quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Ciranda das conspirações: o Golpe de Estado pseudo-republicano do 15 de novembro de 1889


 

Parecia ser mais um dia comum para a população do Rio de Janeiro. O já consagrado escritor Machado de Assis tomou um coche e se dirigiu à famosa Rua do Ouvidor, para encontrar com seus amigos intelectuais, no novo café de estilo francês aberto recentemente. Ao passar pelo Paço, o Palácio São Cristovão (residência da família imperial), saudou seu amigo, Aristides Lobo, que estava sentado num dos novos bancos ornamentados com flores de metal e circundado por postes de luz a gás.

Contudo, tanto Machado quanto Aristides estavam profundamente abalados. Na noite anterior, tiros de canhão foram disparados e pouco mais de uma centena de recrutas do Exército, generais e políticos republicanos passaram as horas percorrendo a cidade. No meio da confusão, só uma certeza: o Visconde de Ouro Preto, então primeiro-ministro, havia sido preso em uma espécie de revolta, e, pelo menos entre os que sabiam ler (cerca de 20% da população) circulava o boato de que o Império fora derrubado e a República, proclamada.

Machado e seu amigo, que era cronista, não podiam acreditar no que ouviam, mas, enquanto o grande escritor estava consternado e triste, Aristides, líder republicano, estava satisfeito, embora decepcionado com os acontecimentos. Como a República podia ter sido proclamada, se o Partido Republicano Paulista, o mais forte dentre as 183 agremiações republicanas do país, que havia eleito apenas dois deputados (das centenas possíveis!), mas nenhum senador ou governador de província?  Como se pôde derrubar, em menos de 24 horas, um império sexagenário e estável, regido por um monarca extremamente popular, em uma rebelião de quartel onde 1% do Exército participou?

1- As reformas liberais: perigo à vista

Costumam-se apontar três causas para a queda da monarquia brasileira: as questões militar, religiosa e social, embora os fatos transcorrentes no ano de 1889 tenham sido mais decisivos do que os livros didáticos costumam reconhecer.

De um lado, os militares positivistas desejam conduzir o país e implantar uma série de reformas econômicas, políticas e culturais. O objetivo era implantar a ditadura positivista, promovendo uma grande mudança no ensino público e industrializando o país; uma crença que seria recuperada pelos tenentistas e pelo posterior Estado Novo. Do outro, o Império perdeu apoio da Igreja, pelas suas relações controversas com a maçonaria. E, por fim, a abolição da escravatura provocou a adesão em massa dos latifundiários do Vale do Paraíba e do Nordeste, sustentáculos sociais so império, nas fileiras dos republicanos (que passaram a ser conhecidos como "republicanos de 13 de Maio'').

Mesmo desprovido de suas bases de apoio tradicionais, o imperador era imensamente querido pela população, sobretudo os mais pobres e os negros, gratos pela abolição da escravatura. Com o intento de oxigenar as instituições imperiais, desgastadas pela mudança da sociedade brasileira, o imperador nomeou o representante do Partido Liberal, o já citado Ouro Preto, para promover uma ampla reforma política, talvez a maior que o país veria em muitos anos. 

Ouro Preto apresentou um projeto de Lei que tornaria o voto um direito universal e exercível por todos os homens, aumentaria de sobremaneira a autonomia das províncias, promoveria uma profunda reforma no ensino básico e extinguiria a vitaliciedade dos senadores. Basicamente, com a extinção do voto censitário (que reservava à população rica o direito de voto, pela renda), as massas populares, sobretudo os escravos, seriam incluídas na política nacional e, pelo novo sistema, teriam uma forte tendência a apoiar os monarquistas conservadores, e a rejeitar os políticos republicanos, mal-vistos como "maçons'' e corruptos, e simplesmente inexpressivos diante do carismático monarca; a rejeição do projeto na Câmara baixa não impediu que ele pudesse ser ressuscitado por empenho pessoal de Pedro II. O imperador se aproximava, perigosamente, de se tornar um "Getúlio Vargas'', um político apoiado em classes populares, com a antecedência de 41 anos!

2- O império do café: foi a economia, estúpido!

As transformações na infraestrutura brasileira, no Segundo Reinado, foram patentes. Após um período de industrialização acelerada (a era de vigência da taria Alves Branco, que sobretaxava produtos estrangeiros), onde as indústrias brasileiras, comandadas pelo Visconde de Mauá, se tornaram as mais poderosas da América Latina, o país enfrentou uma relativa depressão econômica. O Tesouro imperial perdeu os recursos na guerra do Paraguai e, endividado, era impotente para dar continuidade ao desenvolvimento industrial. Logo, o único produto competitivo do país, já desde 1830, era o café, dessa vez plantado no Oeste paulista, por uma nova burguesia com tendências liberais (economicamente) e que desejavam abolir os privilégios dos grandes fazendeiros do Vale do Paraíba e do Nordeste.

Esses novos latifundiários cafeicultores, ao lado do capital externo, financiaram um novo fomento industrial no país, para montar toda a infraestrutura necessária à produção, torra, ensacamento e trnasporte do café. Foi essa aliança entre o poder industrial (majoritariamente estrangeiro, que acabava distribuindo o café pelos grandes centros consumidores da Europa e EUA) e a burguesia cafeicultora mudou a economia paulista e tornou necessária a adoção de uma série de medidas fiscais, tributárias e protetivas por parte do governo para que os lucros dessa aliança entre fazendeiros e estrangeiros continuassem a subir. Traduzindo: os cafeicultores desejavam um Estado que servisse a seus desígnios e que pudesse ser controlado por eles; um Estado que tributasse o resto do país, mas promovesse, com incentivos fiscais e empréstimos, a indústria do café.

O pior, em toda essa história sordida, era o objetivo explícito do capital externo em destruir o Império e substituí-lo por uma nova super-estrutura (os lucros remetidos ao estrangeiro, com o uso das ferrovias privadas, ensacamento e torra do café, além da distribuição, eram doces e elevados... muito mais que a "parte'' dos paulistas no bolo). Trata-se de uma evidente aplicação da teoria materalista: a infraestrutura evoluiu e tornou sua "capa'', a superestrutura, obsoleta, e a destruiu, de cima para baixo, para construir uma nova. E essa "nova'' superestrutura seria um Estado federalista, onde cada grupo político comandaria partes do país, que seria dividido em "zonas de influência'' entre as elites regionais, mas que, no fim, se aliariam para manter um poder central capaz de esmagar revoltas sociais e estruturar mecanismos fiscais e tributários para retirar o máximo de riqueza da população para maximizar os lucros dos cafeicultores e dos demais grandes propreitários. 

Daí o Oeste paulista ter sido o berço dos partidos republicanos e a região a partir da qual se articulou, verdadeiramente, todas as decisões quanto à proclamação da República. Sem o apoio dos paulistas endinheirados, Deodoro da Fonseca e seus rebeldes teriam sido presos e o império permaneceria intacto. Mas, quando souberam da rebelião de quartel do dia 15 de novembro, os grandes barões do café de São Paulo abriram champagnes importados e comemoraram; afinal, Deodoro fez o trabalho sujo de derrubar o imperador e preparar uma "República'' para eles, os verdadeiros comandantes do país. Mas, claro, faltou avisar ao Marechal monarquista (!) que proclamou a República de que ele deveria entregar o poder aos paulistas...

3- Todo o poder para os fofoqueiros: como boatos infundados capitalizaram a "gloriosa'' República

Enquanto grandes capitalistas e fazendeiros esperavam a hora certa de derrubar o Império (o consenso entre os republicanos paulistas era esperar o imperador morrer, já que era este a fonte de legitimidade da monarquia, não a instituição em si; como a princesa Isabel, casada com o Conde D´éu, não era de modo algum cotada, entre o povo e todos os grupos políticos, para a sucessão por causa de seu marido estrangeiro, a monarquia morreria com Pedro II), os militares derrubavam a monarquia. Tratavam-se de dois grupos sociais que apenas coincidiam na proclamação da República: daí em diante, eram quase grupos adversários. Enquanto os primeiros era chamados de "evolucionistas'', os segundos eram "revolucionários'' e queriam alterar a estrutura social e econômica do país.

Enquanto os evolucionistas e barões do café tinham um enorme poder econômico, mas temiam distúrbios em caso de se tentar derrubar o império pela força, os militares não tinham nem poder econômico nem popularidade, e estavam prontos para tudo, já que se lixavam para a vontade popular- os militares eram, e são, amplamente anti-democráticos. Havia, contudo, um elemento de ligação entre o imperador, os militares e os cafeicultores: todos eram maçons. E o papel desta instituição, que por vezes gosta de assumir uma aura mística e altruísta (embora seus interesses sejam muito, muito materiais...), foi decisivo na queda do Império: a maçonaria era a grande congragação e meio de união entre fazendeiros e intelectuais positivistas, que, em conjunto, haviam se decidido pela substituição do império. 

Mas, enquanto alguns os intelectuais, como Ruy Barbosa, desejavam "copiar'' a República Estadunidense, outros acadêmicos, como o coronel Benjamin Constant, queriam implantar uma ditadura. Os barbosistas, liberais de primeria linha, acabaram se aliando aos fazendeiros, que viam na pregação federalista e no sistema presidencialista a la EUA tudo o que queriam: fragmentação política (o país seria dividido entre as oligarquias de fazendeiros) e, ao mesmo tempo, a manutenção de um poder central para "garantir a ordem'', ou seja, a supremacia dessas mesmas elites agrárias, que, manipulando as eleições "livres'', se eternizariam no poder, dividindo entre si cargos, o orçamento nacional, as bancadas das câmaras estaduais e mesmo integrariam, conjuntamente, os poderes Executivos da nação; a política se resumiria a acordos períodicos entre as elites regionais e suas movimentações no jogo do poder, com suas peças e objetivos, tendo como tabuleiro o país inteiro...

Os militares e seus intelectuais positivistas foram isolados e acabaram só proclamando a República, e, para a sorte dos latinfundiários, sua política econômica industrialista - conduzida, controversamente, por Ruy Barbosa- afundou o país em uma crise econômica gravíssima. Mas não é o que devemos discutir aqui.

O dia 15 de Novembro e seus acontecimentos foram vitais para a República, talvez mais que os fatores antes elencados. Os militares positivistas ofereceram ao Marechal Deodoro da Fonseca a chefia do movimento, já que a conspiração estava marcada para o dia 20 de Novembro. Deodoro nem aceitou, nem recusou. Desconversou e, só na madrugada do dia 15, quando foi acordado aos gritos de que seria preso (um boato falso, pregado por Constant) na porta de sua casa, decidiu se por a frente do Golpe de Estado. Assim, mesmo doente, vestiu uma farda por cima do pijama listrado, e, montando um cavalo estropiado, gritou "viva a República'' na hoje Praça da República. Depois disso, voltou para casa e não conseguiu dormir, por causa dos disparos de canhão, cantoria e algazarra promovida pelos oficiais do Exército. A população como dissera o Aristides Lobo, um dos chefes republicano, assistiu "bestializado'' ao movimento e, no fim, não houve nenhuma participação popular nas comemorações ou no processo que conduziria ao fim do regime imperial

O Visconde de Ouro Preto estava aflito. Enviara um telegrama ao imperador, que estava em Petrópolis, e ordenara ao comandante dos destacamentos do Exército do Rio de Janeiro, Marechal Floriano Peixoto, que debelasse o movimento revoltoso. Floriano disse que jamais enfrentaria brasileiros e prendeu o primeiro-ministro ali mesmo; foi uma desculpa esfarrapada, já que o Marechal era um dos conspiradores.

D. Pedro II saiu de Petrópolis e tentou salvar a Monarquia. Experiente, tentou nomear um novo primeiro-ministro e já redigia a anistia aos rebeldes, quando soube que o líder da conspiração era Deodoro, seu amigo pessoal ("não posso acreditar'', teria dito); Constant, espalhando novos boatos infundados, disse que o novo primeiro-ministro era o inimigo mortal de Deodoro, o que o fez reafirmar a proclamação da República. Pedro II ficou isolado e recebeu um telegrama do governo provisório republicano, pelo qual deveria deixar o país em 24 horas. Temendo derramamento de sangue (o seu e o de sua família, bem como dos populares e militares legalistas que tentassem defender a monarquia) em caso de resistir aos golpistas, decidiu acatar a intimação e se dirigiu, com sua família, ao navio "Alagoas'' (ironia do destino?), para ser levado ao exílio.

4- Conclusões: a República ditatorial

Constant comemorou como nunca essa vitória. Agora, ele e seus amigos podiam transformar o Brasil numa ditadura altamente centralizada, refundar a ordem para possibilitar o progresso rumo ao estado positivo comtiano. Mas, quando as elites paulistas receberam, por Aristides Lobo, a notícia da expulsão do imperador, se movimentaram e o novo governo, nas eleições da Assembleia constituinte, já estava cercado pelos representates dos latifundiários. Deodoro ganhou uma eleição indireta e reafirmou-se como presidente, mas de mãos atadas por causa da intensa oposição do Congresso Nacional, dominado pelo poderoso Partido Republicano Paulista, o braço político da burguesia cafeicultora. As dificuldades já começaram nas primeiras semanas de governo: investidores estrangeiros fugiram do país devido ao clima de instabilidade. A república fora fundada, em um jogo privado de elites econômicas e intelectuais, que, arrogantemente, reservavam a si mesmas a tomada de todas as decisões sobre o destino do país. Havia um último elemento em comum entre elas, apesar de todas as divergências: a ideia de que a população deveria permacener afastada do poder e, como sempre foi, teria de continuar como um expectador passivo dos acontecimentos.

Ao fim de dois anos do governo, Deodoro, sem ter feito nada de extraordinário em seu governo (a não ser promulgar uma Constituição copiada dos EUA e dar início a uma grave crise econômica, o encilhamento) tentou dar um Golpe de Estado contra o Congresso. Mas a Marinha, reduto monarquista, não aceitou e ameaçou bombardear o Rio de Janeiro; era a Revolta da Armada, o início da contestação à República e o fim da carreira de Deodoro, que renunciaria e morreria poucos meses depois. O ciclo de lutas para afirmar a República contra federalistas, monarquistas e sertanejos (Canudos) continuaria até 1896, e representou um verdadeiro banho de sangue, com censura da imprensa, torturas em massa, prisões ilegais, estupros e vários crimes de guerra, promovidos por Floriano Peixoto, sucessor de Deodoro, que consolidou a República a partir de uma verdadeira Ditadura Militar. Os latifundários o apoiaram nessa sangrenta tarefa e o convidaram, cessadas as hostilidades, a deixar o poder. Eles controlariam o país, com mão-de-ferro, até 1930.

O império derrubado (ao lado, Pedro II, aos 24 anos) havia legado ao novo Regime um país unido, centralizado, de tamanho continental, portador de uma verdadeira identidade nacional. Em seu domínio, o país viveu dois ciclos de industrialização e avançou em uma série de setores, desde a área de transportes, energia elétrica, comunicações à literatura e arte; só entre 1850 e 1860 foram fundadas 62 empresas industriais, 14 bancos, três caixas econômicas, 20 companhias de navegação a vapor, 23 companhias de seguros e oito estradas de ferro, no maior surto de crescimento econômico da América Latina. Cerca de 13% da população participava do processo eleitoral (indice de participação popular que era menor apenas que o dos EUA) que, com todos os seus problemas, era considerado o mais livre da América do Sul; a imprensa era verdadeiramente livre, não existindo presos políticos ou grupos paramilitares a tentar tomar o poder; o regime político era tão estável que, desde 1848, não se via qualquer instabilidade política, o que tornou o Segundo Reinado a era mais pacífica e estável da história do Brasil. Claro que a Monarquia realmente tornara-se obsoleta. Sua obra foi construir o Estado nacional em um país que ameaçava, em 1840, dividir-se sangrentamente em várias republiquetas; mas, esgotada tal missão, foi incapaz de se modernizar a tempo, abolindo a escravidão mais cedo e promovendo reformas políticas e econômicas no tempo devido. De qualquer forma, o sistema político se tornou apodrecido e não acompanhou o progresso do país, o que explica sua queda absolutamente calma.

Contudo, a República proclamada nasceu sob o estigma do autoritarismo e da repressão. Os monarquistas foram perseguidos, jornais fechados, milhares de pessoas foram presas e mortas arbitrariamente e, como a população era analfabeta e não poderia ter se organizado, a República acabou se impondo facilmente; ela não foi, de forma alguma, fundada com base nos nobres ideais de transparência e democracia, mas para, justamente, evitar (esse era o objetivo dos conspiradores positivistas, que desfecharam o Golpe) que as reformas liberais pretendidas por Ouro Preto realmente possibilitassem às classes populares algum vetor para expressar-se politicamente (na República, em média, apenas 2-3% da população participava do processo eleitoral e, mesmo assim, sob o signo do voto de cabresto, da fraude eleitoral e da compra de votos) em apoio ao imperador. Em suma, se tratou de, mais uma vez, evitar que a população pudesse participar das grandes decisões sobre seu próprio país. Mas, depois da "casa ser limpa'', o Estado foi ocupado pelos paulistas e mineiros, bem como outras elites regionais. 

O Estado brasileiro terminou privatizado pelas elites e os positivistas voltaram aos quarteis, sempre a espreita de uma nova chance para tomar o poder. O Brasil se tornou o "cafezal'' do mundo, tendo quase metade de suas receitas vinculadas ao ouro negro, em um regime oligárquico arbitrário, fortemente enraizado em castas, no clientelismo e no coronelismo, características coloniais que haviam sido sufocadas pelo centralismo imperial e que, com seu fim, estavam livres para se desenvolver, como cânceres, por todo o território nacional. 

Se hoje ainda temos uma classe e uma prática políticas marcadas pela extrema corrupção, bem como os "jeitinhos'' do presidencialismo de coalizão, e, das pequenas ilegalidades cometidas pelo brasileiro comum às mega-criminalidades das elites, tudo isso é devido à cultura imposta pela força combinada do exército e do latifúndio, que destruiram um Império que, comparado ao que viria a seguir, era muito melhor que a fera hedionda nascida da espada em riste de um Marechal doente, erguida dificultosamente, que estava mais preocupado com as dores de estômago e com o medo de ser preso ou ver um inimigo (por causa de um rabo-de-saia) no poder do que com o destino do país.

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