Um dos aspectos mais salientes do caráter humano é, antes de tudo, sua ciência da morte. Alguns antropólogos chegam a atribuir esse pequeno saber a posição de elemento central no conceito de "humanidade'', já que é pelo temor da morte que o ser humano organiza-se em sociedade, buscando prolongar sua vida graças ao esforço e proteção da coletividade. Essa eterna fuga da morte seria a "razão de ser'' das nossas sociedades, como as conhecemos.
Contudo, a questão da morte vai mais além. Em quase todas as culturas conhecidas, a morte foi vista como um inimigo a ser derrotado pela religião, e esta, para isso, oferecia a vida eterna aqueles que seguissem determinadas condutas morais. Mais que uma estratégia para a consecução da estabilidade social e do controle de comportamento dos indivíduos- pelo temor da punição da morte- essa busca pela vitória sobre a morte assumiu os ares da maior empreitada já levada a cabo pela humanidade. Eis o mito da possibilidade de consecução da imortalidade, um dos maiores fundamentos da civilização. Toda a ciência, avanços sociais, elaborações teológicas e demais esforços intelectuais do homem visam, em última instância, garantir uma espécie de imortalidade ao homem, ou então prometê-la. Mas a imortalidade, tão cantada e desejada por milhões de seres humanos, não veio como se esperava e os políticos, filósofos e líderes religiosos acabaram como quaisquer sonhadores ingênuos: mortos.
No Ocidente, seguindo esse raciocínio, existem três grandes correntes de pensamento sobre a imortalidade.


Por outro lado, a própria política, na modernidade, está fundada nas promessas de uma vida em um paraíso terrestre: tanto liberais quanto marxistas se oferecem como a melhor chance de sobrevivência da humanidade e, embora não prometam a imortalidade da carne, afirmam em seu lugar a imortalidade das ideias. Defender a ideia da luta de classes ou a prosperidade individual como pressuposto da prosperidade coletiva é, de certa forma, uma fusão daquele que neles crê a tais institutos que, uma vez postos como célula-base das sociedades, serão eternos. Ou seja, ambas são visões idealistas, pelas quais são as ideias políticas as responsáveis pela imortalidade dos indivíduos.
No fim, as tradições filosóficas fundadas no ceticismo e no niilismo rejeitam qualquer chance de imortalidade. Nietzsche crê que a promessa de uma vida metafísica eterna em um Reino perfeito é uma forma de controle social e uma imposição de normas morais pelos escravos e menos aptos aos naturalmente mais belos, fortes e inteligentes (a elite da humanidade), e uma forma de consolo e auto-enganação da humanidade por ela mesma que, fatalmente, acabaria em fracasso, possibilitando o que se chamou de "eterno retorno'' à qualidade, então esquecida, que o homem possui de determinar ele mesmo o que é o bem e o mal, algo surrupiado pelo cristianismo ao próprio homem (ou seja, Deus é, na verdade, uma criação pela qual uma elite de escravos justificou seus valores de desprezo pela carne e matéria, naturalmente irracionais à espécie humana). O super-homem tem ciência de sua mortalidade e, por isso, exerce ao máximo suas vontades e prazeres.
É essa última visão que acaba por predominar nos círculos "mais cultos'' da sociedade. O pessimismo de que o sonho acabou e a imortalidade é um mito inalcançável é quase uma regra, apesar de vários cientistas resistirem. Contudo, grande parte da população humana ainda crê nas supostas promessas do cristianismo sobre a imortalidade, embora Cristo jamais tenha prometido uma "imortalidade'' nesse sentido: imortalidade quer dizer a não-morte, a incorrupção da carne, a permanência nesta vida, enquanto o cristianismo promete uma "segunda vida'', só alcançável justamente pela morte!
Todavia, ainda hoje, os cientistas de todo o mundo buscam meios de superar a morte e prolongar a vida, descobrindo inúmeras curas de doenças e retardando os efeitos da velhice. Clínicas de criogenia são a última moda nos países ricos, sabia?
Mas porque temer tanto a morte? Porque desejar algo jamais experimentado por um ser humano conhecido (tirando figuras religiosas e míticas), a imortalidade? Freud falou, no fim de sua vida, do "desejo por Tânatos'' da humanidade, o desejo pela morte como uma "libertação'' da pura determinação do caráter humano pela sexualidade, da mesma forma como o cristianismo prometeu superar os males da matéria pela morte e ressurreição em Cristo. Assim, morrer pode não ser tão ruim assim, depois de uma longa vida, é claro.
Contudo, o fascínio pela imortalidade continua. Vários filmes e livros, como Highlander (onde um grupo de homens imortais travam uma luta eterna pelos séculos), Drácula (o velho conto do vampiro triste e imortal) e até mesmo as mais antigas obras produzidas pela humanidade (A Epopeia de Gilgamesh) tratam do tema. Aliás, a história de Gilgamesh, escrita na Suméria, no alvorecer da civilização, é emblemática: depois de épicas aventuras em busca da vida eterna, o herói, que anteriormente havia sido um poderoso rei, acaba envenenado e morto, lamentando seu fim, enquanto os deuses riem da prepotência do mortal que quis ser como eles. Já nessa época, o ensinamento era claro. A crença na imortalidade só traria dor na inevitável hora da morte e uma grande frustração. A morte deveria ser aceita como parte da vida.
Foi o que os romanos fizeram, ao elaborar o conceito de "cultura'', através das expressões latinas "colo'', "cultus'', "culturas''. A cultura (o conjunto de saberes sociais), para eles, eram "sementes'' a serem lançadas "no colo'' da "terra'', no ser humano, durante sua educação (a "cultivação'' da cultura), que brotariam na formação da personalidade do homem. Esse novo homem daria sua contribuição à cultura e, através de seus filhos, transmitiria as sementes (leia-se nessa expressão tanto os saberes abstratos quanto o "esperma'', pelo qual uma "parte'' do pai sobrevive nos filhos) ancestrais dos conhecimentos humanos- e seu sangue- a seus descendentes. A imortalidade material seria essa eterna passagem de conhecimentos de uma geração a outra e da geração de filhos. Assim, os pais viveriam nos filhos, e os filhos, em seus próprios rebentos, e assim por diante. Na alma e no sangue.

Assim, a melhor figura a se adotar, como modelo de conclusão desse pequeno texto, é a da Fênix: o mitológico ser especial que era, de fato, mortal, consumindo-se, no maior de seus brilhos, na inevitável morte, para renascer em seguida. Mas o que não é muito divulgado sobre a Fênix mitológica é que seu renascimento é na verdade o surgimento de uma nova criatura, não da velha, a partir desta. A morte é o princípio da vida, eis o grande ensinamento desse mito ancestral.
A imortalidade é, de fato, um conceito vazio. Todavia, sua crença produziu inúmeras realizações filosóficas, científicas e culturais em geral: se a humanidade não tivesse buscado o impossível, jamais teria conquistado o que hoje é comum. Só por esse simples detalhe, sua crença foi positiva; contudo, mesmo o cristianismo superou tal ideia, como já dissemos, ao ver a morte como um processo natural de passagem a algo superior à vida terrena. E é justamente essa pergunta " o que há além da morte?'' que causa calafrios nos céticos. É hora de superarmos o medo e nos lançarmos nos braços de nossas crenças, rejeitando os mitos da imortalidade da carne - a mesma carne que tanto nos faz mal-, aceitando a condição da mortalidade inerente a tudo o que está vivo e, enfim, viver, com naturalidade, a maior mas aventuras possíveis ao ser humano: ir além da morte, descobrir o que há nessa região sombria e envolta em brumas. Depois, é claro, de uma longa e feliz vida material. Porque a Fênix da humanidade não deve parar de ser renovar e renascer, cada vez mais brilhante, quente, sábia, fraterna.
Muito bom Jorge, gostei dos seus argumentos. Por isso que seu blog não deve acabar, um cara como você é raro de se encontrar por ai. Confie sempre nos seus ideais, e siga sempre em frente. Abraço
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