Ver a Polícia Federal, de manhãzinha, "convidando'' alguns figurões a prestar depoimento (de forma forçada) vai deixar de ser uma rotina. Triste fim para fenômenos do partido justiceiro, como o "japonês'' e o "hipster'' da "federal'', que perderão, para sempre, seus 10 segundos de fama.
Nunca vi com bons olhos a "condução coercitiva'', principalmente a do acusado/investigado. Ora, se o sujeito não é obrigado a produzir provas contra ele mesmo, por que é obrigado a prestar depoimento, metido no xadrez de uma viatura como se fosse culpado? Razão jurídica (dentro de uma ótica democrática, garantista), mesmo, não há; na verdade, a "condução coercitiva'' dos tempos pós-lava jato não é a que está no Código de Processo Penal, mas uma "mutação'' que surgiu das necessidades práticas e fins da operação.
A primeira razão é uma exigência da operacionalidade policial. Em operações anteriores contra crimes envolvendo desvio de verbas públicas, os policiais geralmente acabavam sem provas, por que, assim que o inquérito (a investigação, em termos coloquiais) era aberto, os investigados corriam para destruir todas as provas e combinar versões - as que sobravam era oriundas de algum meio ilegal (como alguma escuta obtida sem autorização judicial).
A equipe da PF de Curitiba, depois de uns minicursos nos states, inventiu uma espécie de "blietzkrieg''' policial: a abertura do inquérito coincidia com a detenção dos principais alvos para serem ouvidos, de maneira forçada, ao mesmo tempo em que se realizavam buscas e apreensões em casas, apartamentos e empresas.
Daí, muitos contratempos eram vencidos: as provas não eram destruídas, os investigados eram pegos de surpresa e acabavam "soltando'' algo ou entrando em contradição, os investigados não tinham como saber o que cada um dizia (antes, bastava combinar as versões; mas, e se todo mundo fosse ouvido ao mesmo tempo, de surpresa? Será que o parceiro de lavagem de dinheiro não iria te entregar primeiro?).
Além da razão operacional, vinha a estratégica. Ninguém se engane em acreditar que as autoridades policiais formam suas convicções depois de investigar tudo; na prática, as conclusões vem antes (os policiais sabem - ou pelo menos teorizam - quem está roubando e onde se está roubando, quem poderiam ser os chefes etc., e partem em busca de provas pra comprovar a "tese''). Como as peças de um tabuleiro jogado em conjunto com juízes e procuradores, cada "fase'' operacional, cada condução coercitiva, era desenhada para atacar os flancos abertos do "inimigo'' - o "mecanismo''.
Escolher quem constranger e quem ameaçar com prisão é fundamental para a maior sacada da lava-jato: tentar destruir o "sistema'' da corrupção por dentro, de forma autofágica, de baixo para cima e de cima para baixo, fazendo seus componentes se destruírem - vendo o parceiro conduzido coercitivamente, os possíveis alvos de operações futuras, superiores ou não na hierarquia das organizações criminosas combatidas, já partem em busca da delação, enquanto que o ritmo de conduzidos é tão frenético que não permite que se tome qualquer reação...
A razão psicológica era quase tão importante quanto a operacional e a estratégica. O investigado conduzido era quase tratado como um preso - ou, no mínimo, um muito provável candidato à uma futura prisão. O despreparo no depoimento (quem consegue raciocinar bem depois de ser tirado da cama às 6 da matina?), o medo de falar alguma porcaria, a insegurança por uma futura prisão, o receio de ter a cabeça entregue pelo parceiro conduzido na sala ao lado ou mesmo de ser entregue pelos próprios chefes deixa qualquer um em estado de desespero. E assim nasce um delator.
Apesar de tudo isso, há, juridicamente, outra razão para o sucesso das coercitivas: nosso ordenamento jurídico simplesmente não tinha nenhum expediente que pudesse ser usado em tais fins, nas investigações policiais. Veda-se a "prisão para averiguações'' e, em que pese se autorize a prisão temporária (geralmente para o réu não destruir provas), seu prazo é muito curto, não contempla necessariamente a ouvida do preso e suas hipóteses são muito específicas, geralmente quando já existem elementos probatórios fortes contra o investigado; imprópria, portanto, quando não se tem, justamente, provas...
A coercitiva, assim, sofreu uma mutação. A necessidade de recusa à uma intimação anterior foi discretamente riscada do código de processo penal - na verdade, já vi (não pela TV, mas na minha prática penal) delegados "autorizarem'' a coercitiva do investigado por telefone, sem intimação anterior... - e, como todo abuso jurídico, foi justificada como "opção menos lesiva ao réu'': ora, é melhor (para o "réu'', que ainda não o é por ainda não existir nem denúncia) obrigar o sujeito a ir depor do que prendê-lo temporariamente para isso. Dos dois abusos, o menos ruim, pelo menos.
Na verdade, se transformou a condução coercitiva em meio de detenção cautelar, uma verdadeira "prisão para averiguações'', no que se chega à grande motivação das coercitivas: a política. Mostrar na TV que o dono da Odebrecht, o presidente de algum grande partido ou outro poderoso foram enfiados dentro de uma viatura e constrangidos a depor, enquanto policiais recolhiam malotes e mais malotes de "provas'', foi a principal peça publicitária que garantiu que a conquista e manutenção da hegemonia na opinião pública por parte da operação policial. São quase peças de propaganda em tempo real, que caíram no gosto do povo, para difundir o que eu sempre disse ser um projeto de poder.
Mas não se enganem com a expressão. Não quero dizer que policiais, juízes e procuradores querem "tomar'' o poder ou o governo, mas sim que essas corporações possuem uma "agenda política'' para o país e para si próprias. Ela passa sim pelo combate à corrupção, mas também deixa clara suas marcas ideológicas made in EUA e abarca, na visão de alguns grupos, até mesmo interesses meramente classistas (procuradores e juízes lutam com unhas e dentes por reajustes salariais, manutenção de auxílios inconstitucionais e uma ou outra regalia). Nada disso é claro como se fosse uma "cartilha'' - esses interesses, inspirações e objetivos partem de grupos diferentes dentro desses grupos, se misturam, se conflitam ou se fundem.
Independente do fato de agredir ou não a ordem jurídica (sempre acreditei que sim), o fim das conduções coercitivas deixa as operações policiais em andamento pernetas. Vão ter que se virar com o que já possuem (que não é pouca coisa). Ao lado do desmonte das equipes policiais, restrições orçamentárias e cansaço da opinião pública, estamos perto de ver o fim da lava jato.
Esquisito é, só agora e depois de várias vezes confrontado com a (i)legalidade das conduções (os ministros, inclusive muitos dos que votaram pela inconstitucionalidade do instituto, costumavam chancelar tudo que os policiais faziam nessa seara) o STF tenha riscado o instituto do mapa jurídico. É hora de voltar à "normalidade''.
Será o tal do "grande acordo nacional''?
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