Olá, leitores! Segue abaixo um dos melhores textos que já li sobre a situação da pós-modernidade. Trata-se da transcrição de uma pequena conferência, ministrada pelo cardeal Dom Cláudio Hummes, ao clero de Garanhuns. Degustem e apreciem à vontade; acredito que se trata de tudo o que estamos tentando refletir aqui, desde a fundação do Blog.
CARDEAL DOM CLÁUDIO HUMMES
RETIRO PARA O CLERO DIOCESANO DE GARANHUNS
1ª. Conferência
A SITUAÇÃO DOS PRESBÍTEROS HOJE NO MUNDO
" Os
presbíteros no mundo constituem um imenso corpo de homens ordenados
que, em certo sentido, carregam sobre seus ombros quotidianamente a vida
eclesial, assim como ela acontece nas comunidades católicas locais, em
todos os Continentes. Eles são os pastores imediatos de nossa gente
nestas comunidades. Vivem e convivem ali com o povo. Ali evangelizam,
catequizam, pregam, em muitas e distintas formas, a Palvra de Deus às
pessoas, aos grupos e à sociedade. Eles são ali os que celebram a
liturgia, os sacramentos, principalmente a Eucaristia e o sacramento da
Penitência. São eles que reúnem a comunidade para as distintas formas de
oração e para programar e dinamizar a pastoral e a vida comunitária.
Eles mantêm a comunidade unida e constantemente reconciliam seus membros
com Deus e entre si. Eles ensinam, encorajam, orientam e organizam a
comunidade para a caridade fraterna, a solidariedade com os pobres, a
defesa da dignidade humana igual para todos. Eles, geralmente, promovem a
ação e o testemunho cristão dos membros da própria comunidade na
sociedade, à luz do Evangelho.
Os presbíteros, porém, fazem viver e resplandecer a Igreja não só pelo
que fazem, mas também pelo que são. De fato, eles também fortalecem a
Igreja na sociedade com seu exemplo de fé, com sua vida evangélica e
missionária, vida de comunhão eclesial, vida espiritual, oração, amor a
Deus e aos irmãos, especialmente aos pobres, vida de despojamento e
humildade, vida eucarística, vida totalmente consagrada a serviço de
Cristo e do povo, na esperança do Reino futuro e definitivo de Deus, já a
caminho na história.
Na verdade, a Igreja deve muito aos presbíteros e, por esta razão, deve amá-los, apoiá-los, reconhecer seu serviço e
sua dedicação, animá-los quando estão cansados, doentes o desanimados,
alegrar-se com eles quando seu ministério floresce e frutifica,
oferecer-lhes sempre, na medida do possível, as condições necessárias
para viver com dignidade e eficácia sua vocação e missão.
Todos sabemos, e a experiência diária demonstra, que a Igreja caminha
em grande parte com os pés dos presbíteros. Quando eles param, a Igreja
tem dificuldade de caminhar. Quando eles se movem, a Igreja se move.
Hoje, contudo, os presbíteros enfrentam dificuldades novas para viver
sua vocação e missão. Ocorre que vivemos num momento histórico de
mudança de cultura. A nova cultura adveniente e sempre mais dominante no
mundo, a partir do Ocidente, a chamada cultura pós-moderna, vai se
difundindo universalmente, sobretudo através dos grandes meios globais
de comunicação e da mobilidade humana sempre mais facilitada entre os
povos. Essa nova cultura já não acolhe os presbíteros como outrora,
porque é uma cultura a-religiosa, quando não agressivamente
anti-religiosa.
É verdade
que na América Latina, portanto também no Brasil, e outras partes do
mundo, ainda encontramos forte presença de culturas historicamente
anteriores. De fato, no Brasil remanescem, junto com a cultura
pós-moderna, as antigas culturas rurais, indígenas e africanas,
tradicionais e religiosas. Contudo, cada vez mais domina a cultura
pós-moderna, urbana, globalizada, progressista, pluralista, relativista,
agnóstica, secularizada, laicizada e às vezes laicista, mediática,
moralmente liberalizada e filotransgressiva (i.é, aplaude-se a
trangressão moral!). Essa cultura sempre mais dominante, além disso, se
insere numa sociedade da ciência (cientificismo) e da tecnologia
(tecnologismo), uma sociedade do poder do conhecimento
(científico-técnico), das comunicações (informática) e do espetáculo
(show), que por sua vez nutre tal cultura. Todas estas características
não são apenas uma lista de palavras, mas caracterizam realmente a
cultura chamada pós-moderna, características que nos permitem comprender
por quê nossos presbíteros têm novas dificuldades para viver hoje sua
vocação e missão.
Para
situar-nos melhor, lancemos uma olhada rápida e sintética sobre estas
características da nova cultura. Iniciemos com alguns componentes
fundamentais da cultura moderna, a qual está na raiz da cultura
pós-moderna.
A Idade Média
foi superada, aos poucos, quando despertou uma nova consciência na
sociedade europea, em busca da emancipação, que significaria libertar-se
de todas as tutelas. Era o nascer de uma nova consciência sobre a
dignidade igual de todos os homens, rumo à definição do que se chamou os
direitos humanos. De um lado, uma nova consciência dos leigos que
pretendia libertar-se intelectualmente da tutela intelectual da Igreja,
de outro lado o povo que pretendia libertar-se politicamente da tutela
das monarquias absolutas e hereditárias. Era uma consciência do direito à
liberdade e à autonomia, junto com uma consciência da capacidade da
razão humana de buscar a verdade e consequentemente areivindicação
da supremacia das verdades racionais e científicas frente às verdades
da fé religiosa.
Começava o conflito entre fé e razão.
De fato, o mundo
da cultura inteletual, que até então, historicamente, estava em grande
parte nas mãos dos Clérigos, começou a produzir cada vez mais
personalidades leigas que sobressaíam no campo do progresso das
investigações filosóficas e das novas ciências naturais e matemáticas,
mediante novos e eficazes métodos de pesquisa, que produziram um
vertiginoso e impressionante progresso. No mundo religioso, além do
movimento dos assim chamados livre-pensadores e enciclopedistas, entre
outros, a Reforma Protestante significará principalmente libertar-se
religiosamente da tutela do papado de Roma. No universo político, a
Revolução Francesa (por assim dizer, a mãe de todas as revoluções
modernas de emancipação e libertação) significou a grande e sanguinária
mudança política da monarquia para a democracia e ao mesmo tempo o
repúdio da tutela da Igreja ("liberdade, igualdade e fraternidade", era o
lema da revolução).
Havia nascido
uma nova cultura: a cultura moderna, a modernidade. Kant, um dos maiores
expoentes da filosofia moderna, exortava: "Sapere aude!" ("Ouse saber!" i.é, tenha a coragem, você mesmo, de saber a verdade, independentemente do saber dos Clérigos!).
O centro da modernidade está no descobrimento da subjetividade. Um de seus momentos fundantes foi o cogito ergo sum,
de Descartes. Esta afirmação filosófica constitue uma das contribuições
determinantes do desenvolvimento de toda a cultura moderna,
principalmente da filosofia moderna. A centralidade do sujeito humano,
ou seja, o antropocentrismo na visão do mundo, produz todo o movimento
moderno de emancipação que invadirá a humanidade dali para frente. As
revoluções políticas e sociais, como a Revolução Francesa e a Revolução
Russo-soviética comunista, e mais adiante as guerras de libertação
colonialista, alimentaram-se todas nesta matriz moderna. Trata-se, como
já dito, do repúdio de toda e qualquer forma de tutela e dominação sobre
o sujeito humano, tanto a tutela política quanto a religiosa, a
ideológica, a cultural e a econômica. Desse modo, a autonomia do sujeito
humano se converteu em dogma moderno fundamental e fundante. Junto com a
autonomia, surgiu o culto da razão humana como única verdadeira luz do
sujeito humano na busca da verdade e da moral.
Não é a fé religiosa, mas
unicamente a razão que é capaz de iluminar verdadeiramente os caminhos e
a vida do homem. A razão exige ser reconhecida como adulta e capaz de
explicar tudo. Ela é a luz de todo homem. Daí, a denominação de "ilustração", "iluminismo" e "século das luzes"
que esta nova cultura ostenta. Assim, a modernidade torna-se o contexto
de um típico racionalismo, cada vez mais absoluto e cientificista. A fé
religiosa é rejeitada como não provada racionalmente. Rechaça-se a
transcendência divina e encerra-se o homem na imanência da história
terrena. Acusa-se a Igreja de querer tutelar os homens para seus
próprios interesses, mediante o domínio da verdade, das consciências e
da instrução, para impedir que os homens cheguem à verdade, à liberdade e
à autonomia (autos-nomos: o homem, norma última de si mesmo) através da luz de sua própria razão.
Contudo, os direitos humanos, a liberdade, a autonomia, as estupendas capacidades da razão humana são valores que
a modernidade tomou em grande parte do cristianismo, mas em geral os
distorceu, absolutizou, encerrou na imanência e interpretou em chave
subjetivista, despojando-os de seu caráter originário e cristão de uma
relação necessária de reconhecimento e amor para com Deus e de amor e
corresponsabilidade para com o próximo. Aliás, uma análise mais profunda
e mais objetiva da Idade Média mostrará que as acusações de
autoritarismo e paternalismo da Igreja levantadas pela modernidade não
são sempre verdadeiras ou por vezes são exageradas ou
descontextualizadas. Todavia, deve-se reconhecer o grande progresso
científico e tecnológico, nascido da modernidade. Além disso, a
democracia, os direitos humanos, a emancipação das colônias no assim
chamado Novo Mundo das Américas e nos países pobres da África e da Ásia,
o direito universal à auto-determinação dos povos, e outros, foram
frutos importantes da consciência moderna. O mesmo deve-se reconhecer
nos movimentos de promoção da justiça social.
De todas estas mudanças e avanços nasceu a moderna crença no progresso.
Foi um entusiasmado otimismo sobre as capacidades humanas de encontrar,
finalmente, para toda a humanidade o caminho do bem-estar e da
liberdade, através da ciência e da tecnologia, sem a religião. Nesta
busca, surgiram, como filhas da modernidade, as grandes ideologias
socio-políticas dos últimos séculos – as grande visões ou relatos, como
outros as chamam! – que se apresentaram como verdades totalizadoras,
absolutas, universais, imanentes e estruturadas em sistemas, para a
libertação e a salvação da humanidade. Há ideologias de esquerda e de
direita como são principalmente o comunismo marxista e o capitalismo
liberal, mas também o nazi-fascismo. Todos quiseram ser a fórmula
segura e única de um incessante progresso e da libertação do homem de
todos os seus problemas.
Em
tal contexto, cada uma das novas ideologias, que lutavam entre si e se
excluiam reciprocamente, tratou de apoderar-se de resultados das novas
ciências e da tecnologia para impor sua verdade à sociedade humana. Foi
um período histórico de grandes conflitos entre as ideologias e seus
experimentos de libertação. Mas os resultados foram uma enorme
desilusão, porque profundamente negativos e devastadores. Em vez de
criar progresso e libertação, conduziram a humanidade a tragédias
inauditas, nunca antes imaginadas, como foram a Revolução Francesa, a
Revoluação Comunista na Rússia e países satelites, as duas Guerras
Mundiais com todos os horrores do nazismo, do fascismo e do comunismo,
sem esquecer as terríveis guerras regionais no Vietnã, no Camboja, na
Corea, em muitas novas nações da África, do Médio Oriente e, atualmente,
o terrorismo. O capitalismo liberal, em especial, sobrevivendo ao
comunismo e ao nazi-fascismo, desenvolvendo-se em novas formas na atual
ordem mudial globalizada de mercados abertos e livres, foi e continua
sendo um dos fatores determinantes da origem e da manutenção da pobreza,
da miséria e do retrocesso econômico e social de muitos povos de nosso
Planeta. Todas estas tragédias representaram o desmascaramento e o
fracasso colossal das grandes ideologias modernas.
Tudo isso teve um impacto pesadamente negativo e intensamente
desilusório sobre a sociedade humana e sua confiança nas "luzes" da
razão humana. Tal desilusão está na raiz da crise da modernidade e o
consequente passo para o nascimento de uma nova cultura, a cultura
pós-moderna, hoje cada vez mais dominante e que, a partir do Ocidente,
onde nasceu, se difunde universalmente. A característica principal dessa
nova cultura é a desilusão acerca das "luzes" absolutas da razão
humana, experssadas de modo pradigmático nas grandes verdades
totalizadoras das ideologias. Desconfia-se do otimismo moderno e de sua
crença num progresso incessante econtínuo da humanidde. Mesmo assim,
deve continuar claro que isso não quer dizer o abandono da convicção
moderna sobre a razão humana como única luz do homem. O novo
entendimento da pós-modernidade continua afirmando a razão como única
luz, mas uma luz que nos pode oferecer apenas um relativismo e portanto
não uma verdade absoluta e universal. Ou seja, o relativismo é a única
possibilidade do homem acerca da verdade fundamental e universal, que
deveria dar sentido à existência humana e à história. Portanto, ninguém
pode arrogar-se conhecer o sentido verdadeiro e último de tudo o que
existe. Neste campo, a verdade será sempre relativa, isto é, cada um tem
e pode ter a sua verdade, mas não uma verdade absoluta, válida para
todos. O que a pós-modernidade nega é a possibilidade humana de
alcançar a verdade fundamental e fundante do sentido último e universal
da vida do ser humano e da história, a verdade que se impõe por si mesma
a todos, a verdade trascendente e absoluta, e portanto nega também a
verdade religiosa. O relativismo será a afirmação central e determinante
da cultura pós-moderna. De resto, as verdades científicas continuam
sendo as únicas verdades alcançáveis, mas não chegam ao campo do sentido
último de tudo o que existe.
A verdade é relativa, isso significaque cada um tem a sua verdade, sem poder pretender que ela seja a verdade do outro
ou de todos os outros. Surge então o agnosticismo: não sabemos se Deus
existe ou não, se há uma verdade absoluta e universal ou não, se há uma
moral universal ou não. Tenho que respeitar a verdade dos outros e
solicitar que seja respeitada também a minha verdade. Mais ainda, a
cultura pós-moderna suspeita que a pretensão de ter a verdade universal e
absoluta pode conduzir à violência, no sentido que os portadores da
pretensa verdade verdadeira, absoluta e universal, queiram impor sua
verdade a todos e possam decidir fazê-lo por uma imposição violenta.
Apela-se à história, para dizer que as guerras religiosas são a prova
desta suspeita. Assim, o relativismo rechaça as religiões e
simultanemanete toda forma de verdade metafísica e absoluta. Nos
fundamentos e nas consequências do relativismo, nega-se Deus. Na análise
sobre a negativa da Constiuição europea de referir-se às raízes cristãs
da Europa, o então Cardeal Ratzinger, hoje Bento XVI, disse: "A
afirmação que a menção das raízes cristãs da Europa fere os sentimentos
de muitos não-cristãos que há na Europa, é pouco convincente, visto que
se trata sobretudo de um fato histórico que ninguém pode seriamente
negar". [...] "O rechaço da referência a Deus, não é expressão de uma
tolerância que queira proteger as religiões não teístas e a dignidade
dos ateus e agnósticos, mas é, sobretudo, expressão de uma consciência
que quer ver Deus riscado definitivamente da vida pública da humanidade e
colocado no âmbito subjetivo de culturas residuais do passado. O
relativismo, que constitui o ponto de partida de tudo isso, se converte
assim em um dogmatismo que se crê de posse do definitivo conhecimento da
razão e no direito de considerar todo o resto somente como um estágio
da humanidade fundamentalmente superado e que pode ser adequadamente
relativizado" (J.Ratzinger, L'Europa di Benedetto nella crisi delle culture, 2005, p. 39 e p. 54-55).
Ademais, na medida em que a humanidade rechaça a verdade sobre Deus,
perde também a verdade sobre o ser humano e sobre o mundo, ou seja,
perde o sentido de tudo. Em decorrência, hoje muitos se perguntam pelo
sentido de sua vida ou até mesmo tem medo de fazer a pergunta. É o que
hoje se chama de "pensamento débil", isto é, um pensamento que já não
pretende chegar à verdade absoluta e fundamental ou mesmo tem medo de
uma verdade absoluta ou está decepcionado, e assim perdeu a paixão pela
verdade. O homem, então, se auto-comprende como "uma paixão inútil"
(Sartre). Na verdade, isso tudo representa um grande retrocesso, posto
que a paixão pela verdade, a
busca da verdade, é constitutiva do ser humano e o itinerário desta busca humaniza o homem e o conduz à sua realização verdadeira e a uma libertação autêntica e integral.
busca da verdade, é constitutiva do ser humano e o itinerário desta busca humaniza o homem e o conduz à sua realização verdadeira e a uma libertação autêntica e integral.
O relativismo no campo do pensamento trouxe consigo, obviamente, o
relativismo no campo moral. As normas morais são interpretadas como
relativistas, ou seja, não há mais normas morais absolutas, universais,
válidas para todos e em todos os tempos e lugares. Ao contrário, o
sujeito humano individual ou o consenso do grupo são o último critério
para definir a moral.
Em sua homilia nas exéquias de João Paulo II (8.4.2005) o então ainda Cardeal Ratzinger, hoje Papa, analisando a sociedade
atual imersa no relativismo, disse: "A quem tem uma fé clara, segundo o
Credo da Igreja, frequentemente se aplica a etiqueta de
fundamentalista, ao passo que o relativismo, isto é, o deixar-se "levar
por qualquer vento de doutrina", parece ser a única atitude adequada nos
tempos atuais. Vai-se constituindo um ditadura do relativismo que não
reconhece nada como definitivo e que deixa como último critério somente o
próprio eu e seus caprichos".
De fato, no que se refere à religião,estamos hoje e cada vez mais,
diante de uma mentalidade e uma praxis que estão determinadas por um
secularismo crescente, um laicismo militante, um materialismo prático,
um pluralismo religioso em forte crescimento e, portanto, também um
individualismo e subjetivismo de uma atitude religiosa do "faça-o você
mesmo!" Por outro lado, a cultura pós-moderna, imersa num relativismo
erosivo, favorece um imediatismo imanente no mundo, que se afasta de
toda realidade metafísica ou religiosa, de todo projeto de vida a longo
prazo e não
espera uma realidade definitivo-escatológica depois da vida terrena, um culto do corpo jovem e perfeito, uma prioridade das sensações, das emoções e do desejo ( a tal ponto que os desejos pretendem converter-se em direitos!). No fundo, é uma cultura niilista ("nihilista"), isto é, não é capaz de apresentar algo ou alguém por quem valha a pena investir toda a minha vida. Ou seja, não existe nada nem ninguém pelo qual valha a pena viver ou morrer. A vida está vazia de qualquer sentido verdadeiro.
espera uma realidade definitivo-escatológica depois da vida terrena, um culto do corpo jovem e perfeito, uma prioridade das sensações, das emoções e do desejo ( a tal ponto que os desejos pretendem converter-se em direitos!). No fundo, é uma cultura niilista ("nihilista"), isto é, não é capaz de apresentar algo ou alguém por quem valha a pena investir toda a minha vida. Ou seja, não existe nada nem ninguém pelo qual valha a pena viver ou morrer. A vida está vazia de qualquer sentido verdadeiro.
Tal contexto desenvolve o materialismo consumista desenfreado de nossos
tempos. Se não existe verdadeiro futuro, se não há nada pelo qual valha
a pena construir um projeto de vida a longo prazo, então cada um deve
tratar de aproveitar ao máximo o momento presente. Assim, o dinheiro se
converte no valor mais desejável, porque oferece a possibilidade de
consumir imediatamente e cada vez mais, de gozar, de gastar, de
adquirir. O valor de cada um numa tal sociedade mede-se por seu poder
aquisitivo e de consumo. Relacionado com o consumo aparece o espetáculo.
Existe hoje uma tendência de transformar tudo em espetáculo, a ser, por
sua vez, consumido pelos indivíduos e pelas multidões. Tudo se resume a
tirar o máximo de satisfação do momento presente, sem esperanças nem
grandes responsabilidades. No contexto do niilismo, o espetáculo, o
show, se apresentam como diversão e fuga, em que a realidade em seu cru
não-sentido é gozada e depois descartada. Com ela são descartadas a
responsabilidade e a seriedade diante da vida, da história e do futuro.
Se não existe uma verdade verdadeira e universal, se não existe um Deus,
se a realidade, em seu cerne mais profundo, não tem um sentido, então o
espetáculo se converte em verdadeira natureza da realidade.
No contexto do niilismo entra também oconsumo das drogas, o crescimento
da violência, o
desprezo pela vida humana, o sexo sem responsabilidade e
desvinculado do amor e da geração de novas vidas humanas, o
enfraquecimento da estrutura familiar.
Outro aspecto da cultura atual é sua caraterística mediática, telemática e virtual, que tem na Internet uma de suas formas
mais eficazes e universais. A Internet é um dos principais fatores de
mudança, tanto na vida das pessoas como da sociedade. Cada dia se
descobrem mais as possibilidades da Internet nos diversos ambientes:
como meio de relacão, de informação, de lazer, de divertimento, de
descanso, de trabalho, de comércio, de arte, de expressão de emoções e
de sentimentos... e também de formação. Seu alcance é qualquer tema,
qualquer momento e qualquer lugar. As tecnologias de telecomunicação –
como na Internet - produzem um mundo virtual em que as noções de espaço e
tempo, de identidade e comportamento social "adequado" são mudadas.
Outro fenômeno que caracteriza nossa cultura atual é a globalização, tornada possível justamente pelo gigantesco desenvolvimento
das tele-comunicações e se apresenta com uma expressão exponencial e um
pretendido avanço do mundo atual. O "Documento de Aparecida. Texto
conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do
Caribe" (DA) diz: "O Papa, em seu Discurso Inaugural, vê a globalização
como um fenômeno "de relações de nível planetário, considerando-o "uma
conquista da família humana, porque favorece o acesso a novas
tecnologias, mercados e finanças. [...] Ao mesmo tempo, a globalização
se manifesta como a profunda aspiração do gênero humano à unidade. Não
obstante esses avanços, o Papa também assinala que a globalização
"comporta o risco dos grandes monopólios e de converter o lucro em valor
supremo". Por isso, Bento XVI enfatiza que "como em todos os campos da
atividade humana, a globalização deve reger-se também pela ética,
colocando tudo a serviço da pessoa humana, criada à imagem e semelhança
de Deus" (DA, n.60).
Para
melhor completar o quadro das mudanças culturais, convém lembrar que,
sobretudo na América Latina, junto com a cultura pós-moderna, urbana e
secularizada, subsiste ainda uma cultura agrária e popular, por vezes
com características de cultura miscigenada, em que a fé católica foi
inculturada, manifestando-se principalmente na religiosidade popular, de
tal modo que o catolicismo aparece como uma espécie de alma profunda
dos latino-americanos. Esta cultura todos a conhecemos e quiçá a maioria
de nós nela foi educada. Contudo, a cultura pós-moderna vem com grande
força e muda cada vez mais nossa gente simples, através da expansão dos
grandes meios de comunicação – a mídia – presentes até nas regiões mais
remotas de nosso País.
Este é, em
breve síntese, o contexto cultural em que vivemos hoje. Também o
presbítero nele vive e exerce seu ministério. É nesta sociedade de
grandes e rápidas mudanças que o presbítero deve contextualizar sua
identidade presbiteral e seu ministério pastoral e missionário. As
mudanças culturais atuam sobre todos nós. Bento XVI mais vezes tem dito
que o relativismo também penetra na Igreja. É óbvio, porque não vivemos
no abstrato, mas somos filhos e construtores da história e por isso
marcados pela cultura do respectivo momento histórico. Ademais, nunca a
história humana foi tão veloz e dinâmica como hoje. Isto exige da nossa
parte uma constante e lúcida atualização. O sacerdote é guia espiritual
de nossa gente e não pode ser um guia cego. Conhecer mais profundamente a
cultura que aí está, suas origens e história, ajuda em primeiro lugar o
próprio padre a conhecer-se a si mesmo melhor e descobrir por que pensa
hoje diferente de décadas atrás, por que se comporta diferente, por que
faz perguntas diferentes, por que corre o risco de relativizar o que
não é relativo, por que corre o risco de subjetivizar totalmente sua
visão moral, por que tende a falar somente de alguns temas do Evangelho e
não de outros, por que corre o risco de não aceitar suficientemente
compromissos assumidos para a vida inteira, e assim por diante. Ao mesmo
tempo, o sacerdote percebe como necessita hoje de uma espiritualidade
mais vigorosa e aprofundada, visto que esta sociedade não lhe oferece
mais um apoio como outrora e às vezes com desdém lhe mostra as costas.
Em segundo lugar, o melhor conhecimento da atual cultura ajuda o
sacerdote a conhecer a sociedade atual, as pessoas de hoje, que ele deve
evangelizar.
Mas esta nova
cultura tem alguma abertura para receber o Evangelho? Com certeza.
Nenhuma cultura humana é totalmente errônea, pervertida ou má. Todas tem
sementes de bem e de verdade, que uma evangelização pode fertilizar e
levar a seu pleno desenvolvimento. Todas as culturas podem passar pelo
processo pascal de Jesus Cristo e, sem deixarem de ser elas mesmas,
serem evangelizadas e tornarem-se, por assim dizer, discípulas de Jesus
Cristo, que veio para salvar todo o gênero humano. Às vezes, corremos a
tentação de demonizar a atual cultura. Jesus Cristo, ao contrário,
disse: "Não vim para condenar o mundo, mas para salvar o mundo" (Jo
12,47).
Obrigado pela atenção!''
Fonte: HUMMES, Cláudio Cardeal. A situação dos presbíteros no mundo. Disponível em: http://www.diocesegaranhuns.org/site/exibenoticia.php?top_id=121 . Acesso em 16 de novembro de 2012.
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