sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O AI-5 do Supremo Tribunal Federal

O radicalismo é uma doença comportamental dos nossos tempos. No mundo do direito, ele manifesta seus sintomas quando, munidos de “boa fé’’ ou “com boas intenções’’, juristas, juízes e agentes do Estado rompem os limites da lei em busca de “justiça’’. E não há nada mais maléfico do que quando a “justiça’’, que não conhece limites ou regras, faz do direito seu escravo. Contra desafios, a justiça oferece soluções fáceis; contra obstáculos, um atalho; contra a impunidade, a sensação de saciedade da sede de vingança. Nesses dias, o STF, o “guardião’’ da lei maior, achou por bem atribuir a si mesmo papel de anjo vingador e ouvinte atento do clamor social por “justiça’’.

E como se fará “justiça’’ no Brasil, depois das duas decisões inusitadas do STF? Veja, se antes a pendência de recursos junto a tribunais superiores impedia que um criminoso fosse punido, agora esse obstáculo está sanado. Nada de meliantes soltos, enquanto os tribunais abarrotados não julgam seus recursos, nem de crimes prescritos. Mas o problema é que o pobre, preto ou simplesmente o cidadão injustamente acusado (que tal “1 grama de maconha pode ser considerado tráfico de drogas...’’; “sacar benefício previdenciário de um parente falecido, mesmo com desconhecimento da lei, é estelionato...’’ e, a minha preferida em termos de radicalismo “o meliante surrupiou a galinha, de forma premeditada, cometendo furto qualificado, devendo ser condenado à pena máxima...’’) vão igualmente mofar na cadeia enquanto os dignos ministros não julgam seus recursos. E, uma vez na cadeia, sabemos que a chance desses injustiçados ou réus primários se tornarem criminosos contumazes é de 80%. O ciclo do crime se auto-alimenta.

O outro novo jeito de fazer “justiça’’ é autorizando aos policiais a invadir casas e locais de trabalho, mesmo sem mandado ou autorização judicial, e à noite. Basta ter “boa fé’’, “boas intenções’’ e “suspeitar’’ que um delito está sendo cometido ali. Bem, que tal levarmos ao extremo tal posição, e forçar a entrada no Congresso, no Palácio do Planalto e na sede da Petrobras? Afinal, todos sabemos que um “delito’’ pode estar sendo cometido ali dentro! Ah, não nos esqueçamos das “boas intenções’’. Dessas, o inferno onde estão os ditadores e agentes da tortura que invadiram ilegalmente domicílios de tantos desaparecidos políticos está bem cheio.

O radicalismo, ou o “pragmatismo’’ levou nossos colendos ministros a cassar a vigência de dois direitos fundamentais, conquistados, vejam só, na luta contra o absolutismo monárquico e as ditaduras fascistas. A partir de hoje, juízes estão autorizados, pela autoridade judiciária máxima do país, a mandar prender um processado sem nenhuma motivação além da pendência recursal e, claro, autorizar a invasão de domicílio (que, em si só, é um crime!)desde que “comprovada a boa fé’’ dos policiais. O Supremo se converteu em mini-assembleia constituinte. Pode tudo, em nome da justiça.

Esse é tipo de radicalismo pós-morista que, cheio de “boas intenções’’, vai jogar por terra nosso estado de direito justamente para combater os governantes corruptos. Em nome da punição de crimes, se autorizam outros. Para vencer o mal, temos que jogar fora das regras. Afinal, a lava jato, a origem inspiradora do súbito “sentimento de justiça’’ dos ministros, está acima das leis comuns... assim como o bom juiz que decreta uma prisão com base em provas ilícitas (como a tortura. Você sabia que o juiz Moro e os nobres procuradores apoiam um “pacote anticorrupção’’ que legaliza as provas ilegais, se “obtidas de boa fé’’?) ou os policiais que invadem sua casa e te levam preso, no meio da noite, como se fossem do antigo SNI.

Quando a moral e a política colonizam o direito, fazendo com que os poderes do Estado se concentrem em poucas mãos (ou onze pares de mãos, para ser mais exato), acontece o que Montesquieu profetizou sinistramente. “Tudo estará perdido!’’. Perder-se-á a justiça, que só existe com a divisão e o controle dos poderes entre si, pela sociedade e pela lei; perder-se-á a razão, em nome de discursos emotivos insuflados pelo ódio político; perder-se-á quase trinta anos de estado de direito, em nome de um estado de exceção "do bem'', para punir "os privilegiados''. Mas, claro, o que importam são as intenções.

Ontem, o STF assinou o seu próprio AI-5.

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