sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A Igreja Católica e a pós-modernidade, por Dom Cláudio Hummes

Olá, leitores! Segue abaixo um dos melhores textos que já li sobre a situação da pós-modernidade. Trata-se da transcrição de uma pequena conferência, ministrada pelo cardeal Dom Cláudio Hummes, ao clero de Garanhuns. Degustem e apreciem à vontade; acredito que se trata de tudo o que estamos tentando refletir aqui, desde a fundação do Blog. 


CARDEAL DOM CLÁUDIO HUMMES
RETIRO PARA O CLERO DIOCESANO DE GARANHUNS


1ª. Conferência
A SITUAÇÃO DOS PRESBÍTEROS HOJE NO MUNDO

        " Os presbíteros no mundo constituem um imenso corpo de homens ordenados que, em certo sentido, carregam sobre seus ombros quotidianamente a vida eclesial, assim como ela acontece nas comunidades católicas locais, em todos os Continentes. Eles são os pastores imediatos de nossa gente nestas comunidades. Vivem e convivem ali com o povo. Ali evangelizam, catequizam, pregam, em muitas e distintas formas, a Palvra de Deus às pessoas, aos grupos e à sociedade. Eles são ali os que celebram a liturgia, os sacramentos, principalmente a Eucaristia e o sacramento da Penitência. São eles que reúnem a comunidade para as distintas formas de oração e para programar e dinamizar a pastoral e a vida comunitária. Eles mantêm a comunidade unida e constantemente reconciliam seus membros com Deus e entre si. Eles ensinam, encorajam, orientam e organizam a comunidade para a caridade fraterna, a solidariedade com os pobres, a defesa da dignidade humana igual para todos. Eles, geralmente, promovem a ação e o testemunho cristão dos membros da própria comunidade na sociedade, à luz do Evangelho.
         
       Os presbíteros, porém, fazem viver e resplandecer a Igreja não só pelo que fazem, mas também pelo que são. De fato, eles também fortalecem a Igreja na sociedade com seu exemplo de fé, com sua vida evangélica e missionária, vida de comunhão eclesial, vida espiritual, oração, amor a Deus e aos irmãos, especialmente aos pobres, vida de despojamento e humildade, vida eucarística, vida totalmente consagrada a serviço de Cristo e do povo, na esperança do Reino futuro e definitivo de Deus, já a caminho na história.
         
      Na verdade, a Igreja deve muito aos presbíteros e, por esta razão, deve amá-los, apoiá-los, reconhecer seu serviço e sua dedicação, animá-los quando estão cansados, doentes o desanimados, alegrar-se com eles quando seu ministério floresce e frutifica, oferecer-lhes sempre, na medida do possível, as condições necessárias para viver com dignidade e eficácia sua vocação e missão.
         
        Todos sabemos, e a experiência diária demonstra, que a Igreja caminha em grande parte com os pés dos presbíteros. Quando eles param, a Igreja tem dificuldade de caminhar. Quando eles se movem, a Igreja se move. Hoje, contudo, os presbíteros enfrentam dificuldades novas para viver sua vocação e missão. Ocorre que vivemos num momento histórico de mudança de cultura. A nova cultura adveniente e sempre mais dominante no mundo, a partir do Ocidente, a chamada cultura pós-moderna, vai se difundindo universalmente, sobretudo através dos grandes meios globais de comunicação e da mobilidade humana sempre mais facilitada entre os povos. Essa nova cultura já não acolhe os presbíteros como outrora, porque é uma cultura a-religiosa, quando não agressivamente anti-religiosa.

         É verdade que na América Latina, portanto também no Brasil, e outras partes do mundo, ainda encontramos forte presença de culturas historicamente anteriores. De fato, no Brasil remanescem, junto com a cultura pós-moderna, as antigas culturas  rurais, indígenas e africanas, tradicionais e religiosas. Contudo, cada vez mais domina a cultura pós-moderna, urbana, globalizada, progressista, pluralista, relativista, agnóstica, secularizada, laicizada e às vezes laicista, mediática, moralmente liberalizada e filotransgressiva (i.é, aplaude-se a trangressão moral!). Essa cultura sempre mais dominante, além disso, se insere numa sociedade da ciência (cientificismo) e da tecnologia (tecnologismo), uma sociedade do poder do conhecimento (científico-técnico), das comunicações (informática) e do espetáculo (show), que por sua vez nutre tal cultura. Todas estas características não são apenas uma lista de palavras, mas caracterizam realmente a cultura chamada pós-moderna, características que nos permitem comprender por quê nossos presbíteros têm novas dificuldades para viver hoje sua vocação e missão.

         Para situar-nos melhor, lancemos uma olhada rápida e sintética sobre estas características da nova cultura. Iniciemos com alguns componentes fundamentais da cultura moderna, a qual está na raiz da cultura pós-moderna.

         A Idade Média foi superada, aos poucos, quando despertou uma nova consciência na sociedade europea, em busca da emancipação, que significaria libertar-se de todas as tutelas. Era o nascer de uma nova consciência sobre a dignidade igual de todos os homens, rumo à definição do que se chamou os direitos humanos. De um lado, uma nova consciência dos leigos que pretendia libertar-se intelectualmente da tutela intelectual da Igreja, de outro lado o povo que pretendia libertar-se politicamente da tutela das monarquias absolutas e hereditárias. Era uma consciência do direito à liberdade e à autonomia, junto com uma consciência da capacidade da razão humana de buscar a verdade e consequentemente areivindicação da  supremacia das verdades racionais e científicas frente às verdades da fé religiosa. 

            Começava o conflito entre fé e razão.  

          De fato, o mundo da cultura inteletual, que até então, historicamente, estava em grande parte nas mãos dos Clérigos, começou a produzir cada vez mais personalidades leigas que sobressaíam no campo do progresso das investigações filosóficas e das novas ciências naturais e matemáticas, mediante novos e eficazes métodos de pesquisa, que produziram um vertiginoso e impressionante progresso. No mundo religioso, além do movimento dos assim chamados livre-pensadores e enciclopedistas, entre outros, a Reforma Protestante significará principalmente libertar-se religiosamente da tutela do papado de Roma. No universo político, a Revolução Francesa (por assim dizer, a mãe de todas as revoluções modernas de emancipação e libertação) significou a grande e sanguinária mudança política da monarquia para a democracia e ao mesmo tempo o repúdio da tutela da Igreja ("liberdade, igualdade e fraternidade", era o lema da revolução).

         Havia nascido uma nova cultura: a cultura moderna, a modernidade. Kant, um dos maiores expoentes da filosofia moderna, exortava: "Sapere aude!" ("Ouse saber!" i.é, tenha a coragem, você mesmo, de saber a verdade, independentemente do saber dos Clérigos!).

         O centro da modernidade está no descobrimento da subjetividade. Um de seus momentos fundantes foi o cogito ergo sum, de Descartes. Esta afirmação filosófica constitue uma das contribuições determinantes do desenvolvimento de toda a cultura moderna, principalmente da filosofia moderna. A centralidade do sujeito humano, ou seja, o antropocentrismo na visão do mundo, produz todo o movimento moderno de emancipação que invadirá a humanidade dali para frente. As revoluções políticas e sociais, como a Revolução Francesa e a Revolução Russo-soviética comunista, e mais adiante as guerras de libertação colonialista, alimentaram-se todas nesta matriz moderna. Trata-se, como já dito, do repúdio de toda e qualquer forma de tutela e dominação sobre o sujeito humano, tanto a tutela política quanto a religiosa, a ideológica, a cultural e a econômica. Desse modo, a autonomia do sujeito humano se converteu em dogma moderno fundamental e fundante. Junto com a autonomia, surgiu o culto da razão humana como única verdadeira luz do sujeito humano na busca da verdade e da moral. 

       Não é a fé religiosa, mas unicamente a razão que é capaz de iluminar verdadeiramente os caminhos e a vida do homem. A razão exige ser reconhecida como adulta e capaz de explicar tudo. Ela é a luz de todo homem. Daí, a denominação de "ilustração",  "iluminismo" e "século das luzes" que esta nova cultura ostenta. Assim, a modernidade torna-se o contexto de um típico racionalismo, cada vez mais absoluto e cientificista. A fé religiosa é rejeitada como não provada racionalmente. Rechaça-se a transcendência divina e encerra-se o homem na imanência da história terrena. Acusa-se a Igreja de querer tutelar os homens para seus próprios interesses, mediante o domínio da verdade, das consciências e da instrução, para impedir que os homens cheguem à verdade, à liberdade e à autonomia (autos-nomos: o homem, norma última de si mesmo) através da luz de sua própria razão.

         Contudo, os direitos humanos, a liberdade, a autonomia, as estupendas capacidades da razão humana são valores que a modernidade tomou em grande parte do cristianismo, mas em geral os distorceu, absolutizou, encerrou na imanência e interpretou em chave subjetivista, despojando-os de seu caráter originário e cristão de uma relação necessária de reconhecimento e amor para com Deus e de amor e corresponsabilidade para com o próximo. Aliás, uma análise mais profunda e mais objetiva da Idade Média mostrará que as acusações de autoritarismo e paternalismo da Igreja levantadas pela modernidade não são sempre verdadeiras ou por vezes são exageradas ou descontextualizadas. Todavia, deve-se reconhecer o grande progresso científico e tecnológico, nascido da modernidade. Além disso, a democracia, os direitos humanos, a emancipação das colônias no assim chamado Novo Mundo das Américas e nos países pobres da África e da Ásia, o direito universal à auto-determinação dos povos, e outros, foram frutos importantes da consciência moderna. O mesmo deve-se reconhecer nos movimentos de promoção da justiça social.

         De todas estas mudanças e avanços nasceu a moderna crença no progresso. Foi um entusiasmado otimismo sobre as capacidades humanas de encontrar, finalmente, para toda a humanidade o caminho do bem-estar e da liberdade, através da ciência e da tecnologia, sem a religião. Nesta busca, surgiram, como filhas da modernidade, as grandes ideologias socio-políticas dos últimos séculos – as grande visões ou relatos, como outros as chamam! – que se apresentaram como verdades totalizadoras, absolutas, universais, imanentes e estruturadas em sistemas, para a libertação e a salvação da humanidade. Há ideologias de esquerda e de direita como são principalmente o comunismo marxista e o capitalismo liberal,  mas também o nazi-fascismo. Todos quiseram ser a fórmula segura e única de um incessante progresso e da libertação do homem de todos os seus problemas.

         Em tal contexto, cada uma das novas ideologias, que lutavam entre si e se excluiam reciprocamente, tratou de apoderar-se de resultados das novas ciências e da tecnologia para impor sua verdade à sociedade humana. Foi um período histórico de grandes conflitos entre as ideologias e seus experimentos de libertação. Mas os resultados foram uma enorme desilusão, porque profundamente negativos e devastadores. Em vez de criar progresso e libertação, conduziram a humanidade a tragédias inauditas, nunca antes imaginadas, como foram a Revolução Francesa, a Revoluação Comunista na Rússia e países satelites, as duas Guerras Mundiais com todos os horrores do nazismo, do fascismo e do comunismo, sem esquecer as terríveis guerras regionais no Vietnã, no Camboja, na Corea, em muitas novas nações da África, do Médio Oriente e, atualmente, o terrorismo. O capitalismo liberal, em especial, sobrevivendo ao comunismo e ao nazi-fascismo, desenvolvendo-se em novas formas na atual ordem mudial globalizada de mercados abertos e livres, foi e continua sendo um dos fatores determinantes da origem e da manutenção da pobreza, da miséria e do retrocesso econômico e social de muitos povos de nosso Planeta. Todas estas tragédias representaram o desmascaramento e o fracasso colossal das grandes ideologias modernas.

         Tudo isso teve um impacto pesadamente negativo e intensamente desilusório sobre a sociedade humana e sua confiança nas "luzes" da razão humana. Tal desilusão está na raiz da crise da modernidade e o consequente passo para o nascimento de uma nova cultura, a cultura pós-moderna, hoje cada vez mais dominante e que, a partir do Ocidente, onde nasceu, se difunde universalmente. A característica principal dessa nova cultura é a desilusão acerca das "luzes" absolutas da razão humana, experssadas de modo pradigmático nas grandes verdades totalizadoras das ideologias. Desconfia-se do otimismo moderno e de sua crença num progresso incessante econtínuo da humanidde. Mesmo assim, deve continuar claro que isso não quer dizer o abandono da convicção moderna sobre a razão humana como única luz do homem. O novo entendimento da pós-modernidade continua afirmando a razão como única luz, mas uma luz que nos pode oferecer apenas um relativismo e portanto não uma verdade absoluta e universal. Ou seja, o relativismo é a única possibilidade do homem acerca da verdade fundamental e universal, que deveria dar sentido à existência humana e à história. Portanto, ninguém pode arrogar-se conhecer o sentido verdadeiro e último de tudo o que existe. Neste campo, a verdade será sempre relativa, isto é, cada um tem e pode ter a sua verdade, mas não uma verdade absoluta, válida para todos.  O que a pós-modernidade nega é a possibilidade humana de alcançar a verdade fundamental e fundante do sentido último e universal da vida do ser humano e da história, a verdade que se impõe por si mesma a todos, a verdade trascendente e absoluta, e portanto nega também a verdade religiosa. O relativismo será a afirmação central e determinante da cultura pós-moderna. De resto, as verdades científicas continuam sendo as únicas verdades alcançáveis, mas não chegam ao campo do sentido último de tudo o que existe.

         A verdade é relativa, isso significaque cada um tem a sua verdade, sem poder pretender que ela seja a verdade do outro ou de todos os outros. Surge então o agnosticismo: não sabemos se Deus existe ou não, se há uma verdade absoluta e universal ou não, se há uma moral universal ou não. Tenho que respeitar a verdade dos outros e solicitar que seja respeitada também a minha verdade. Mais ainda, a cultura pós-moderna suspeita que a pretensão de ter a verdade universal e absoluta pode conduzir à violência, no sentido que os portadores da pretensa verdade verdadeira, absoluta e universal, queiram impor sua verdade a todos e possam decidir fazê-lo por uma imposição violenta. Apela-se à história, para dizer que as guerras religiosas são a prova desta suspeita. Assim, o relativismo rechaça as religiões e simultanemanete toda forma de verdade metafísica e absoluta. Nos fundamentos e nas consequências do relativismo, nega-se Deus. Na análise sobre a negativa da Constiuição europea de referir-se às raízes cristãs da Europa, o então Cardeal Ratzinger, hoje Bento XVI, disse: "A afirmação que a menção das raízes cristãs da Europa fere os sentimentos de muitos não-cristãos que há na Europa, é pouco convincente, visto que se trata sobretudo de um fato histórico que ninguém pode  seriamente negar". [...] "O rechaço da referência a Deus, não é expressão de uma tolerância que queira proteger as religiões não teístas e a dignidade dos ateus e agnósticos, mas é, sobretudo, expressão de uma consciência que quer ver Deus riscado definitivamente da vida pública da humanidade e colocado no âmbito subjetivo de culturas residuais do passado. O relativismo, que constitui o ponto de partida de tudo isso, se converte assim em um dogmatismo que se crê de posse do definitivo conhecimento da razão e no direito de considerar todo o resto somente como um estágio da humanidade fundamentalmente superado e que pode ser adequadamente relativizado" (J.Ratzinger, L'Europa di Benedetto nella crisi delle culture, 2005, p. 39 e p. 54-55).

         Ademais, na medida em que a humanidade rechaça a verdade sobre Deus, perde também a verdade sobre o ser humano e sobre o mundo, ou seja, perde o sentido de tudo. Em decorrência, hoje muitos se perguntam pelo sentido de sua vida ou até mesmo tem medo de fazer a pergunta. É o que hoje se chama de "pensamento débil", isto é, um pensamento que já não pretende chegar à verdade absoluta e fundamental ou mesmo tem medo de uma verdade absoluta ou está decepcionado, e assim perdeu a paixão pela verdade. O homem, então, se auto-comprende como "uma paixão inútil" (Sartre). Na verdade, isso tudo representa um grande retrocesso, posto que a paixão pela verdade, a
busca da verdade, é constitutiva do ser humano e o itinerário desta busca humaniza o homem e o conduz à sua realização verdadeira e a uma libertação autêntica e integral.

         O relativismo no campo do pensamento trouxe consigo, obviamente, o relativismo no campo moral. As normas morais são interpretadas  como relativistas, ou seja, não há mais normas morais absolutas, universais, válidas para todos e em todos os tempos e lugares. Ao contrário, o sujeito humano individual ou o consenso do grupo são o último critério para definir a moral.

         Em sua homilia nas exéquias de João Paulo II (8.4.2005) o então ainda Cardeal Ratzinger, hoje Papa, analisando a sociedade atual imersa no relativismo, disse: "A quem tem uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, frequentemente se aplica a etiqueta de fundamentalista, ao passo que o relativismo, isto é, o deixar-se "levar por qualquer vento de doutrina", parece ser a única atitude adequada nos tempos atuais. Vai-se constituindo um ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que deixa como último critério somente o próprio eu e seus caprichos".

      De fato, no que se refere à religião,estamos hoje e cada vez mais, diante de uma mentalidade e uma praxis que estão determinadas por um secularismo crescente, um laicismo militante, um materialismo prático, um pluralismo religioso em forte crescimento e, portanto, também um individualismo e subjetivismo de uma atitude religiosa do "faça-o você mesmo!" Por outro lado, a cultura pós-moderna, imersa num relativismo erosivo, favorece um imediatismo imanente no mundo, que se afasta de toda realidade metafísica ou religiosa, de todo projeto de vida a longo prazo e não
espera uma realidade definitivo-escatológica depois da vida terrena, um culto do corpo jovem e perfeito, uma prioridade das sensações, das emoções e do desejo ( a tal ponto que os desejos pretendem converter-se em direitos!). No fundo, é uma cultura niilista ("nihilista"), isto é, não é capaz de apresentar algo ou alguém por quem valha a pena investir toda a minha vida. Ou seja, não existe nada nem ninguém pelo qual valha a pena viver ou morrer. A vida está vazia de qualquer sentido verdadeiro.

         Tal contexto desenvolve o materialismo consumista desenfreado de nossos tempos. Se não existe verdadeiro futuro, se não há nada pelo qual valha a pena construir um projeto de vida a longo prazo, então cada um deve tratar de aproveitar ao máximo o momento presente. Assim, o dinheiro se converte no valor mais desejável, porque oferece a possibilidade de consumir imediatamente e cada vez mais, de gozar, de gastar, de adquirir. O valor de cada um numa tal sociedade mede-se por seu poder aquisitivo e de consumo. Relacionado com o consumo aparece o espetáculo. Existe hoje uma tendência de transformar tudo em espetáculo, a ser, por sua vez, consumido pelos indivíduos e pelas multidões. Tudo se resume a tirar o máximo de satisfação do momento presente, sem esperanças nem grandes responsabilidades. No contexto do niilismo, o espetáculo, o show, se apresentam como diversão e fuga, em que a realidade em seu cru não-sentido é gozada e depois descartada. Com ela são descartadas a responsabilidade e a seriedade diante da vida, da história e do futuro. Se não existe uma verdade verdadeira e universal, se não existe um Deus, se a realidade, em seu cerne mais profundo, não tem um sentido, então o espetáculo se converte em verdadeira natureza da realidade.

         No contexto do niilismo entra também oconsumo das drogas, o crescimento da violência, o 
desprezo pela vida humana, o sexo sem responsabilidade e desvinculado do amor e da geração de novas vidas humanas, o enfraquecimento da estrutura familiar.

         Outro aspecto da cultura atual é sua caraterística mediática, telemática e virtual, que tem na Internet uma de suas formas mais eficazes e universais. A Internet é um dos principais fatores de mudança, tanto na vida das pessoas como da sociedade. Cada dia se descobrem mais as possibilidades da Internet nos diversos ambientes: como meio de relacão, de informação, de lazer, de divertimento, de descanso, de trabalho, de comércio,  de arte, de expressão de emoções e de sentimentos... e também de formação. Seu alcance é qualquer tema, qualquer momento e qualquer lugar. As tecnologias de telecomunicação – como na Internet - produzem um mundo virtual em que as noções de espaço e tempo, de identidade e comportamento social "adequado" são mudadas.

         Outro fenômeno que caracteriza nossa cultura atual é a globalização, tornada possível justamente pelo gigantesco desenvolvimento das tele-comunicações e se apresenta com uma expressão exponencial e um pretendido avanço do mundo atual. O "Documento de Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe" (DA) diz: "O Papa, em seu Discurso Inaugural, vê a globalização como um fenômeno "de relações de nível planetário, considerando-o "uma conquista da família humana, porque favorece o acesso a novas tecnologias, mercados e finanças. [...] Ao mesmo tempo, a globalização se manifesta como a profunda aspiração do gênero humano à unidade. Não obstante esses avanços, o Papa também assinala que a globalização "comporta o risco dos grandes monopólios e de converter o lucro em valor supremo". Por isso, Bento XVI enfatiza que "como em todos os campos da atividade humana, a globalização deve reger-se também pela ética, colocando tudo a serviço da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus" (DA, n.60).
  
       Para melhor completar o quadro das mudanças culturais, convém lembrar que, sobretudo na América Latina, junto com a cultura pós-moderna, urbana e secularizada, subsiste ainda uma cultura agrária e popular, por vezes com características de cultura miscigenada, em que a fé católica foi inculturada, manifestando-se principalmente na religiosidade popular, de tal modo que o catolicismo aparece como uma espécie de alma profunda dos latino-americanos. Esta cultura todos a conhecemos e quiçá a maioria de nós nela foi educada. Contudo, a cultura pós-moderna vem com grande força e muda cada vez mais nossa gente simples, através da expansão dos grandes meios de comunicação – a mídia – presentes até nas regiões mais remotas de nosso País.

Este é, em breve síntese, o contexto cultural em que vivemos hoje. Também o presbítero nele vive e exerce seu ministério. É nesta sociedade de grandes e rápidas mudanças que o presbítero deve contextualizar sua identidade presbiteral e seu ministério pastoral e missionário. As mudanças culturais atuam sobre todos nós. Bento XVI mais vezes tem dito que o relativismo também penetra na Igreja. É óbvio, porque não vivemos no abstrato, mas somos filhos e construtores da história e por isso marcados pela cultura do respectivo momento histórico. Ademais, nunca a história humana foi tão veloz e dinâmica como hoje. Isto exige da nossa parte uma constante e lúcida atualização. O sacerdote é guia espiritual de nossa gente e não pode ser um guia cego. Conhecer mais profundamente a cultura que aí está, suas origens e história, ajuda em primeiro lugar o próprio padre a conhecer-se a si mesmo melhor e descobrir por que pensa hoje diferente de décadas atrás, por que se comporta diferente, por que faz perguntas diferentes, por que corre o risco de relativizar o que não é relativo, por que corre o risco de subjetivizar totalmente sua visão moral, por que tende a falar somente de alguns temas do Evangelho e não de outros, por que corre o risco de não aceitar suficientemente compromissos assumidos para a vida inteira, e assim por diante. Ao mesmo tempo, o sacerdote percebe como necessita hoje de uma espiritualidade mais vigorosa e aprofundada, visto que esta sociedade não lhe oferece mais um apoio como outrora e às vezes com desdém lhe mostra as costas. Em segundo lugar, o melhor conhecimento da atual cultura ajuda o sacerdote a conhecer a sociedade atual, as pessoas de hoje, que ele deve evangelizar.

         Mas esta nova cultura tem alguma abertura para receber o Evangelho? Com certeza. Nenhuma cultura humana é totalmente errônea, pervertida ou má. Todas tem sementes de bem e de verdade, que uma evangelização pode fertilizar e levar a seu pleno desenvolvimento. Todas as culturas podem passar pelo processo pascal de Jesus Cristo e, sem deixarem de ser elas mesmas, serem evangelizadas e tornarem-se, por assim dizer, discípulas de Jesus Cristo, que veio para salvar todo o gênero humano. Às vezes, corremos a tentação de demonizar a atual cultura. Jesus Cristo, ao contrário, disse: "Não vim para condenar o mundo, mas para salvar o mundo" (Jo 12,47).
         
       Obrigado pela atenção!''

Fonte: HUMMES, Cláudio Cardeal. A situação dos presbíteros no mundo. Disponível em: http://www.diocesegaranhuns.org/site/exibenoticia.php?top_id=121 . Acesso em 16 de novembro de 2012.

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