quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

"DAQUELES QUE ADQUIRIRAM UM PRINCIPADO ATRAVÉS DO CRIME'': UMA ANÁLISE "MAQUIAVÉLICA'' DO GOVERNO TEMER



O famoso ditado "você é aquilo que come'' poderia ser "você é aquilo que lê''. Michel Temer, atual presidente da República, é um [presumível] leitor voraz dos clássicos. Certamente, entre um cálice de vinho (ou um pote de sorvete) e outro, o presidente deve ter lido Nicolau Maquiavel, ou até mesmo se aconselhado com ele todas as noites. O Primeiro mandatário do país, de certa forma, seguiu à risca o “”manual de instruções’’ do filósofo florentino e logrou sentar-se no posto máximo do país, especialmente inspirado pelo capítulo VIII de "O Príncipe'': "daqueles que adquiriram um principado através do crime''.

Em relação à sua subida ao poder, o jogo foi montando com a especial maestria de, mediante o surgimento de situações difíceis – como uma mega-operação policial que desvendou um dos maiores escândalos de corrupção da história – manejar-se dificuldades em interesse próprio, levando ao limite a qualidade maquiavélica da “virtú’’. Sabe quando um rio enche demais e devasta tudo? Pois bem: uma pessoa sem imaginação poderia apenas temer (trocadilhá-lo-ei) a destruição causada pela enchente, mas um verdadeiro Príncipe veria o potencial na força das águas para irrigar solos pobres para transformar a vida de seus governados e, consequentemente, cair nas graças do povo. Bastaria construir um dique para canalizar o rio; bastaria, em uma palavra, “virtú’’, a arte de lidar com o “inesperado’’ e dele tirar proveito. Maquiavel até personifica esse “inesperado’’ sob a forma da deusa Fortuna, uma bela mulher temperamental e ciumenta, ansiosa por ser conquistada por quem mereça tais feitos.

O maremoto da operação Lava-jato, junto à enorme crise econômica, assim, é a premissa básica no jogo complexo montado pelo Príncipe que hoje se assenta no Palácio do Planalto. Temer previu, antes de qualquer um, o triste fim que se desenhava para o governo Dilma, e articulou uma poderosa base de apoio entre os ratos que temiam mortalmente serem afogados na inundação da gestão que ia, rapidamente, à pique. Ofereceu –se para construir uma barragem contra uma operação policial e, ao mesmo tempo, garantir que os financiadores de campanhas eleitorais continuassem a encher os bolsos com recursos públicos.

Essas “barreiras’’ contra o maremoto da “crise’’ foram essencialmente construídas pelos aliados de Temer. Romero Jucá, o inescrupuloso condottieri (antigo mercenário italiano, que vendia seus serviços para o príncipe que pagava mais), foi o responsável por articular um grande “pacto’’ contra a operação Lava-jato. Ao seu tenente-general, Meireles, ministro da Fazenda, foi dada a missão de estabilização da economia. E, nesses dois pontos, Temer e seus súditos próximos tentaram aplicar mais duas lições de Maquiavel.

O velho florentino havia predito que, em caso de “tomada’’ do poder por “meios não usuais’’ (leia-se fora da lei ou mediante uso da força), seria normal que “crueldades’’ fossem cometidas. Daí se falar em “daqueles que adquiriram o principado por meio de um crime’’: Michel Temer articulou quadrilhas políticas dispersas e propôs o maior, mais elaborado e descarado esquema de tráfico de influência (seria um crime?) da nossa história. Os indícios, claríssimos, deste grande delito perpetrado diariamente em escala nacional vai desde a articulação para aprovar o impeachment da presidente anterior, à nomeação e troca constante de ministros, além de vazamentos ilegais de delações que comprometem o chefe da oposição (o ex-presidente Lula). Deu certo? O tempo dirá. Mas pode-se dizer que Temer não teve escrúpulos em sacrificar alguns dos seus maiores aliados, como Eduardo Cunha, para permanecer no poder durante tal processo. Vem entregando seus anéis, dedos e até braços para conservar sua preciosa cabeça de intelectual latinista.

Além do “crime’’ em si, Temer e sua equipe lançaram um verdadeiro pacote de crueldades. A primeira grande maldade começou com a própria Petrobras, pivô de todos os escândalos até então, quando o presidente e sua equipe endossaram a quebra do monopólio da estatal sobre o pré-sal, operando-se a venda (via eufemística “concessão’’), à preço de banana, dos principais poços de petróleo. O governo, em seguida, lançou um insuspeito “programa de concessões’’ que ainda não saiu do papel e, por último, resolveu mandar ao Congresso uma Proposta de Emenda à Constituição que limitava o reajuste dos gastos públicos à inflação, reindexando a economia. Além da reforma da previdência iminente, o governo ainda articulou nos bastidores em prol da “desfiguração’’, na calada da noite, do projeto “dez medidas contra a corrupção’’ – que, convenhamos, é mais perigoso por si do que as manobras do sr. Temer!

As crueldades foram pensadas para serem aplicadas, seguindo o conselho maquiavélico, o mais rápido o possível. O ensinamento é de que todos os males devem ser aplicados de uma só vez para logo serem esquecidos, pois, se estendidos no tempo, podem alimentar uma constante revolta contra o soberano e uma verdadeira crise de confiança.

É justamente aí que falha, em uma análise “maquiavélica’’, o governo Temer. O prazo das “maldades’’ está se estendendo tempo demais, e a população alimenta uma grande revolta contra uma gestão de quem se suspeita até o último homem; já são praticamente oito longos meses de “medidas impopulares’’, com uma terrível previsão de agravamento logo adiante, acrescidos de frequentes escândalos e seis ministros derrubados. Maquiavel diz que crueldades que não são feitas a um só tempo, ou seja, rapidamente, são “mal empregadas’’ se acabam prolongando-se por muito tempo (e o que dizer de uma Emenda constitucional que dura 20 longos anos congelando investimentos em qualquer área?).

Por outro lado, sendo sustentado por um acordo entre elites políticas, Temer tentou seguir outro conselho de Maquiavel, embora direcionado àqueles que chegaram ao poder pelo favor dos grandes (leia-se: dos ricos) e não aos que tomaram o poder através de um crime. Diz o florentino que, uma vez alçado ao poder pela vontade dos ricos, o príncipe deve buscar, em primeiro lugar, o apoio do povo, manipulando-o contra as elites, equilibrando um jogo de classes onde essas últimas desejam oprimir o povo, que por sua vez deseja não ser oprimido. Maquiavel diz ser “mais fácil’’ satisfazer os desejos do povo em não ser oprimido, acrescido do fato de que, se os homens recebem o bem de quem esperavam o mal, tenderão a amá-lo muito mais do que se o próprio príncipe fosse um campeão popular. Por outro lado, o poder exercido através das elites deixa o príncipe em situação de constante tensão, pois será sempre apenas mais um dentre iguais, que poderão facilmente derrubá-lo. Foi a partir daí que Temer procurou “conceder’’ aumentos no valor do Bolsa-família, anunciou a redução do preço da gasolina e até lançou alguns “novos programas sociais’’. Buscou o equilíbrio entre os grandes e os pobres.

Por outro lado, sabendo ser muito difícil conquistar o apoio do povo, teve que voltar atrás de muitas das “benesses’’ concedidas. Não demorou a iniciar uma “caça às bruxas’’ entre os beneficiários do Bolsa Família, cancelando o benefício, sumariamente, de centenas de milhares de famílias; permitiu novos aumentos para o preço da gasolina e, paulatinamente, capitaneou um trem da alegria pelo aumento dos salários da elite do funcionalismo público.
A traição de Temer às próprias promessas atingem em cheio o mandamento maquiavélico de “o príncipe deve agir de maneira constante e previsível’’. Tanto a população como até os “grandes’’ começam a não sentir a mínima segurança nas ações e nos planos do governo, que anuncia medidas e recua, quase que instantaneamente, após reações negativas. Foi assim com a extinção/recriação relâmpago do Ministério da Cultura, as “garantias’’ de que os ex-ministros Jucá e Geddel ficariam em seus cargos para logo depois caírem e o anúncio do “veto integral’’ ao projeto de lei de renegociação das dívidas dos Estados, para logo em seguida se decidir por um “veto apenas parcial’’. Conclusão do próprio Maquiavel: se o príncipe age de maneira inconstante e imprevisível, o destino e o acaso, e não o governante, é que levarão o crédito por eventuais benesses aos súditos, mas somente o príncipe é que será culpado pelos infortúnios.

À parte, a outra conclusão mais clara é que, longe de opor limites à enchente que varre o país, o Governo Temer vem apenas tentando dela fugir; sua proposta real não é uma barragem segura contra as águas, mas um simples bote salva-vidas para seus privilegiados ocupantes. Alguns aliados do “príncipe’’, dentre eles o senador Ronaldo Caiado (DEM), já entenderam essa lógica e compreenderam que falta, justamente, a virtú verdadeira ao presidente Temer. Mas, ora, se o presidente seguiu as regras maquiavélicas, como pode lhe faltar exatamente essa qualidade tão especial?

Maquiavel, no final do capítulo VIII, explica brilhantemente essa ideia. Ora, a virtú é a outra face da moeda da glória. Ninguém pode tirar proveito do imprevisível e do destino, nem domar a deusa ciumenta e temperamental da Fortuna, sem uma chama de ‘merecimento’, sem glória. A “glória’’ é uma imagem idealizada deôntica, ou seja: é como nós, enquanto sociedade, imaginamos qual a forma ideal, legítima e desejável do agir do governante; é “glorioso’’ aquele príncipe que age conforme essa ideia. A glória é uma aparência assemelhada com uma ideia. Se um príncipe sobe ao poder por meios não “gloriosos’’, como, por exemplo, por intermédio de um crime, terá construído, talvez para sempre, uma imagem negativa para si. Uma lição máxima de Maquiavel é que a glória não existe sem reconhecimento e, mesmo que Temer consiga “salvar’’ o Brasil e a elite política inescrupulosa da qual faz parte, jamais terá reconhecimento como um grande homem. Jamais obterá a “glória’’.








Acima, Temer constrangido diante dos líderes do BRICS. Que tipo de príncipe se sente um inferior dentre seus iguais?

A virtú de Michel Temer, assim, é uma virtú falseada, improvisada, criada como embuste para ludibriar aliados políticos, parte da imprensa e as forças econômicas, visto que é desprovida tanto de reconhecimento quanto de glória. Além do mais, o governo falhou em equilibrar-se entre pobres e ricos, aplicou “crueldades’’ em excesso e por longo tempo, e, longe de ter detido as enchentes da economia e da lava-jato, parece determinado a escapar delas. Temer é como os antigos tiranos gregos, que, a revelia de seu sucesso ou fracasso pessoal, entram para a história exatamente pelo que são – mesquinhos, sedentos de poder, conquistadores de um poder ou de uma posição para os quais não estavam legitimados, sempre lembrados pela sua origem (um pintor fracassado, um ex-seminarista ensandecido, um político comandante de uma quadrilha institucionalizada...) e não pelos seus “feitos’’.




Michel Temer e seu governo nada mais são que um plano de fuga

É claro que, sabendo de tais considerações maquiavélicas, o presidente deve passar suas noites em claro. Afinal, se, como Maquiavel ensina, um príncipe se vale tanto das virtudes racionais quanto dos instintos animais (de acordo com as circunstâncias), como a força de um leão ou a astúcia de uma raposa, Temer vem sendo uma raposa quando necessitava ser um leão, e sendo um leão quando precisava ser um homem; e, quando necessita ser um líder, nada mais é que um covarde. Um proto-príncipe, um pseudo-governante, desesperado e ignóbil, tão ciente de sua ilegitimidade e de todo o constrangimento que isso provoca em si e nos outros que age como se nem fosse presidente da República, mas um gângster encurralado que deve sua impunidade a uma espécie de torpor e conivência dos poderosos.

Michel Temer é o príncipe que jamais dará certo. O príncipe sem virtú, que não deve à Fortuna sua posição, mas ao crime. E o crime, pelo menos para Maquiavel, não compensa. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário