitos da antiguidade como contos de fada – o legado iluminista, com sua obsessão pela “razão’’ materialista, conseguiu incutir, por séculos, a ideia de que o fantástico necessariamente era mentira. Assim, arrogantes cientistas e pensadores, educados sob os cânones darwinianos, semearam nos quatro cantos da terra novas verdades absolutas, com o evolucionismo e o empirismo como antídotos contra o misticismo e pilares de uma cosmovisão filosófica onde a interação entre os corpos materiais seria o princípio e motor de absolutamente tudo o que nos cerca.

Nos acostumamos a pensar nas lendas e mitos da antiguidade como contos de fada – o legado iluminista, com sua obsessão pela “razão’’ materialista, conseguiu incutir, por séculos, a ideia de que o fantástico necessariamente era mentira. 

Assim, arrogantes cientistas e pensadores, educados sob os cânones darwinianos, semearam nos quatro cantos da terra novas verdades absolutas, com o evolucionismo e o empirismo como antídotos contra o misticismo e pilares de uma cosmovisão filosófica onde a interação entre os corpos materiais seria o princípio e motor de absolutamente tudo o que nos cerca.Além da tradição bíblica, seja cristã ou judaica, o alvo preferido dos novos sacerdotes do chamado “positivismo’’ histórico era a mitologia grega. Histórias de deuses e heróis pareciam mentiras tão bem elaboradas quanto os feitos de Sansão, Davi, Moisés e Jesus Cristo; isso, contudo, mudou quando a própria metodologia científica divinizada pelos pretensiosos historiadores oitocentistas começou a lançar indícios sobre a veracidade de mitos antigos – ou pelo menos elucidar o que pode ter gerado a lenda.

A descoberta da cidade perdida de Troia, no exato local onde foi descrita por Homero e Pausânias, bem como os indícios de que fora destruída por uma guerra deixaram os senhores da verdade engasgados com a fumaça imunda de seus próprios cachimbos. Quanto mais se escavavam os terrenos do então Império Otomano e do já independente Reino da Grécia, novos indícios, como uma avalanche, surgiam: a descoberta da cidade de Micenas, com suas muralhas imensas; a descoberta de Cnossos, em Creta; e, por fim, o mais impressionante e definitivo achado, as Cartas de Tawagalawa, escritas em tabletes de argila por escribas da corte real dos hititas e dirigidas a “um reino além do Egeu’’, solicitando a extradição de um aventureiro rebelde hitita, não sem antes confirmar que “chegamos a um acordo sobre Wilusa, por causa da qual fomos à guerra’’. Wilusa era, descobriu-se no fim dos anos 1990, o nome hitita que designava Ílion, ou seja, Troia. Seu governante era Aleksandu – Alexandre, o segundo nome de Páris, filho do rei Príamo e príncipe de Troia, o causador de todo o conflito narrado por Homero, segundo reza a mitologia.

Nada disso significa que deuses caminharam entre os mortais ou serpentes de sete cabeças foram mortais por semideuses. Contudo, tudo aponta para uma base real para os mitos antigos que formaram o Ocidente tal como o conhecemos. Pensemos bem: da mesma forma que culturas menos complexas, como os índios americanos ou os aborígenes australianos, utilizam mitos e lendas como forma de comunicar eventos que realmente aconteceram, a mesma metodologia poderia ter sido utilizada pelos antigos. O mito nada mais foi que uma forma de transmitir às gerações futuras o legado histórico dos povos, de forma metafórica, metonímica até. Além da história em si, os mitos agiram como transmissores daquilo que havia de mais importante e precioso para qualquer povo: a cultura. A língua, a religião, os costumes, os valores morais e até mesmo visões filosóficas – essas, por sinal, deram origem ao que chamamos posteriormente de “filosofia grega’’ – estavam e continuam expressos nas lendas de Hércules, Aquiles e companhia.
Assim, Zeus pode não ter sido um deus poderoso cujo trono se assentava no Monte Olimpo, mas um patriarca semi-lendário do qual descendiam as principais famílias nobres da Velha Grécia micênica, por exemplo. As possibilidades são infinitamente interessantes.

Contudo, o elemento mais importante não é tanto a história real metafórica que os mitos transmitem mas, sobretudo, os valores culturais e morais que encerram. A Ilíada homérica é farta em tais referências.

O próprio início da narrativa oferece problemáticas interessantes. Acossado pela peste enviada pelo deus Apolo (o protetor de Troia), o rei Agamenon, líder máximo dos gregos, é obrigado a devolver a capturada filha do sacerdote do deus do sol, sua parte no butim. Como compensação, tomou como sua a escrava Briseis, também captura no mesmo ataque, que havia sido a parte de Aquiles. Revoltado, o grande guerreiro se retira do combate, o que inicia uma série de derrotas para os gregos (que aqui são chamados de “aqueus cobertos de bronze’’) que terminam com a quase destruição da armada.

Percebe-se que, ao contrário de outras narrativas antigas (como o épico de Gilgamesh), há um turbilhão de emoções, paixões e, sobretudo, do desejo egoístico em tais episódios. Por causa do corpo de uma escrava, os dois grandes guerreiros gregos lançaram a semente do que quase foi uma derrota total para os aqueus. A paixão de Aquiles pela escrava (contrariando o estereótipo de que o grande guerreiro mantinha um relacionamento homossexual com seu primo Pátroclo, o que em nenhum momento é sugerido na narrativa) e a paixão de Agamenon pelo poder e pelo desejo de posse são a causa da ruína.

Esse verdadeiro fatalismo (onde as paixões mundanas e materiais são quase sempre a causa dos desastres) é como uma nota musical dominante que permeia todo o poema. Na verdade, a própria guerra em si aparenta ser, no fundo, uma máxima moral: o homem é qualificado por aquilo que deseja. São as escolhas humanas, seus desejos e paixões que o tornam digno de louvor ou de escárnio; e é com uma escolha que toda a guerra da Ilíada se inicia.

É a escolha de Páris, logo narrada por Homero. Na verdade, apesar de ser filho do Rei Príamo e da rainha Hécuba, Páris foi abandonado para morrer pelo próprio pai quando sua irmã Cassandra previu que ele seria a causa da destruição do reino inteiro. Salvo por um camponês e criado como tal, Páris descobriu sua origem real e foi acolhido como membro da família real, para desespero de Cassandra. Tal detalhe – o fato de ser um príncipe criado como camponês, ou seja, como alguém bruto e ignorante e habituado à tarefas grosseiras como lavrar a terra – influencia decisivamente na escolha decisiva que o príncipe “maldito’’ fará: eleito como árbitro pelos deuses para julgar qual deusa seria mais bela, Páris na verdade decidiu não qual divindade seria mais atraente, visto que nenhuma delas desfilou, como num concurso de miss universo (ou miss Olimpo) para o ávido príncipe; a sua decisão deu-se de acordo com o que cada deusa ofereceu em troca do título de mais bela do universo.

Ora, isso é confirmado por causa da participação de “Palas Ateneia’’, ou Atena, no “concurso’’. Longe de ser descrita na mitologia como bela, Atena era uma deusa bélica que pouco se importava com trejeitos femininos – diz-se que era virgem. Logo, a “beleza’’ que Atena expressava não era algo físico, mas valorativo, abstrato, filosófico até: ao contrário do que suas concorrentes ofereceram, a deusa ofereceu sabedoria, justiça e a fama de grande guerreiro a Páris. Tratam-se das virtudes mais elevadas não só dentre os micênicos, mas dentre quaisquer povos da antiguidade.
Mas Atena não se mostrou mais interessante do que a deusa Hera. Descrita como uma mulher bela, a esposa de Zeus ofereceu algo fantástico e sem paralelo, mesmo para a megalomaníaca mitologia grega: Páris seria o rei da Ásia caso a escolhesse. Trata-se do poder ilimitado, a tentadora oferta que talvez tivesse sido aceita por qualquer outro dos muitos filhos de Príamo.

Ora, vimos que Páris não fora criado como Príncipe, mas como um camponês. Como tal, seria estranho, para não dizer incompatível, com sua falta de “cultura’’ ou de educação formal e moral, que escolhesse a sabedoria ou a glória imperial. Como muitos sabem, a escolha do príncipe foi pela oferta da deusa Afrodite: o amor da mais bela mulher do mundo, a Rainha Helena de Esparta. Lembre-se que Afrodite não era a deusa de qualquer tipo de “amor’’, como o sentimento de uma mãe pelo filhou ou a fraternidade dos irmãos entre si, mas sim de um amor sensual. Sem delongas, era a deusa do sexo, da paixão que levava os amantes à loucura e destruía famílias e casamentos – e trazia a destruição do lar e até mesmo da civilização, como ocorreu com Troia.

Assim, sem pensar em seu próprio país, Páris escolheu o amor sexual. Como camponês, optou pela luxúria. Tudo isso traz uma lições interessante: seguir os instintos da carne é a conduta a se esperar da maioria dos homens (visto ser Páris um camponês); a duração do prazer, embora intensa, é efêmera e sem posteridade (filhos de Páris com Helena, se existiram, não sobreviveram à guerra); a destruição do vínculo matrimonial e familiar causa caos e guerra; o preço pela obediência à luxúria é a destruição de si mesmo e de todos ao redor. O vício, a matéria, as paixões baixas, tudo o que seria atribuído por Platão – ávido leitor da Ilíada – como proveniente da alma animal do homem, leva à destruição caso não controlado pela força e pela sabedoria de homens mais iluminados.
Heitor e Príamo figuram, na Ilíada, como esses homens iluminados. Se um ou outro tivessem sido eleitos como árbitros da disputa entre as deusas, certamente teriam escolhido a vitória na guerra ou o reinado sobre a Ásia – e, historicamente, a localização de Troia permitira a construção de um império. Os dois tentam defender o povo e a cidade do que sabem ser a extinção de seu povo. Longe dos atributos divinos de Aquiles e outros heróis gregos, Heitor e Príamo são muito “humanos’’, mas encarnam o “melhor’’ da humanidade. O rei de Troia, nos poucos cantos onde figura, se apresenta como um homem idoso e sábio, que arrisca sua vida indo ao acampamento aqueu para pedir, humildemente, ao inimigo Aquiles que lhe conceda o favor de enterrar o corpo do morto Heitor, exterminado pelo próprio herói aqueu.

Príamo estava disfarçado e aparentemente sem qualquer tipo de proteção ou guarda. Despojado da realeza, era nada mais que um pai, movido por um amor muito diferente daquele que dominara Páris, tentando enterrar o corpo do filho. A sequência da descrição dos funerais de Heitor, que paralisam momentaneamente a guerra, descrevem sobre como o respeito àqueles que já se foram oferece uma chance de paz; ou respeito não exatamente aos mortos, mas ao que eles transmitiram. A força do costume de respeito aos mortos – visto que o desejo de Aquiles era deixar que as aves de rapina e animais devorassem o corpo de Heitor, o que era visto como tremenda desonra e impedimento para que o herói fosse agraciado com a estada nos chamados Campos Elísios, o paraíso da mitologia – venceu o desejo de vingança cega de Aquiles, que chorou diante do rei de Troia.

Ora, Heitor e os troianos são apontados como “domadores de cavalos’’. Séculos depois, Platão utilizou a metáfora do condutor da carruagem para expressar o ideal de equilíbrio e harmonia tanto no interior do homem quanto em sua sociedade: é controlando os cavalos do desejo por meio dos arreios da razão que o condutor se dirige para o caminho que deve seguir. De uma certa forma, talvez os troianos, e não os aqueus, é que são apresentados como os verdadeiros heróis da história. Isso não significa que mereciam ganhar a batalha, visto que, do outro lado, os aqueus foram abençoados pelos deuses para vencer.

Essa vitória parece não ter se dado só pela superioridade numérica ou da qualidade dos guerreiros aqueus. Na verdade, até mesmo os deuses agiam como se seguissem um “script’’. Zeus é descrito, durante as batalhas, como portador de uma balança, onde ora o peso pende para os aqueus, ora para os troianos, mas subordinado à alguma orientação do próprio destino. Sim: a história tinha um fim pré-determinado. Os troianos perderam a guerra no momento em que acolheram e protegeram, até o fim, um adúltero – mesmo que se tratasse de seu próprio príncipe. Mesmo honrados, mesmo portadores de bons motivos para se defender e sob a liderança de homens sábios, a lei do retorno deve prevalecer. Afinal, o desequilíbrio causado por uma paixão insensata deve ser restaurado.

Os acontecimentos narrados pela Odisseia, contudo, fazem crer que o castigo destinado aos troianos por um simples adultério foi desproporcional. Os vitoriosos, em grande parte, nunca voltaram para casa, ou se voltaram tiveram fins trágicos. Agamenon foi assassinado pela própria mulher; Ajax, o grande guerreiro e homem de voz mais alta dentre os aqueus, morreu de forma vergonhosa em um naufrágio; Ulisses, ou Odisseu, perdeu todos os seus homens e enfrentou uma exaustiva jornada de 20 anos para retornar para casa. Aquiles, como se sabe, foi assassinado por Páris com uma flecha envenenada no calcanhar, durante seu casamento com a princesa Polixena. O casamento com uma bela mulher o matou.

Com essa série de mortes, o equilíbrio seria restaurado. Os deuses, meros agentes de um destino misterioso e pré-ordenado, restauram o equilíbrio que sua própria vaidade causou. Afinal, quem, se não a deusa Éris, a divindade da discórdia, seria a causadora da dúvida sobre qual deusa seria a mais bela? A maçã dourada, o prêmio que terminou com Afrodite, germinou toda a situação. Parece simplista, mas a discórdia causada entre os deuses em prol do que parecia ser um título estético aparentou ser uma disputa entre valores e paixões; dentre os homens que combateram, foi uma luta entre a honra (aqueus) e a sobrevivência (troianos). Nada disso, contudo, foi um preto-no-branco: os troianos protegeram um adúltero, mas tinham mais honra que os aqueus; os aqueus venceram por que sua causa (a preservação da família e de sua própria cultura, visto que o rapto de uma matriarca aqueia punha em risco sua própria posteridade) era justa, mas se excederam em tal tarefa e foram punidos por isso.

Tamanha foi a repercussão dessa guerra de valores que a própria mitologia se encerrou pouco depois dela, coincidindo com o fim da civilização micênica. Com a morte dos grandes heróis, o caminho estava aberto para um século de guerra e invasão que sepultou a era dourada da mitologia.

As escolhas trazem consequências; são elas quem definem quem você é e as consequências das suas atitudes; escolha sempre a honra e a sabedoria contra as paixões baixas; preserve as tradições de sua cultura e história; condutas negativas geram efeitos negativos. Eis a grande sabedoria da Ilíada.

É, em suma, impossível deixar de acreditar na veracidade desses ensinamentos. Imaginar Aquiles e Heitor lutando ante às muralhas de Troia se torna mais palatável quando esse conflito se dá, diariamente, no interior de cada um de nós.


E você, qual das três virtudes escolherá para nortear sua vida?