Um dos aspectos mais salientes do caráter humano é, antes de tudo, sua ciência da morte. Alguns antropólogos chegam a atribuir esse pequeno saber a posição de elemento central no conceito de "humanidade'', já que é pelo temor da morte que o ser humano organiza-se em sociedade, buscando prolongar sua vida graças ao esforço e proteção da coletividade. Essa eterna fuga da morte seria a "razão de ser'' das nossas sociedades, como as conhecemos.
Contudo, a questão da morte vai mais além. Em quase todas as culturas conhecidas, a morte foi vista como um inimigo a ser derrotado pela religião, e esta, para isso, oferecia a vida eterna aqueles que seguissem determinadas condutas morais. Mais que uma estratégia para a consecução da estabilidade social e do controle de comportamento dos indivíduos- pelo temor da punição da morte- essa busca pela vitória sobre a morte assumiu os ares da maior empreitada já levada a cabo pela humanidade. Eis o mito da possibilidade de consecução da imortalidade, um dos maiores fundamentos da civilização. Toda a ciência, avanços sociais, elaborações teológicas e demais esforços intelectuais do homem visam, em última instância, garantir uma espécie de imortalidade ao homem, ou então prometê-la. Mas a imortalidade, tão cantada e desejada por milhões de seres humanos, não veio como se esperava e os políticos, filósofos e líderes religiosos acabaram como quaisquer sonhadores ingênuos: mortos.
No Ocidente, seguindo esse raciocínio, existem três grandes correntes de pensamento sobre a imortalidade.
A visão cristã é herdeira das visões metafísicas sobre a imortalidade (embora tal conceito não seja compatível com o cristianismo), proclamando que a vida terrena se esvairá e uma nova vida, em um paraíso perfeito, será garantida àqueles que cumprirem os mandados de Jesus - amar a Deus (o Amor) e ao próximo (a imagem e semelhança de Deus). Também em Platão, a visão da imortalidade da alma- e não do corpo- era clara, já que, para ele, somente as ideias e valores imutáveis existiam de fato e, como tais, eram eternos; no homem, a centelha imortal é a alma, a junção entre sabedoria, coragem e instinto (todos estes valores), onde cada virtude exerce a função de equilibrar a alma humana. A morte do corpo seria a libertação da alma para ascender ao paradisíaco mundo das ideias. A alma era ontológica - ou seja, mais real do que o corpo- e o corpo, uma sombra a ser apagada pelo eterno devir da matéria.
O cristianismo, porém, têm seus pressupostos de vida eterna "contrabandeados'' para o racionalismo iluminista, que considera que, somente pelo domínio da natureza e da racionalização da sociedade, o homem pode almejar, pelo progresso técnico, prolongar sua vida terrena, desprezando qualquer vida supostamente metafísica em outro mundo; essa visão tem seus precedentes no Egito Antigo, cujos sacerdotes criam na ressurreição do corpo conservado pela mumificação. Contudo, o pressuposto cristão permanece: essa "vida eterna'' material prometida pela ciência parece pertencer a um mundo distante do atual, tal como se vê no cristianismo. A imortalidade deixa de ser a graça de Deus para ser a graça dos iluminados da humanidade, seus cientistas e pensadores. A maior expressão dessa tendência é o crú cientificismo que marca alguns círculos intelectuais de hoje, que consideram ser possível, através de descobertas científicas, a superação da morte.
Por outro lado, a própria política, na modernidade, está fundada nas promessas de uma vida em um paraíso terrestre: tanto liberais quanto marxistas se oferecem como a melhor chance de sobrevivência da humanidade e, embora não prometam a imortalidade da carne, afirmam em seu lugar a imortalidade das ideias. Defender a ideia da luta de classes ou a prosperidade individual como pressuposto da prosperidade coletiva é, de certa forma, uma fusão daquele que neles crê a tais institutos que, uma vez postos como célula-base das sociedades, serão eternos. Ou seja, ambas são visões idealistas, pelas quais são as ideias políticas as responsáveis pela imortalidade dos indivíduos.
No fim, as tradições filosóficas fundadas no ceticismo e no niilismo rejeitam qualquer chance de imortalidade. Nietzsche crê que a promessa de uma vida metafísica eterna em um Reino perfeito é uma forma de controle social e uma imposição de normas morais pelos escravos e menos aptos aos naturalmente mais belos, fortes e inteligentes (a elite da humanidade), e uma forma de consolo e auto-enganação da humanidade por ela mesma que, fatalmente, acabaria em fracasso, possibilitando o que se chamou de "eterno retorno'' à qualidade, então esquecida, que o homem possui de determinar ele mesmo o que é o bem e o mal, algo surrupiado pelo cristianismo ao próprio homem (ou seja, Deus é, na verdade, uma criação pela qual uma elite de escravos justificou seus valores de desprezo pela carne e matéria, naturalmente irracionais à espécie humana). O super-homem tem ciência de sua mortalidade e, por isso, exerce ao máximo suas vontades e prazeres.
É essa última visão que acaba por predominar nos círculos "mais cultos'' da sociedade. O pessimismo de que o sonho acabou e a imortalidade é um mito inalcançável é quase uma regra, apesar de vários cientistas resistirem. Contudo, grande parte da população humana ainda crê nas supostas promessas do cristianismo sobre a imortalidade, embora Cristo jamais tenha prometido uma "imortalidade'' nesse sentido: imortalidade quer dizer a não-morte, a incorrupção da carne, a permanência nesta vida, enquanto o cristianismo promete uma "segunda vida'', só alcançável justamente pela morte!
Todavia, ainda hoje, os cientistas de todo o mundo buscam meios de superar a morte e prolongar a vida, descobrindo inúmeras curas de doenças e retardando os efeitos da velhice. Clínicas de criogenia são a última moda nos países ricos, sabia?
Mas porque temer tanto a morte? Porque desejar algo jamais experimentado por um ser humano conhecido (tirando figuras religiosas e míticas), a imortalidade? Freud falou, no fim de sua vida, do "desejo por Tânatos'' da humanidade, o desejo pela morte como uma "libertação'' da pura determinação do caráter humano pela sexualidade, da mesma forma como o cristianismo prometeu superar os males da matéria pela morte e ressurreição em Cristo. Assim, morrer pode não ser tão ruim assim, depois de uma longa vida, é claro.
Contudo, o fascínio pela imortalidade continua. Vários filmes e livros, como Highlander (onde um grupo de homens imortais travam uma luta eterna pelos séculos), Drácula (o velho conto do vampiro triste e imortal) e até mesmo as mais antigas obras produzidas pela humanidade (A Epopeia de Gilgamesh) tratam do tema. Aliás, a história de Gilgamesh, escrita na Suméria, no alvorecer da civilização, é emblemática: depois de épicas aventuras em busca da vida eterna, o herói, que anteriormente havia sido um poderoso rei, acaba envenenado e morto, lamentando seu fim, enquanto os deuses riem da prepotência do mortal que quis ser como eles. Já nessa época, o ensinamento era claro. A crença na imortalidade só traria dor na inevitável hora da morte e uma grande frustração. A morte deveria ser aceita como parte da vida.
Foi o que os romanos fizeram, ao elaborar o conceito de "cultura'', através das expressões latinas "colo'', "cultus'', "culturas''. A cultura (o conjunto de saberes sociais), para eles, eram "sementes'' a serem lançadas "no colo'' da "terra'', no ser humano, durante sua educação (a "cultivação'' da cultura), que brotariam na formação da personalidade do homem. Esse novo homem daria sua contribuição à cultura e, através de seus filhos, transmitiria as sementes (leia-se nessa expressão tanto os saberes abstratos quanto o "esperma'', pelo qual uma "parte'' do pai sobrevive nos filhos) ancestrais dos conhecimentos humanos- e seu sangue- a seus descendentes. A imortalidade material seria essa eterna passagem de conhecimentos de uma geração a outra e da geração de filhos. Assim, os pais viveriam nos filhos, e os filhos, em seus próprios rebentos, e assim por diante. Na alma e no sangue.
Em suma, só se pode falar em imortalidade nesse sentido, a partir da herança genética e cultural das gerações que se sucedem no tempo. O restante é mito, embora a tentação e desejo pela vida material ininterrupta - a possibilidade de gozar dos prazeres da carne pela eternidade- seja ainda forte na civilização atual, que busca, de toda forma, banalizar a morte, até mesmo glorificando-a, já que, como dissemos, a sua inevitabilidade foi finalmente aceita com a filosofia de Nietzsche.
Assim, a melhor figura a se adotar, como modelo de conclusão desse pequeno texto, é a da Fênix: o mitológico ser especial que era, de fato, mortal, consumindo-se, no maior de seus brilhos, na inevitável morte, para renascer em seguida. Mas o que não é muito divulgado sobre a Fênix mitológica é que seu renascimento é na verdade o surgimento de uma nova criatura, não da velha, a partir desta. A morte é o princípio da vida, eis o grande ensinamento desse mito ancestral.
Assim, a melhor figura a se adotar, como modelo de conclusão desse pequeno texto, é a da Fênix: o mitológico ser especial que era, de fato, mortal, consumindo-se, no maior de seus brilhos, na inevitável morte, para renascer em seguida. Mas o que não é muito divulgado sobre a Fênix mitológica é que seu renascimento é na verdade o surgimento de uma nova criatura, não da velha, a partir desta. A morte é o princípio da vida, eis o grande ensinamento desse mito ancestral.
A imortalidade é, de fato, um conceito vazio. Todavia, sua crença produziu inúmeras realizações filosóficas, científicas e culturais em geral: se a humanidade não tivesse buscado o impossível, jamais teria conquistado o que hoje é comum. Só por esse simples detalhe, sua crença foi positiva; contudo, mesmo o cristianismo superou tal ideia, como já dissemos, ao ver a morte como um processo natural de passagem a algo superior à vida terrena. E é justamente essa pergunta " o que há além da morte?'' que causa calafrios nos céticos. É hora de superarmos o medo e nos lançarmos nos braços de nossas crenças, rejeitando os mitos da imortalidade da carne - a mesma carne que tanto nos faz mal-, aceitando a condição da mortalidade inerente a tudo o que está vivo e, enfim, viver, com naturalidade, a maior mas aventuras possíveis ao ser humano: ir além da morte, descobrir o que há nessa região sombria e envolta em brumas. Depois, é claro, de uma longa e feliz vida material. Porque a Fênix da humanidade não deve parar de ser renovar e renascer, cada vez mais brilhante, quente, sábia, fraterna.
Muito bom Jorge, gostei dos seus argumentos. Por isso que seu blog não deve acabar, um cara como você é raro de se encontrar por ai. Confie sempre nos seus ideais, e siga sempre em frente. Abraço
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