quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

"DAQUELES QUE ADQUIRIRAM UM PRINCIPADO ATRAVÉS DO CRIME'': UMA ANÁLISE "MAQUIAVÉLICA'' DO GOVERNO TEMER



O famoso ditado "você é aquilo que come'' poderia ser "você é aquilo que lê''. Michel Temer, atual presidente da República, é um [presumível] leitor voraz dos clássicos. Certamente, entre um cálice de vinho (ou um pote de sorvete) e outro, o presidente deve ter lido Nicolau Maquiavel, ou até mesmo se aconselhado com ele todas as noites. O Primeiro mandatário do país, de certa forma, seguiu à risca o “”manual de instruções’’ do filósofo florentino e logrou sentar-se no posto máximo do país, especialmente inspirado pelo capítulo VIII de "O Príncipe'': "daqueles que adquiriram um principado através do crime''.

Em relação à sua subida ao poder, o jogo foi montando com a especial maestria de, mediante o surgimento de situações difíceis – como uma mega-operação policial que desvendou um dos maiores escândalos de corrupção da história – manejar-se dificuldades em interesse próprio, levando ao limite a qualidade maquiavélica da “virtú’’. Sabe quando um rio enche demais e devasta tudo? Pois bem: uma pessoa sem imaginação poderia apenas temer (trocadilhá-lo-ei) a destruição causada pela enchente, mas um verdadeiro Príncipe veria o potencial na força das águas para irrigar solos pobres para transformar a vida de seus governados e, consequentemente, cair nas graças do povo. Bastaria construir um dique para canalizar o rio; bastaria, em uma palavra, “virtú’’, a arte de lidar com o “inesperado’’ e dele tirar proveito. Maquiavel até personifica esse “inesperado’’ sob a forma da deusa Fortuna, uma bela mulher temperamental e ciumenta, ansiosa por ser conquistada por quem mereça tais feitos.

O maremoto da operação Lava-jato, junto à enorme crise econômica, assim, é a premissa básica no jogo complexo montado pelo Príncipe que hoje se assenta no Palácio do Planalto. Temer previu, antes de qualquer um, o triste fim que se desenhava para o governo Dilma, e articulou uma poderosa base de apoio entre os ratos que temiam mortalmente serem afogados na inundação da gestão que ia, rapidamente, à pique. Ofereceu –se para construir uma barragem contra uma operação policial e, ao mesmo tempo, garantir que os financiadores de campanhas eleitorais continuassem a encher os bolsos com recursos públicos.

Essas “barreiras’’ contra o maremoto da “crise’’ foram essencialmente construídas pelos aliados de Temer. Romero Jucá, o inescrupuloso condottieri (antigo mercenário italiano, que vendia seus serviços para o príncipe que pagava mais), foi o responsável por articular um grande “pacto’’ contra a operação Lava-jato. Ao seu tenente-general, Meireles, ministro da Fazenda, foi dada a missão de estabilização da economia. E, nesses dois pontos, Temer e seus súditos próximos tentaram aplicar mais duas lições de Maquiavel.

O velho florentino havia predito que, em caso de “tomada’’ do poder por “meios não usuais’’ (leia-se fora da lei ou mediante uso da força), seria normal que “crueldades’’ fossem cometidas. Daí se falar em “daqueles que adquiriram o principado por meio de um crime’’: Michel Temer articulou quadrilhas políticas dispersas e propôs o maior, mais elaborado e descarado esquema de tráfico de influência (seria um crime?) da nossa história. Os indícios, claríssimos, deste grande delito perpetrado diariamente em escala nacional vai desde a articulação para aprovar o impeachment da presidente anterior, à nomeação e troca constante de ministros, além de vazamentos ilegais de delações que comprometem o chefe da oposição (o ex-presidente Lula). Deu certo? O tempo dirá. Mas pode-se dizer que Temer não teve escrúpulos em sacrificar alguns dos seus maiores aliados, como Eduardo Cunha, para permanecer no poder durante tal processo. Vem entregando seus anéis, dedos e até braços para conservar sua preciosa cabeça de intelectual latinista.

Além do “crime’’ em si, Temer e sua equipe lançaram um verdadeiro pacote de crueldades. A primeira grande maldade começou com a própria Petrobras, pivô de todos os escândalos até então, quando o presidente e sua equipe endossaram a quebra do monopólio da estatal sobre o pré-sal, operando-se a venda (via eufemística “concessão’’), à preço de banana, dos principais poços de petróleo. O governo, em seguida, lançou um insuspeito “programa de concessões’’ que ainda não saiu do papel e, por último, resolveu mandar ao Congresso uma Proposta de Emenda à Constituição que limitava o reajuste dos gastos públicos à inflação, reindexando a economia. Além da reforma da previdência iminente, o governo ainda articulou nos bastidores em prol da “desfiguração’’, na calada da noite, do projeto “dez medidas contra a corrupção’’ – que, convenhamos, é mais perigoso por si do que as manobras do sr. Temer!

As crueldades foram pensadas para serem aplicadas, seguindo o conselho maquiavélico, o mais rápido o possível. O ensinamento é de que todos os males devem ser aplicados de uma só vez para logo serem esquecidos, pois, se estendidos no tempo, podem alimentar uma constante revolta contra o soberano e uma verdadeira crise de confiança.

É justamente aí que falha, em uma análise “maquiavélica’’, o governo Temer. O prazo das “maldades’’ está se estendendo tempo demais, e a população alimenta uma grande revolta contra uma gestão de quem se suspeita até o último homem; já são praticamente oito longos meses de “medidas impopulares’’, com uma terrível previsão de agravamento logo adiante, acrescidos de frequentes escândalos e seis ministros derrubados. Maquiavel diz que crueldades que não são feitas a um só tempo, ou seja, rapidamente, são “mal empregadas’’ se acabam prolongando-se por muito tempo (e o que dizer de uma Emenda constitucional que dura 20 longos anos congelando investimentos em qualquer área?).

Por outro lado, sendo sustentado por um acordo entre elites políticas, Temer tentou seguir outro conselho de Maquiavel, embora direcionado àqueles que chegaram ao poder pelo favor dos grandes (leia-se: dos ricos) e não aos que tomaram o poder através de um crime. Diz o florentino que, uma vez alçado ao poder pela vontade dos ricos, o príncipe deve buscar, em primeiro lugar, o apoio do povo, manipulando-o contra as elites, equilibrando um jogo de classes onde essas últimas desejam oprimir o povo, que por sua vez deseja não ser oprimido. Maquiavel diz ser “mais fácil’’ satisfazer os desejos do povo em não ser oprimido, acrescido do fato de que, se os homens recebem o bem de quem esperavam o mal, tenderão a amá-lo muito mais do que se o próprio príncipe fosse um campeão popular. Por outro lado, o poder exercido através das elites deixa o príncipe em situação de constante tensão, pois será sempre apenas mais um dentre iguais, que poderão facilmente derrubá-lo. Foi a partir daí que Temer procurou “conceder’’ aumentos no valor do Bolsa-família, anunciou a redução do preço da gasolina e até lançou alguns “novos programas sociais’’. Buscou o equilíbrio entre os grandes e os pobres.

Por outro lado, sabendo ser muito difícil conquistar o apoio do povo, teve que voltar atrás de muitas das “benesses’’ concedidas. Não demorou a iniciar uma “caça às bruxas’’ entre os beneficiários do Bolsa Família, cancelando o benefício, sumariamente, de centenas de milhares de famílias; permitiu novos aumentos para o preço da gasolina e, paulatinamente, capitaneou um trem da alegria pelo aumento dos salários da elite do funcionalismo público.
A traição de Temer às próprias promessas atingem em cheio o mandamento maquiavélico de “o príncipe deve agir de maneira constante e previsível’’. Tanto a população como até os “grandes’’ começam a não sentir a mínima segurança nas ações e nos planos do governo, que anuncia medidas e recua, quase que instantaneamente, após reações negativas. Foi assim com a extinção/recriação relâmpago do Ministério da Cultura, as “garantias’’ de que os ex-ministros Jucá e Geddel ficariam em seus cargos para logo depois caírem e o anúncio do “veto integral’’ ao projeto de lei de renegociação das dívidas dos Estados, para logo em seguida se decidir por um “veto apenas parcial’’. Conclusão do próprio Maquiavel: se o príncipe age de maneira inconstante e imprevisível, o destino e o acaso, e não o governante, é que levarão o crédito por eventuais benesses aos súditos, mas somente o príncipe é que será culpado pelos infortúnios.

À parte, a outra conclusão mais clara é que, longe de opor limites à enchente que varre o país, o Governo Temer vem apenas tentando dela fugir; sua proposta real não é uma barragem segura contra as águas, mas um simples bote salva-vidas para seus privilegiados ocupantes. Alguns aliados do “príncipe’’, dentre eles o senador Ronaldo Caiado (DEM), já entenderam essa lógica e compreenderam que falta, justamente, a virtú verdadeira ao presidente Temer. Mas, ora, se o presidente seguiu as regras maquiavélicas, como pode lhe faltar exatamente essa qualidade tão especial?

Maquiavel, no final do capítulo VIII, explica brilhantemente essa ideia. Ora, a virtú é a outra face da moeda da glória. Ninguém pode tirar proveito do imprevisível e do destino, nem domar a deusa ciumenta e temperamental da Fortuna, sem uma chama de ‘merecimento’, sem glória. A “glória’’ é uma imagem idealizada deôntica, ou seja: é como nós, enquanto sociedade, imaginamos qual a forma ideal, legítima e desejável do agir do governante; é “glorioso’’ aquele príncipe que age conforme essa ideia. A glória é uma aparência assemelhada com uma ideia. Se um príncipe sobe ao poder por meios não “gloriosos’’, como, por exemplo, por intermédio de um crime, terá construído, talvez para sempre, uma imagem negativa para si. Uma lição máxima de Maquiavel é que a glória não existe sem reconhecimento e, mesmo que Temer consiga “salvar’’ o Brasil e a elite política inescrupulosa da qual faz parte, jamais terá reconhecimento como um grande homem. Jamais obterá a “glória’’.








Acima, Temer constrangido diante dos líderes do BRICS. Que tipo de príncipe se sente um inferior dentre seus iguais?

A virtú de Michel Temer, assim, é uma virtú falseada, improvisada, criada como embuste para ludibriar aliados políticos, parte da imprensa e as forças econômicas, visto que é desprovida tanto de reconhecimento quanto de glória. Além do mais, o governo falhou em equilibrar-se entre pobres e ricos, aplicou “crueldades’’ em excesso e por longo tempo, e, longe de ter detido as enchentes da economia e da lava-jato, parece determinado a escapar delas. Temer é como os antigos tiranos gregos, que, a revelia de seu sucesso ou fracasso pessoal, entram para a história exatamente pelo que são – mesquinhos, sedentos de poder, conquistadores de um poder ou de uma posição para os quais não estavam legitimados, sempre lembrados pela sua origem (um pintor fracassado, um ex-seminarista ensandecido, um político comandante de uma quadrilha institucionalizada...) e não pelos seus “feitos’’.




Michel Temer e seu governo nada mais são que um plano de fuga

É claro que, sabendo de tais considerações maquiavélicas, o presidente deve passar suas noites em claro. Afinal, se, como Maquiavel ensina, um príncipe se vale tanto das virtudes racionais quanto dos instintos animais (de acordo com as circunstâncias), como a força de um leão ou a astúcia de uma raposa, Temer vem sendo uma raposa quando necessitava ser um leão, e sendo um leão quando precisava ser um homem; e, quando necessita ser um líder, nada mais é que um covarde. Um proto-príncipe, um pseudo-governante, desesperado e ignóbil, tão ciente de sua ilegitimidade e de todo o constrangimento que isso provoca em si e nos outros que age como se nem fosse presidente da República, mas um gângster encurralado que deve sua impunidade a uma espécie de torpor e conivência dos poderosos.

Michel Temer é o príncipe que jamais dará certo. O príncipe sem virtú, que não deve à Fortuna sua posição, mas ao crime. E o crime, pelo menos para Maquiavel, não compensa. 

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Caminhos de um (ex) estudante de Direito - A ilusão


O desconhecido sempre atormentou aqueles que nele pensaram. Talvez vivamos a ilusão de que conhecemos algo, quando, na verdade, estamos continuamente em uma peregrinação por vivências, situações e casos cujas origens, fins e constituições ignoramos - até o "cotidiano'' se torna um desafio diante do inefável e inevitável característica da imprevisibilidade que marca nossas vidas. Isso se mostra quando verificamos que, após alguma experiência de vida, olhamos para trás e nos impressionamos com a quantidade de sonhos, planos e aspirações que criamos e alimentamos sufocadas, abandonadas ou violentamente cortadas, e tudo isso por que desconhecemos algo que nos é essencial - o futuro!

E em que pese ser impossível prever o futuro, temos uma vantagem sobre o resto do reino animal, oriunda da nossa própria razão. Ora, é o que chamamos de "troca de experiências''. O primeiro ser humano que descobriu que a carne cozida era muito mais palatável e deglutível do que a crua transmitiu essa experiência até nossos dias e, em que pese alguns poucos conservarem o gosto por carne crua (sushi!), a humanidade viveu melhor com churrascos, carne cozida ou "guizados''. A comparação com carne talvez soe estranha, mas convenhamos: mesmo coisas desconhecidas (e veja que só soubemos o que era a "carne'', quais suas funções biológicas precisas nos corpos dos animais de que nos alimentamos e suas implicações milênios depois da separação entre o "cru e o cozido'') podem ser desvendadas quando alguém que já viveu situações parecidas descobriu formas de superação dos problemas que surgiram. É assim quando você mesmo responde à inquietante pergunta "o que vou ser quando crescer'' com a resposta "quero cursar direito e ser um advogado(a), juiz(a), promotor(a)'' e sempre busca outros "relatos'' sobre quem adotou, em algum momento, a mesma resposta...

Admitamos então que o direito nos é, enquanto jovens secundaristas frescos cuja maior preocupação é o Enem, algo desconhecido. O desconhecido se torna ainda mais distante e misterioso quando uma multiplicidade de relatos sobre ele vela ou disfarça sua verdadeira face; e, convenhamos, quem não forma uma "ideia'' do que é o direito e o que significa dele viver? Assistimos os filmes ou seriados (a maioria, norte-americanos) e nos impressionamos com as roupas, a esperteza e, talvez, o poder e o status que personagens saídos das mentes de roteiristas profissionais demonstram. E aí o desconhecido direito se torna ainda mais desconhecido quando sobre ele descobrimos a primeira verdade: o mundo jurídico não é nada do que pintam por aí nas séries do Netflix ou no cinema. 

E se as representações culturais (com o gravame de que partem de uma cultura diferente da nossa, a brasileira) tornam ainda pior saber o que é o direito e como se vive em seu mundo, os relatos que coletamos e os fragmentos, da mídia e de "histórias'' de familiares e amigos, são ainda mais confusos, embora mais críveis do que o glamour de Hollywood. Nesse sentido, longe de mim estabelecer um relato definitivo e preciso sobre o mundo jurídico; trata-se apenas de compartilhar uma experiência nesse misterioso plano que mistura etéreo e carne bruta, ideal e lama, brilho e sombra. É só trocando experiências que chegamos mais próximos do "verdadeiro'' mundo do direito. 

Sem arrodear muito mais, vamos mergulhar um pouco nos cinco anos do curso de direito, vivido por alguém que galgou-os em uma situação muito semelhante aos futuros universitários que emergirão do Enem: quase que completamente ignorante quanto ao mundo que iria adentrar, ou duplamente ignorante por estar mal informado sobre ele!

- Prelúdio: o vestibular

Não, a história não começa com o primeiro dia de aula, mas muito antes. Veja que a maior preocupação de quem deseja ingressar no direito é garantir o próprio ingresso, ou seja, a aprovação no vestibular. Para isso, se recomenda alguns passos: de início, se requer foco. Ou seja, concentre-se em somente uma opção de curso (o direito), abrindo mão de empreitadas quase impossíveis, como tentar direito e medicina ao mesmo tempo! Ora, se você quer o direito, exclua todo o resto. 

Mas não faça essa escolha por pura ambição pessoal ou pensando "no dinheiro''. Lembre-se que é grande a chance de que, uma vez jurista, você o seja pela vida toda. Imagine passar a vida toda fazendo algo que você detesta! Acredite, é insuportável. Então, esteja certo de que, ao menos, a ideia de escrever muito, falar em público (relaxe se você é tímido ou tímida, isso não vai te impedir de falar bem em público), ler e defender/acusar/julgar algo ou alguém te atraem um pouco que seja.

Em segundo, se planeje. Perceba que é intuitivo que o estudante de direito deve ler muitos textos e, por obviedade, ter boa técnica de interpretação textual, raciocínio lógico e boa escrita. Esses devem ser seus pontos fortes a serem trabalhados, mas não esqueça de uma velha máxima: quem lê muito e está bem informado vê sua escrita fluir muito mais facilmente do que aquele que lê pouco e ignora o mundo ao redor. Basicamente, por exemplo, se você não tiver uma opinião sobre o impeachment da presidente Dilma, a guerra na Síria, a crise refugiados na Europa e o combate à corrupção no Brasil suas chances de fracassar são grandes. 

Então, antes dos manuais, estágios e vídeo-aulas... leia! Leia muito! Essa maravilhosa ferramenta chamada internet dispensa qualquer desculpa sobre falta de acesso à informação. Pelo menos uma vez por dia visite um site de notícias, leia colunas de opinião em jornais, se atente sobre os assuntos do momento e, mais importante, forme ou construa uma opinião sobre os temas que ler. Tudo o que você ler vai ser sua munição por muitos anos para produzir textos - dentre eles, redigir petições iniciais, recursos etc. 

Não esqueça de escrever. Escolha, de início, assuntos que você goste. Depois, passe para os temas do momento. Tente produzir um texto a cada três dias, ou um por semana, e conte com o auxílio de alguém para corrigi-lo - como nós mesmos escrevemos, somos contraindicados para corrigir nossa própria produção (sim, seu cérebro te engana e te faz crer que você não cometeu erros gramaticais, de coerência e de coesão, mas, na verdade, é muito alta a chance de que seu texto esteja cheio delas...). 

Além de ler e escrever, o que é um bom estudante de direito sem conhecimentos de história e geografia, se não um produto defeituoso? Lembre que o direito é uma manifestação social que evolui com a história e é um espelho de cada momento sócio-histórico, bem como das condições econômicas e até geográficas de onde uma sociedade se situa. Alguma leitura de Filosofia e Sociologia também é fundamental - e mais na frente vou esclarecer por que a carência destas duas disciplinas explica parte do péssimo desempenho da maioria dos estudantes de direito do país. 

Em resumo, antes de pensar em entrar em uma Faculdade de Direito, se prepare adequadamente para tal. De nada adianta entrar por sorte ou em alguma instituição que não exige vestibular ou o faz de forma frouxa e não estar à altura do que o curso exige, embora, como vamos ver, se trate de uma experiência aparentemente fácil iniciar e concluir o curso de direito sem saber absolutamente nada de direito!

Ainda nas preliminares: para onde vou?

Essa pergunta atormenta os estudantes e é usada como motivo de distinção hierárquica em alguns círculos sociais. O pré-vestibulando que diz "só quero cursar se for na federal'' é visto com respeito e um pouco de inveja pelo aparente esnobismo. Mas, apesar dessa declaração soar ignóbil (e muitas vezes parte de autênticos indivíduos antissociais...), é mais ou menos por aí: se for para cursar direito, tente as melhores instituições. Essa é a primeira grande regra que você não pode esquecer, nunca, jamais, em qualquer fase da vida: sempre busque os melhores meios para te levar além.

Dito isto, é notório que as instituições de ensino superior públicas (não só as federais) tem as melhores indicações e referências, mas com o Enem o leque de escolhas se expandiu muito. Existem excelentes instituições privadas que podem ser acessadas via Prouni ou FIES, como os cursos das universidades católicas, a famosa FGV (a Fundação Getúlio Vargas, que talvez seja a mais avançada instituição do país) e outras. Mas, a princípio, busque a melhor que puder. 

Todavia, cuidado para não alimentar expectativas de que, uma vez aluno de uma universidade federal, você viverá em uma Harvard University. Longe disso! E aqui começa a primeira "queda na real'': as universidades públicas do Brasil, principalmente em cursos na área de ciências humanas, sempre foram e estão sucateadas (embora, justiça seja feita, a situação tenha melhorado bastante na última década) e tem inumeráveis problemas. E os cursos de Direito não estão em patamar melhor. 

Resumidamente, os problemas são de estrutura. As bibliotecas são pequenas, a maior parte dos livros está desatualizada, bolsas de pesquisa são raras, os professores são escassos e estão constantemente ausentes. Você poderia me perguntar que, se realmente a realidade das universidades públicas é assim, como elas conseguem permanecer no topo da qualidade do ensino jurídico. A resposta é muito clara. É por sua causa!

O destaque das universidades públicas são seus alunos. Como é gratuita e o processo seletivo é rigoroso e altamente competitivo, acabam-se selecionando os alunos mais estudiosos e dedicados que, mesmo diante das péssimas condições estruturais do curso, guinam ao autodidatismo e conseguem elevar o padrão de qualidade das instituições. Ou seja, é o próprio aluno que estuda, pesquisa, explora bibliografias e constrói seu conhecimento. Ser da federal, assim, não adianta se você não tiver a propensão de sentar em uma cadeira por seis horas ou mais e estudar. 

Sim, foque nas melhores instituições. Mas só a aprovação no vestibular não adianta; somente dizer que é um aluno "federal'', muito menos; ou você estuda de forma condigna aos seus colegas, ou vai ficar para trás. 

O primeiro capítulo da novela: filosofando - vão te dizer que isso não serve pra nada!

A sensação de finalmente sentar em um banco de universidade para assistir à primeira aula de Introdução ao estudo do direito vai te acompanhar pelo resto da vida. No meu caso, cheguei atrasado, perdi a primeira chamada e, ao olhar meus colegas de sala tão concentrados e já com canetas e cadernos em pleno trabalho, quase tive certeza de que estava no lugar errado - no sentido de ter escolhido o curso errado. 

Não se espante. Durante todo o curso, você vai se imaginar, naqueles lances doces de história pessoal alternativa, escolhendo outro curso ou abandonando o direito, o que é raro de acontecer no primeiro período, mas é comum nos terceiros e quartos (vou falar sobre a "crise do meio do curso'' mais adiante).  

Bem, deixando elucubrações a parte, tome nota da estrutura básica do curso. Veja, de início você estudará as chamadas "cadeiras'' (isso por que, no passado, os professores universitários mais importantes eram os "catedráticos'', tendo direito a um assento diferencial chamado "cátedra'', uma cadeira de espaldar alto e elevada do chão que é herança da Igreja Católica, que fundou as primeiras universidades do Ocidente; a cadeira aproximava mais o padre de Deus e o distanciava do povo. Até hoje, a cadeira ou trono onde os bispos e o papa se sentam são chamados de "cátedra'', de onde, elevados diante dos olhos dos fiéis, proclamam regras morais. Você verá que muitos professores universitários de hoje, em que pese não temerem o sagrado ou o profano, levam essa história de "eu sou superior a vocês'' muito a sério!) ou disciplinas propedêuticas, ou seja, iniciais. Elas tem uma razão de ser.

Veja, o direito é um fruto social. Daí ser óbvio que o estudo da sociologia é essencial, principalmente por que, nos dias de hoje, juízes e tribunais tomam decisões e produzem normas jurídicas que são embasados na análise social dos fatos do que no próprio direito. Quer um exemplo? Recentemente o STF decidiu que é possível a prisão provisória de um condenado que aguarda o julgamento de recurso perante o STF ou o STJ. Essa decisão contraria diretamente a Constituição, que assegura a todos o direito de ser preso apenas quando a sentença condenatória transitar em julgado, ou seja, quando recursos não forem mais possíveis. Parece uma loucura clara, não é? Seria, mas o STF decidiu com base na sociologia do crime: ora, como os recursos perante o STF e o STJ demoram anos para serem julgados, levando a impunidade de criminosos, a regra jurídica da vedação à prisão antes da sentença transitar em julgado é ineficiente perante essa configuração dos fatos, e assim, para evitar a impunidade, pode ser desconsiderada. E qual o fundamento disso? Os inúmeros casos de condenados que se livraram das garras da justiça pagando bons advogados que recorriam eternamente das decisões condenatórias... veja que o fundamento foi a impunidade, não uma norma de direito. 

Já o estudo da filosofia e da economia dispensa comentários. O direito é, de certa forma, o produto mais acabado de correntes de pensamento filosóficas que tem suas raízes em Platão e alcançam o auge no chamado iluminismo. Podemos dizer que tudo o que vamos estudar na faculdade de direito - os ramos do direito, normas, regras, institutos, instituições - são fruto do colossal esforço dos filósofos iluministas para classificar em rótulos, esquemas lógicos e fórmulas tudo que puderem, inclusive as manifestações jurídicas da sociedade. Sim, antes dos iluministas ninguém pensava que o "direito constitucional'' é diferente do "direito civil'', ou que uma norma jurídica se diferenciava de uma norma moral e por aí vai. Desnecessário dizer que desconhecer tudo isso vai nos levar, fatalmente, a confundir as fronteiras entre moral e direito, ou entre direito e outro ramo do saber, e aí corremos o risco de nos tornar juízes, promotores ou advogados que aplicam não o direito, mas suas convicções morais ou religiosas, como cada vez mais se torna comum (é, tudo isso por que não estudaram Filosofia, tá vendo?). 

Quanto à economia, pense o seguinte: o direito surgiu pela primeira vez na história, possivelmente, para regular alguma transação comercial ou patrimonial entre duas pessoas. Se você observar direitinho, o direito que temos hoje tem suas raízes no direito civil romano, cujos principais institutos eram relacionados à economia, como a determinação de quem poderia ter bens, quem poderia negociar bens e quem poderia praticar atos de fruição e disposição de tais bens. Daí surgiram os direitos reais, obrigacionais, de personalidade e, para tutelá-los, procedimentos judiciais e estatais, que demandam impostos para serem mantidos, que eram instituídos por leis e assim por diante... apesar de distantes da velha Roma, muito do direito orbita a economia. Por isso que falam tanto em "reformas'' tributárias, políticas, previdenciárias e trabalhistas como forma de "alavancar'' a economia! Além do mais, direito está muito ligado à economia: quando esta se expande, como vimos na última década, as oportunidades, seja a partir de concursos públicos ou na área privada, também aumentam. Quando a economia vai mal, o setor jurídico em geral padece, embora muitos lucrem (como advogados que lidam com falências, por exemplo...). O mais importante é saber interpretar os sinais da economia para fazer uma escolha profissional bem sucedida, como montar um escritório com determinadas características ou com outras, ou enveredar pelos concursos. Isso é crucial para sua vida como jurista. 


Decore esses nomes...

A joia da coroa do primeiro período será a famosa cadeira de Introdução ao estudo do direito. Basicamente, é uma apresentação geral da história, teorias dominantes e dominadas e das principais regras do direito. Sim, você já percebeu ou vai perceber que essa cadeira varia muito de conteúdo conforme o professor. Geralmente a abordagem é mais filosófica, onde se estudam os chamados "filósofos do direito'', que se preocupam com questões metacientíficas ou epistemológicas, gnoseológicas, axiológicas e teleológicas - sabe, eles procuram responder às perguntas clássicas da filosofia, por exemplo "como discernir um conhecimento verdadeiro do falso saber? Quais são os requisitos de um conhecimento válido? O que é e o que não é direito? Existe um direito válido e superior a qualquer outro direito? Existe uma finalidade para o direito? Justiça é direito?''. Por óbvio, quando vamos estudar direito "pra valer'' (leis, doutrinas e decisões judiciais) não questionamos se aquilo "é'' direito, muito menos os métodos que usamos, embora possamos utilizar alguns métodos melhores que outros. É a filosofia do direito que responde a essas respostas, nos fornecendo os métodos para obter o conhecimento jurídico válido e aceito pela comunidade jurídica. Por outro lado, IED vai te proporcionar o acesso ao que podemos chamar de "regras universais'' do direito, ou seja, aquelas normas que raramente mudam com o passar das décadas e até dos séculos; são os conflitos entre normas jurídicas, problemas de validade, vigência e eficácia, que estão entre as questões mais controversas do mundo jurídico por que, como dizia meu saudoso professor de IED, "são regras que disciplinam as outras regras jurídicas, ou seja, são meta-regras'', e uma quantidade relevante de celeumas jurídicas se decide por elas (ora, se a norma que embasa seu direito não está mais vigente ou caducou tenho péssimas notícias para você...). Sim, um estudante que ignora tais saberes será o que chamamos de um "devorador'' de livros e teses prontas e possivelmente jamais ousará ou conseguirá "criar'' ou "produzir'' conhecimento jurídico. Será um mero reprodutor - e quem reflete a luz brilha menos de que quem a produz!


Os três poderes do Brasil, reunidos para bolar alguma maldade jurídica a mais para você estudar

Além de IED, é comum que você seja apresentado à alguma cadeira de Teoria do Estado. Essa também tem um ar mais filosófico, onde se estudam os famosos filósofos contratualistas (olha aí a "economia'' aparecendo de novo...), o conceito de Estado e, de certa forma, uma espécie de introdução ao direito constitucional. Se aprende sobre como o Estado funciona, a partir de seus tipos, regimes políticos, regimes de governo, formas de governo, partidos políticos, eleições. Por que tanta atenção com o Estado? Bem, se você parar para pensar, o Estado é o maior produtor de direito que temos - alguns dizem que o único legítimo. Quando um juiz profere uma sentença, não é fulano de tal quem ordena, mas o Estado como um todo; quando um presidente baixa uma medida provisória reformando do dia para a noite a grade curricular das escolas, saia de baixo que a canetada vem com a força da lei; quando deputados aprovam aumento dos próprios salários, prepare o bolso, que você terá que pagar, afinal, é a lei. Boa parte do direito é reflexo de articulações partidárias, movimentos políticos, efeitos colaterais eleitorais - e operacionalizado através do Legislativo, Judiciário e Executivo, ou através da divisão entre a União e os Estados-membros no Estado federal, e desconhecer como eles funcionam é uma imensa omissão na sua formação enquanto jurista. Assim, saber como o Estado funciona (ou deveria funcionar) nos auxilia a combater ilegalidades do próprio Estado (e, acredite, ele é o maior violador da lei!) e pensar saídas para que ele "funcione'' melhor. 

Apresentada a importância das cadeiras do primeiro período (bem, de fato, IED e Teoria política são as que merecem mais sua atenção), vamos à prática. Prepare-se que lá vem bomba. De início, o grande volume de informações vai te pegar desprevenido. Você não vai conhecer ou reconhecer nem metade dos "nomes'' dos autores que vai ler, não entenderá de primeira nem de segunda as intrincadas teorias (principalmente as de Economia) e vai se embanar todo(a) tentando dar conta da matéria seguidamente acumulada e não estudada. Quando priorizar uma cadeira, a outra vai acumular, e aí vai ser um salve-se quem puder. Mas relaxe, tome uma água, respire fundo e preste atenção no caminho entre as pedras!

De início, se planeje desde a primeira aula. Organização é a chave do sucesso, mas só falar é fácil! Tem que ser pra valer. Pegue um papelzinho (ou uma planilha do Excel) e liste os conteúdos que tem que estudar no semestre (sim, seu primeiro ato como bom estudante: consiga o conteúdo programático das disciplinas!), divida seus horários livres por matéria, faça um horário de estudos e estabeleça metas. Por exemplo, em uma semana me dou a meta de estudar norma jurídica, Estado unitário, Aristóteles e receita marginal. Vai ser difícil no começo, mas, com pelo menos duas semanas, estudar em horários corretos e bater metas semanais vai se tornar um hábito. E esse é seu primeiro desafio no primeiro período (e guarde muito, muito bem essas palavras): tornar a prática do estudo contínuo um hábito. E quando vou saber que virou um hábito, cara? Vais saber quando, em alguma intempérie da vida, fores impedido de estudar um belo dia e te pegares com aquela sensação de que "poxa, não pude estudar hoje... me sinto mal!'' como quando você tem o costume de correr todas as manhãs e um dia não corre. Você sente falta. De verdade!

Não é só estudar, porém. É como e o por onde estudar. E aí entramos em um terreno pantanoso, já que método de estudo é uma coisa muito pessoal, mas temos alguns "jeitos'' mais adequados de estudar Direito. Muitos estudam apenas por "manuais'', como o da professora Maria Helena Diniz (que certamente merece um lugar no livro dos recordes como autora que mais cita outros autores) ou o famoso "Lições preliminares de direito'', de Miguel Reale, famosos pela sua escrita objetiva e leve. De fato, os manuais são muito indicados pelos próprios professores com quem você terá aula, mas não esqueça de algo que seu instinto deve ter te alertado: eles não são suficientes. Mas longe disso! São apenas leituras iniciais. Na verdade, o que você tem que fazer é, além de ler os manuais, procurar livros mais especializados e muita gente acaba jogando a toalha por que acha que vai ler demais e não terá tempo pra matar tanta matéria... por isso, fique firme no ringue, por que esse é outro mito. Não, você não precisa ler os manuais da primeira à última página! Segunda regra de ouro: selecione o que você vai ler, principalmente pelo conteúdo programático da cadeira. Ora, se estou estudando ordenamento jurídico, eu vou ler o capítulo do manual sobre esse assunto e procurar uma literatura correlata, como um pequeno livro de Norberto Bobbio com esse título. Leia, grife (se puder) os principais pontos, anote o que achar importante e no fim do estudo tente produzir um pequeno resumo, nem que seja por "pontos'' que sintetizem as ideias chave. É muito comum que, além disso, os professores passem textos que possam te ajudar - e que as vezes atrapalham mais do que ajudam, por isso só os leia se estiverem dentro do conteúdo ou se o próprio professor frisar sua importância. 

Depois de fazer um horário de estudo, estipular e vencer metas, ler e selecionar obras e produzir um pequeno resumo, cuidado para, uma vez feita a prova, não cometer um erro muito comum: "perder'' aquilo que você estudou. Eu mesmo conservava meus cadernos de períodos passados por pouco tempo, perdendo-os ou estudando de maneira tão desordenada e fragmentada que, anos depois, ficava difícil entender alguma coisa e eu era obrigado a estudar tudo de novo! Então cuide dos seus resumos e anotações como tesouros preciosos. Deixe-os bem guardados, os elabore de maneira organizada e inteligível e nunca esqueça que a função de tudo isso é sintetizar o conhecimento para que você o revise de maneira simples e rápida no futuro. O que você vai fazer é resumir, com suas palavras, as ideias que estudar, para usar no futuro e evitar ter que estudar os mesmos conteúdos várias vezes, perdendo seu precioso tempo com o "re''estudo!

Passada a parte "técnica'', vamos à subjetiva. Veja, possivelmente você vai entrar na faculdade jovem, cheio de desejos e expectativas, e vai quebrar a cara quando perceber que os sonhos não são tão fáceis assim de se alcançar e que ainda há muito esforço pela frente. Portanto, não tenha medo se o curso não é aquilo que você imaginou. Também não se espante se duvidar da sua vocação para o mundo do direito, nem se entristeça se não entender algum conteúdo: persista, tente entender, mude de livro, pergunte, estude junto com os coleguinhas, peça ajuda. Se o desânimo bater e a tentação de fazer "tudo da forma fácil'' se apresentar, resista. Sim, você pode passar os dias farrando ou nas redes sociais e, na hora da prova, filar, ou, nos trabalhos, se escorar em algum colega de grupo, mas isso vai te trazer sérias consequências no futuro. Tudo o que você não estudar no primeiro período, ou pelo menos uma boa parte, vai ser matéria acumulada para o futuro, e é por isso que o curso tem cinco anos, para que você divida entre esses longos anos as matérias que precisa estudar. Ah, IED não vai te garantir um bom concurso? E quem disse? Por acaso não sabes que os melhores concursos (para juiz, promotor ou procurador) sempre trazem questões de filosofia do direito, ou de aplicação das "meta-regras''? Veja, o conjunto de conhecimentos que você vai apreciar no primeiro período vai te dar uma racionalidade jurídica que permite avaliar questões em concursos mesmo que você não saiba a "letra'' da lei. Ou seja, você vai saber que aquela alternativa está errada por que ela contraria a "lógica'' jurídica. 

Além da persistência, não se espante se a decepção com o curso te imprimir fortes desejos de abandoná-lo. Se o desejo for forte e você sentir que nada daquilo é o que você quer fazer na sua vida, então meu conselho é que tente esperar o que puder para ao menos cursar o segundo período da faculdade, que tem um perfil mais "técnico'' e menos filosófico. Se ainda assim você "não curtir'' nem minimamente a ideia do curso, então bata asas. O que importa é se sentir realizado ou ao menos ter essa expectativa. Mas se seu problema é a tensão, a pressão e o nervosismo (e isso acontece bastante nos cursos de direito) de forma que você até se sente depressivo(a) por ter que estudar tanta matéria, não se espante: isso mostra que você se cobra demais, é perfeccionista e precisa de auxílio; não tente vencer a sensação de desespero diante dos estudos sozinho(a). Procure os amigos, peça ajuda, converse com seus pais, fale com um aluno mais velho e tente se organizar, mas acima de tudo lembre que estresse acadêmico algum vale a sua saúde e seu bem estar. Durma bem, se alimente bem, estude o que puder e, por favor, não se espante com eventuais "notas'' baixas. Passamos do momento em que uma nota representa alguma coisa na sua vida. Agora, importa apenas o que você estuda, e sempre evite estar se comparando aos colegas no que diz respeito às notas - isso é coisa de menino pequeno, sim! 

Ah, tem outra questão. Direito é conhecido por ser um curso mais fácil - em tese! - que os demais, mas não é. É muito complexo, como você mesmo descobrirá, mas tem facilidades que os outros não possuem. Por isso, vença outro problema típico do estudante de direito: a preguiça. Não é por que os resumos abundam por aí que você vai deixar de estudar. Pense bem: ora, direito é um conhecimento complexo, tão complexo quanto engenharia ou economia. Você já ouviu falar de algum estudante de engenharia ou medicina estudando por "resumos'', livros esquematizados ou "manuais descomplicados''? Não, né? Então tente fazer a mesma coisa estudando o direito. Estude pra valer, sem preguiça, sem optar pelo material "mais fácil'', por que a consequência é que esse conhecimento fácil vá pelo ralo depois da prova e não te agregue em nada. 

No fim do primeiro período, achamos que sabemos alguma coisa de direito. Já nos aventuramos a dar pareceres, a socorrer parentes que nos procuram com aquele pedido clássico ("tu pode dar uma olhada no meu processo?''), a discorrer em textões ou textinhos sobre os temas jurídicos da moda e até a dar uma olhada naquele terno/blaser expostos naquela loja chique do shopping. Mas pare um pouco agora. Não, você ainda não é um jurista! Está muito longe! Calce as sandálias da humildade... por que o curso de direito, do primeiro para o segundo período, muda completamente, e continua mais ou menos assim até o fim. 

É sobre essa mudança radical de paradigmas que vamos tratar no próximo texto. Este aqui foi a "ilusão'', onde apresentamos todas as expectativas ilusórias do universitário de direito e tentamos "quebrá-las''. Infelizmente, elas se reconstroem em períodos posteriores, mas a experiência negativa  da desilusão pode levar a um mal crescente e de efeitos devastadores: a crise da metade do curso.

E ela será nosso próximo tema! 


sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O AI-5 do Supremo Tribunal Federal

O radicalismo é uma doença comportamental dos nossos tempos. No mundo do direito, ele manifesta seus sintomas quando, munidos de “boa fé’’ ou “com boas intenções’’, juristas, juízes e agentes do Estado rompem os limites da lei em busca de “justiça’’. E não há nada mais maléfico do que quando a “justiça’’, que não conhece limites ou regras, faz do direito seu escravo. Contra desafios, a justiça oferece soluções fáceis; contra obstáculos, um atalho; contra a impunidade, a sensação de saciedade da sede de vingança. Nesses dias, o STF, o “guardião’’ da lei maior, achou por bem atribuir a si mesmo papel de anjo vingador e ouvinte atento do clamor social por “justiça’’.

E como se fará “justiça’’ no Brasil, depois das duas decisões inusitadas do STF? Veja, se antes a pendência de recursos junto a tribunais superiores impedia que um criminoso fosse punido, agora esse obstáculo está sanado. Nada de meliantes soltos, enquanto os tribunais abarrotados não julgam seus recursos, nem de crimes prescritos. Mas o problema é que o pobre, preto ou simplesmente o cidadão injustamente acusado (que tal “1 grama de maconha pode ser considerado tráfico de drogas...’’; “sacar benefício previdenciário de um parente falecido, mesmo com desconhecimento da lei, é estelionato...’’ e, a minha preferida em termos de radicalismo “o meliante surrupiou a galinha, de forma premeditada, cometendo furto qualificado, devendo ser condenado à pena máxima...’’) vão igualmente mofar na cadeia enquanto os dignos ministros não julgam seus recursos. E, uma vez na cadeia, sabemos que a chance desses injustiçados ou réus primários se tornarem criminosos contumazes é de 80%. O ciclo do crime se auto-alimenta.

O outro novo jeito de fazer “justiça’’ é autorizando aos policiais a invadir casas e locais de trabalho, mesmo sem mandado ou autorização judicial, e à noite. Basta ter “boa fé’’, “boas intenções’’ e “suspeitar’’ que um delito está sendo cometido ali. Bem, que tal levarmos ao extremo tal posição, e forçar a entrada no Congresso, no Palácio do Planalto e na sede da Petrobras? Afinal, todos sabemos que um “delito’’ pode estar sendo cometido ali dentro! Ah, não nos esqueçamos das “boas intenções’’. Dessas, o inferno onde estão os ditadores e agentes da tortura que invadiram ilegalmente domicílios de tantos desaparecidos políticos está bem cheio.

O radicalismo, ou o “pragmatismo’’ levou nossos colendos ministros a cassar a vigência de dois direitos fundamentais, conquistados, vejam só, na luta contra o absolutismo monárquico e as ditaduras fascistas. A partir de hoje, juízes estão autorizados, pela autoridade judiciária máxima do país, a mandar prender um processado sem nenhuma motivação além da pendência recursal e, claro, autorizar a invasão de domicílio (que, em si só, é um crime!)desde que “comprovada a boa fé’’ dos policiais. O Supremo se converteu em mini-assembleia constituinte. Pode tudo, em nome da justiça.

Esse é tipo de radicalismo pós-morista que, cheio de “boas intenções’’, vai jogar por terra nosso estado de direito justamente para combater os governantes corruptos. Em nome da punição de crimes, se autorizam outros. Para vencer o mal, temos que jogar fora das regras. Afinal, a lava jato, a origem inspiradora do súbito “sentimento de justiça’’ dos ministros, está acima das leis comuns... assim como o bom juiz que decreta uma prisão com base em provas ilícitas (como a tortura. Você sabia que o juiz Moro e os nobres procuradores apoiam um “pacote anticorrupção’’ que legaliza as provas ilegais, se “obtidas de boa fé’’?) ou os policiais que invadem sua casa e te levam preso, no meio da noite, como se fossem do antigo SNI.

Quando a moral e a política colonizam o direito, fazendo com que os poderes do Estado se concentrem em poucas mãos (ou onze pares de mãos, para ser mais exato), acontece o que Montesquieu profetizou sinistramente. “Tudo estará perdido!’’. Perder-se-á a justiça, que só existe com a divisão e o controle dos poderes entre si, pela sociedade e pela lei; perder-se-á a razão, em nome de discursos emotivos insuflados pelo ódio político; perder-se-á quase trinta anos de estado de direito, em nome de um estado de exceção "do bem'', para punir "os privilegiados''. Mas, claro, o que importam são as intenções.

Ontem, o STF assinou o seu próprio AI-5.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A "nova política'' pós-eleições de 2016: o prelúdio da Tragédia "Alckmin''




Em 2013, o Brasil vivia sob o slogan "o gigante acordou''. O que começou como uma série de protestos contra o aumento das tarifas de transporte público degringolou em um movimento de massa difuso e caótico, sem lideranças definidas e ideário forte, mas decididamente insatisfeitos com a precariedade na prestação dos serviços públicos. A indignação, uma espécie de versão tardia nacional do "ocupe Wall Street'', acabou se dirigindo contra os ocupantes do poder de então: o Partido dos Trabalhadores.


Quem analisava o PT, naquela época, não poderia imaginar que, 3 anos depois, seus mais de 17 milhões de votos confiados em prefeitos e vereadores eleitos em 2012 (o que tornava o PT o partido mais votado do país), 600 e poucos prefeitos, 5000 vereadores, 5 governadores, 88 deputados e 14 senadores seriam paulatinamente reduzidos até sofrer uma brusca queda nas eleições de 2016. De certa forma, o movimento de 2013, que difusamente propunha mais eficiência na prestação de serviços públicos, fez recair sobre o PT grande parte da culpa pelos males do setor, o que tornou a reeleição de Dilma Rousseff bastante difícil e decaiu significativamente o número de deputados, senadores e governadores eleitos em 2014. Essa tendência de responsabilização e desconfiança gradual em relação ao PT foi ainda mais reforçada com a deflagração da Operação "Lava jato'', que, em dois anos de investigação, chegou à conclusão de que desvios bilionários em licitações e compras da Petrobras serviram como propina para abastecer o Caixa dois do PT em suas campanhas, bem como o bolso de seus líderes e aliados. 


Todavia, era impossível até mesmo para os analistas políticos mais hostis ao PT imaginar o atual quadro. A sucessão de erros catastrófica e até mesmo sistemática levada a frente por Dilma destruíram a economia do país e esfacelaram a base do governo muito mais que as investigações ou os ecos de 2013. Foi uma abertura que a oposição aprendeu a trabalhar, se aliando à uma rebelião na base governista - comandada por Eduardo Cunha e seu "centrão'', grupo de políticos e partidos de linha fisiológica e mercadológica - para impor sucessivas derrotas legislativas que incorriam em aumento dos gastos públicos, insolvência fiscal e aumento do risco país. O cenário de instabilidade contaminou a economia, e uma crise política transformou um período de estagnação - que é o que deveria ter sido - na pior recessão desde a crise de 1929. 

O impeachment veio, Dilma caiu e Lula, ex-ministros do PT, senadores e caciques foram denunciados e se transformaram em réus. A intensidade dos fatos sintetizaram a má gestão, corrupção, fisiologismo, exagerado apego ao poder e incompetência sob a sigla do PT, dando margem ao maior movimento de rejeição súbita de um partido pelo eleitorado brasileiro. Foi o que vimos no dia 2 de outubro: o PT foi varrido do cenário municipal, ficando abaixo de alguns partidos de terceira divisão do cenário político nacional. Mesmo bons gestores e candidatos terminaram contaminados pela força do "antipetismo'', que de tão poderoso já se torna mais um dos muitos movimentos difusos a governarem caoticamente nossa política (em rápida síntese, esses movimentos difusos seriam "agrupamentos mais ou menos sistematizados'' de ideias e demandas, pendendo desde uma ordenação clara até o pleno caos, que não encontraram centros perenemente unificados onde possam se reunir para pressionar o poder público para lhes atender. Seriam, na linguagem política tradicional, grupos de pressão descentralizados, difusos, transcendentes à qualquer organização, embora alguns, como o MBL, tenham se organizado, ainda que de maneira dúbia). Sim: nossos partidos deram margem para que movimentos políticos difusos, descentralizados e com certo pendor "renovador'' avançasse sobre o país, que se integram dentro de "esferas'' justapostas que, ao meu ver, compartilham de zonas em comum, conforme representação gráfica abaixo:
1 - Em vermelho, temos as demandas por melhoria dos serviços públicos, iniciadas com protestos contrários ao aumento das passagens de ônibus. Como é o movimento "pai'' de todos os demais, esgotou-se rapidamente, hoje se apresentando de forma bastante reduzida. O correto, nos dias de hoje, seria nem mais representá-lo graficamente, pois sofreu uma mutação que acabou sendo absorvida pelas demais esferas. No entanto, tem como serventia apenas diferenciar os grupos que nem são totalmente azuis, nem totalmente amarelos;

2 - As demandas por melhora dos serviços produziram uma reação em grupos sociais mais elitizados, uma classe média decepcionada com a quebra ética do PT e, por isso mesmo, moralizante. Negam a política tradicional e os partidos políticos, questionando tanto as "alianças'' pragmáticas do PT com oligarquias conservadoras tanto quanto o loteamento de cargos e desvios para mantê-las. Também se encontraram respaldados por um forte norteamento religioso, que vai inseri-los em uma pauta mais conservadora em relação aos conceitos de família e casamento, e temas polêmicos como liberação das drogas e aborto. Vê-se representados em azul;

3 - Em amarelo, vemos os movimentos difusos que, essencialmente, defendem bandeiras libertárias e valorização das minorias, como gays, negros e mulheres, em um movimento que surge em razão da baixa inserção destes grupos mesmo nos governos petistas. Aqui se insere partidos como o "PSOL'', embora a ele não se reduza;

4 - No primeiro encontro de esferas, em roxo, vemos um pequeno movimento difuso que preza por melhorias na prestação dos direitos sociais e mais "ética'' na política, com a adoção de um "gerencialismo'' na gestão pública. Era o movimento iniciado por Eduardo Campos, ex-governador falecido de Pernambuco, que interpretou com acerto as mudanças de 2013 e previu que a demanda prioritária da população seria o binômio ética/eficiência;

5 - Em laranja, encontramos movimentos que saíram reforçados de 2013, mas não encontraram muito respaldo por parte do PT e seus aliados até a campanha contra o "golpe'', que uniu as esquerdas pela primeira vez desde sua fragmentação no primeiro governo Lula. Se nota aqui a presença de indivíduos que simpatizam com a chamada "nova esquerda'', que se identifica com pautas de luta contra a opressão de grupos minoritários, mas também possui um senso de gestão pública coletivizada e participativa, com a inclusão de grupos excluídos nas esferas de decisão políticas;

6 - Em verde, estão os ambientalistas e defensores da ética, identificados também com pautas típicas da nova esquerda, como liberação do aborto e das drogas. Embora tenham repúdio ao PT e PSOL, eventualmente do último se aproxima na defesa da ética, mas revela uma preferência pela crítica moralista do campo azul, mas sem seus arroubos religiosos. A maior expressão dessa força é Marina Silva, o partido REDE e o Partido Verde, bem como ONGs de proteção aos direitos dos animais, ativistas ecológicas, entusiastas de "ciclofaixas'' e uma classe média não puramente conservadora, mas não puramente esquerdista.

7 - O círculo branco, comum a todos os campos, não é branco sem razão de ser. Trata-se da grande incógnita de nosso tempo. É um "centro'' absolutamente caótico e difuso, que absorve as demandas de todos os demais movimentos e as sintetiza abrindo mão para um novo momento político. Se podemos de alguma forma traçar os pontos em comum desse grupo, eles se resumem a um sentimento de necessidade de um gerencialismo mais claro na gestão da coisa pública, pautas morais mais fortes, ambientalismo e sustentabilidade e, por fim, algum liberalismo na economia e uma abertura para mecanismos de "participação'' da sociedade de forma mais ativa no governo. Na verdade, o que impera de fato é a necessidade de "renovação'' da forma de fazer política e governar, e um "apolitismo'', um sentimento de rejeição contra a classe política tradicional.

Esta sistematização, embora carente de mais ricas elucubrações, demonstra e até explica nosso atual momento. Ora, um partido somente tem sucesso quando consegue interpretar a conjuntura nacional e, nesse caso, essa interpretação passa por aceitar o fato de que a mera política partidária, com suas alianças e coalizões, não é suficiente para conquistar e muito menos manter o poder. Me arrisco a dizer que foi por insistir em uma análise errada, desprezando a força dos movimentos difusos e apostando na solução política e partidária - com a negociação de cargos e verbas, embora tardiamente Dilma e o PT tenham estimulado o campo amarelo a vir em sua defesa - que o impeachment foi tão duramente desfechado sobre o PT e o partido varrido de metade das prefeituras que ocupava. 

A interpretação correta do nosso cenário atual - com a força de movimentos difusos, ou grupos de pressão descentralizados, ante e contra os partidos políticos - é o passo vital para a construção de uma base mais ou menos estável para viabilizar um "projeto'' político. Nestas eleições, fica claro que um partido, e especialmente um político, cumpriram com essas duas lições de casa. O partido - o PSDB - teve um sucesso estrondoso nestas eleições, e o "político'', Geraldo Alckmin, mais ainda. O governador de São Paulo soube antever que as eleições de 2016 seriam a primeira em que a força dos movimentos ia se fazer sentir de maneira mais intensa - em 2014, ainda imperou o jogo partidário - ainda mais com a intensa crise política e econômica que vivemos. O sucesso em prever o efeito retardado de 2013 no avanço do impeachment e na queda do PT permitiu ao governador entender que precisava mostrar ao país que sua sigla, e ele próprio em particular, eram a resposta para a demanda de "renovação'' comum a todos os movimentos difusos. Essa renovação seria mais fácil com o surgimento de novos nomes, embora não inexperientes; o candidato ideal seria aquele que conquistou seu patrimônio com o próprio trabalho, não estivesse ligado a políticos tradicionais e se apresentasse como um gestor pragmático, sem apelo acentuado pelo moralismo religioso ou pela liberalização moral. E foi assim que Alckmin inventou João Doria, enfrentando seu próprio partido para bancar sua candidatura para fazer da cidade de São Paulo sua "vitrine'' para apresentar sua "alternativa'' de gestão "renovada'' para o Brasil e o mundo. 

Além de Alckmin, no entanto, o PSDB como um todo não conseguiu ir muito além do campo azul do gráfico. É sintomático que, na maioria das cidades em segundo turno com mais de 200 mil habitantes, a maior parte das disputas seja entre PSDB e PMDB, ou seja, entre os moralistas tucanos e os políticos "mofados'' (como o deputado Daniel Coelho gosta tanto de dizer) e fisiologistas que antes apoiavam Dilma e o PT. Apesar de não apresentar alternativas para abrir espaço rumo à participação, o partido conseguiu cativar a classe média e parte do grupo "verde'' e até do "roxo'', com discursos sobre ética, eficiência e, acima de tudo, um antipetismo acentuado, colhendo os dividendos pela campanha pró-impeachment. Esse último ponto explica a adesão dos líderes de movimentos como MBL e Vem pra Rua ao PSDB e DEM. Vale dizer que, em conclusão, o PSDB conseguiu corresponder às expectativas dos movimentos difusos azuis, o que se verifica em suas alianças, frequentemente relacionadas a evangélicos e outros políticos conservadores, como os da bancada ruralista. Os outros campos, ainda desorganizados, são disputados pelo PSOL e Rede, onde se verifica um sucesso relativo do primeiro com a ida de Marcelo Freixo rumo ao segundo turno na eleição do Rio de Janeiro. 

O "futuro'', no entanto, vai forçar a reorganização das forças partidárias sob o espelho dos movimentos difusos, e provavelmente teremos o seguinte quadro:

- A primeira força política do país será (como já é) o PSDB e seus aliados (DEM, PPS e PTB), que reúnem juntos pelo menos 12 mil vereadores, 1300 prefeitos, 5 governadores (que governam quase 40% da população), embalado no discurso moralista, de ajuste fiscal e liberalização da economia, com a preservação estratégica dos programas sociais do PT. Atualmente, os tucanos já dão a linha no governo Temer desde as relações exteriores até o ajuste fiscal, com a PEC do teto dos gastos públicos, reforma da Previdência e reforma trabalhista;

- A segunda força será disputada pelo PMDB, que se desidratou neste ano (perdeu mais prefeituras que ganhou) e deve se desgastar ainda mais nos próximos dois anos de governo (com a conhecida inércia do governo Temer, que receberá todo o efeito negativo das políticas de ajuste tucanas, deixando estes livres de toda carga negativa e prontos para se apresentar como "o novo'' na política brasileira), e o PSD, que já possui 4600 vereadores e 539 prefeitos, PP (se este sobreviver à "lava jato''), PR, PRB, Solidariedade e os partidos nanicos que compõem o "centrão'', que devem atrair dissidentes do próprio PMDB. O PSB não se insere nesse grupo, por não ter uma linha mais fisiologista, mas é possível que vá tentar se capitalizar para representar os pontos laranja e roxo do gráfico, embora a ausência de uma liderança forte nacional o empurre para uma aliança com o PSDB (principalmente se a liderança tucana rumo à presidência for Alckmin), o que seria ideal, pois, juntos e com os aliados tradicionais do PSDB, concentrariam quase 2000 prefeituras, 16 mil vereadores e 8 governadores. O plano de Alckmin é oferecer a vaga de vice a um nome do PSB (ou talvez à Marina Silva?), apoiando seu atual vice-governador, que é do PSB, como candidato ao governo de São Paulo, chance imperdível para o partido talvez se fixar como segunda força política nacional e até mesmo, como rezava o credo eduardista (de Eduardo Campos), um dia prescindir das alianças pragmáticas com o PMDB, empurrando-o para o ocaso (algum parasita vive sem o hospedeiro? Seria a primeira vez que o referido partido estaria longe do poder. Sobreviveria?). O PSB é perfeito para os planos do PSDB, pois foi aliado do governo petista, tem um apelo "social'' mais forte (o que legitima a promessa de manutenção dos programas sociais) e, principalmente, abre as portas do Nordeste para os tucanos, já que a maioria de seus prefeitos, vereadores, deputados e senadores é desta região, cujo apoio ao PT decidiu a derrota tucana em pleitos anteriores;

- A terceira força, que deveria ser o PT, possivelmente será liderada pelo PDT, que conseguiu crescer para 334 prefeituras (a maioria delas, 57 ao todo, no Ceará) e aumentou o número de vereadores para 3700, tendo PT e PCdoB como coadjuvantes. Como é um partido historicamente ligado à "velha esquerda'', o PDT deverá se reinventar para ser representativo para eleitores do campo amarelo, laranja e roxo, que ainda pendem para a ideia de um Estado provedor de serviços básicos de qualidade. Para isso, deve propor mais iniciativas voltadas às minorias, bem como mecanismos de participação popular em seus programas políticos; em suma, deve levar uma "injeção de PSOL''. Também deve se beneficiar do fato de não estar tão ligado ao PT como o PCdoB. Crescerá se o governo Temer degringolar ou não sair do volume morto;

- A quarta força será, possivelmente, o PSOL e a Rede, que encontrarão eco mais fora do que dentro dos parlamentos. A força combinada de políticos dessas duas siglas impediu, recentemente, a aprovação de uma "anistia'' tramada por deputados do "centrão'' aqueles que cometeram crimes relacionados à prática de receptação de propinas no escândalo do Petrolão. Tais partidos representarão bem os campos amarelo e roxo, devendo se aliar eventualmente ao PDT para unificar seus respectivos campos. Contudo, sua força combinada, embora incômoda, tem tudo para ser barrada eleitoralmente, principalmente diante da aliança PSB/PSDB. 

Em suma, podemos concluir que Alckmin e o PSB pretendem ocupar não apenas os espaços que lhes atribuímos, mas sim o espaço "branco'' no ponto de contato de todos os círculos, o conjunto de ideias que a todos os movimentos difusos representa, e por isso mesmo está atualmente vazio de representação. O PT, em 2002, conseguiu interpretar bem tal cenário, ao unir ortodoxia econômica, levantando as bandeiras dos direitos sociais, da ética e, ao mesmo tempo, da conciliação sob a forma de um pacto entre trabalhador e empresariado, expressa na chapa Lula/José Alencar. Deu tão certo que o partido ficou 13 anos no poder, mas deixou uma lição: ocupar o espaço "branco'' pode ter como efeito decepcionar todos a quem se deseja representar. Afinal, equilibrar ortodoxia e direitos sociais, bem como "conciliação'' e ética, terminou sendo desastroso para o PT - principalmente quando essa difícil administração de interesses caiu em mãos inábeis. Até que ponto o PSDB terá a mesma habilidade - ou inabilidade?

É como se estivéssemos no intervalo entre duas peças de teatro. A primeira, que começou como uma epopeia e terminou com traços de comédia, acabou sob vaias. Os expectadores agora querem uma nova ilusão, por que nisso consiste a política: a arte de encenar ilusões, encenações, jogo de luz e sombras, de influir no emocional e nas necessidades mais íntimas de cada um. As nossas - de busca por mais honestidade, valor, eficiência e compromisso - encontraram uma cara no personagem Alckmin e do roteiro da "nova política'': como os atores do teatro grego, ambos usam uma "persona'', uma máscara, que lhes transforma em outra pessoa, por onde escutamos sua voz (a origem da palavra é "por onde passa o som''). Desaparece o truculento governador metido na máfia da merenda, e surge o "novo'' político, que oferece uma mão forte para guiar o leme em tempos de crise; experiente e aberto aos novos tempos, simultaneamente. E essa personalidade protagonista e sua voz de canto de sereia "nova'', junto a coadjuvantes como João Dória (bobos, leais e "eficientes'') são exatamente a que a maioria do povo brasileiro mais almeja agora, sem os riscos de cortes mais profundos nos gastos sociais, mas com certos "sacrifícios''. É a hora do líder forte; do herói que vem do passado para renovar o futuro.

Por outro lado, as eleições de 2016 demonstraram que apenas o PSDB leu corretamente o cenário político - e, dentro desse "apenas'', se situa Alckmin. Ambos estão com a faca e o queijo para retornar ao poder para dar início a uma nova era na história do Brasil. E, se tudo se confirmar, os movimentos de 2013, surgidos na esquerda, vão gerar um governo mais "à direita'', com o PT como partido nanico, o PMDB afastado do governo e uma oposição liderada pelo PDT, PSOL e Rede. 

Façamos nossas apostas. Como um jogo, quem chegar ao centro do tabuleiro ganha. Alckmin largou na frente, e tudo dependerá da lava jato, do sucesso ou fracasso do governo Temer e da capacidade de reorganização das esquerdas. E o tempo dirá se teremos surpresas ou, mais uma vez, um tucano a voar nos céus do Brasil rumo ao Planalto Central. Visionário, Eduardo Campos já falava em uma "nova política''. Pois bem: ela chegou para ficar, mas não sob a batuta do homem dos olhos verdes, mas sob o passo do par de olhos duro, inflexível e frio de um dos maiores estrategistas da política moderna brasileira. O pior de tudo é ver que "o novo'' será a máscara de um político com alguns valores que remontam ao século XIX. É como se o nosso "ocupe Wall street'' tivesse produzido um "Donald Trump'' melhorado, mais refinado, amante de música clássica e da milenar arte de encenar peças teatrais velhas com requintes modernos e atraentes. Essas peças, na velha Grécia, vejam que ironia, chamavam-se "tragédias''.