sexta-feira, 27 de julho de 2012

"O Cavaleiro das Trevas ressurge'': a Queda do morcego e o reerguimento de uma nação


Luz, sombras, morcegos e ... ação. Foram anos de espera até o suposto encerramento da bem-sucedida série cinematográfica sobre a saga do bilionário Bruce Wayne e seu alterego septuagenário, Batman. E, hoje, o terceiro filme da série estreou em cinemas do Brasil inteiro, marcado pela tragédia ocorrida nos EUA, que derrubou suas bilheterias mundo a fora. Como todos sabem, um louco adentrou a um cinema, no Estado do Colorado, e massacrou 12 inocentes. Tragédias a parte, o filme traz uma ótima oportunidade reflexão sobre uma vasta gama de temas e quero, aqui, elucidá-lo, obtendo, no processo, uma crítica não à última obra do diretor Nolan, mas à propriedade sociedade que a gerou.


1- O enredo: Batman contra os revolucionários

Feitas as explicações iniciais, vamos ao filme em si. Aqui, depois da épica luta contra o Coringa, da morte do herói das instituições estatais Harvey Dent e da vitória sobre os terroristas, Gotham respira prosperidade. As taxas de criminalidade são as mais baixas que sem tem notícia, a cidade está limpa das quadrilhas, a polícia voltou a ser uma instituição confiável. Contudo Bruce Wayne/Batman (Christian Bale) é um homem amargurado pela perda de seu maior amor no último longa, decepcionado ainda mais com o desfecho de sua missão como combatente do crime, onde seu vigilante mascarado é tachado por criminoso. Suas poderosas empresas vão à bancarrota, junto com seu corpo, marcado pelas inúmeras sequelas sofridas nas lutas do passado, e ele, ao contrário do Batman dos quadrinhos, sente todas as dores e dúvidas de um homem comum, que perdeu o sentido de sua vida.

Enquanto a cidade brilha, algo parece incomodar o Comissário Gordon (Gary Oldman). A estranha tranquilidade mostra que as causas da decadência de Gotham não estão mais presentes, já que mendigos, moradores de rua e assaltantes simples são inexistentes (salvo uma exceção isolada), mas os perigos potenciais continuam: a aparente calma se deve a uma Lei duríssima, conhecida como "Lei Harvey Dent'', expressão da ideologia do movimento "Tolerância zero'', nascido em Nova York e pregador de uma rigidez intratável na execução penal. Os criminosos, sem líderes e desarticulados, ficam presos, aos milhares, em uma penitenciária de segurança máxima, como uma represa de concreto a deter pessoas, e não água. O que aconteceria se ela fosse aberta?

Enquanto isso, a experiente ladra Selina Kyle (Anne Hathaway) vive de grandes roubos de joias, ao passo em que busca meios de recomeçar uma vida onde não seja uma procurada da polícia. Aqui, contudo, vai uma pequena crítica: a Selina Kyle (mulher-gato) dos quadrinhos é uma mulher transtornada, com mil e uma faces, cria de um sistema social excludente (havia sido prostituta, antes de ladra). A da película de Nolan é uma mulher forte e confiante, talvez um pouco indecisa, mas que não ostenta a complexidade psicológica da personagem. Anne, porém, dá uma graça ostensiva à personagem, embora não tenha atuado bem nas cenas de luta.

O grande inimigo de Gotham é, dessa vez, Bane (Tom Hardy ), um ex-mercenário que planeja realizar o plano da Liga das Sombras (do primeiro filme) e destruir o símbolo da civilização ocidental decadente, a própria Gotham. Para tal, planeja uma série de atentados à cidade, coma  ajuda de um ambicioso empresário, um dos inimigos do mundo de negócios de Bruce Wayne.


Miranda (Marion Cotillard) é uma empresária filantropa que busca investir sua fortuna em ações sociais, principalmente em energia renovável. Aparentemente idealista, protagonizará um pequeno affair com Wayne e será responsável por uma grande reviravolta no desenrolar do filme. O mordomo de Bruce, Alfred (Michel Caine) abandona o patrão e pouco aparece no filme, mas ainda assim dá um espetáculo de interpretação; desiludido com seu amigo e empregador, decide não apoiá-lo quando este retoma a máscara do Batman para enfrentar Bane. Por fim, um policial obstinado (Joseph Gordon Levitt) age como uma espécie de braço-direito de James Gordon, personificando os antigos excluídos de Gotham (latinos, negros e pobres) que encontraram um lugar junto à nova ordem.


Basicamente, Bane planeja destruir a cidade com uma bomba nuclear fabricada pelas indústrias Wayne, originalmente produzida para ser uma fonte de energia renovável. As sequências de ação que se seguem são relativamente fracas, com poucas aparições do Batman e muito pouco do seu prodigioso estilo de lutas, caracterizado por incutir medo nos oponentes e pela teatralidade que ostentava. Faltou a "classe'' que o personagem tão bem caracterizou no segundo filme.

Diante de um Batman fragilizado, Bane vence facilmente o primeiro confronto com o herói e o joga em uma distante prisão do oriente médio, enquanto isola Gotham City do mundo e ameaça explodir a cidade caso aja intervenção do governo. Liberta todos os criminosos da cidade e lhes arma, proclamando a derrubada de todas as instituições políticas da cidade e capitalizando seu discurso com uma pregação pseudo-revolucionária e socialista. Tanto que seu primeiro alvo foi a Bolsa de Valores da cidade, na qual deu um golpe bilionário, destruindo a fortuna das empresas Wayne, numa alusão direta ao movimento de contestação ao capitalismo de nossos dias, o Ocupe Wall Street.

A trilha sonora permanece quase inalterada, sendo basicamente a mesma composta por Hans Zimmer para a trilogia, mas que casa muito bem com as minguadas cenas de ação. 

Aqui cabe mais um comentário: o filme se dá em uma atmosfera de permanente tensão, e constantemente prepara o telespectador para algo grandioso. Seu início é magnífico para o gênero, mas logo o brilhantismo inicial decai gradativamente. A espera por algo maior, interrompida pelo impacto inicial da "revolução'' de Bane, esvai-se indefinidamente. Faltou um clímax mais adequado para coroar a película, e o filme acaba prometendo durante suas longas 2h45min algo que simplesmente não acontece, e seu desfecho dramático não possui a carga emotiva ou técnica necessárias para tal. Se você espera um filme com grandes efeitos especiais, vai se decepcionar. Não somente os efeitos especiais faltam, mas cenas de efeito.

Os atores não se entrosaram bem e poucas atuações merecem destaque. Christian Bale foi discreto, mas personificou bem o esgotamento e a depressão que afetavam seu personagem, enquanto Gary Oldman permaneceu apagado, mesmo quando seu personagem lidera a polícia na articulação contra as forças "revolucionárias'' de Bane. Dos demais, incluindo Anne (nessa, faltou mais sensualidade, pela qual não se pode comparar a jovem a atriz à Michelle Pfeiffer, o Mulher-gato de "Batman - o retorno''), há que se falar que foram tão profundos quanto um pires. O vilão Bane pouco conseguiu expressar a atmosfera de terror apocalíptico que dele se esperava, se tornando uma sombra morta quando comparado ao Coringa. Seu visual também ficou opaco, no mínimo.

As atuações fracas e as cenas de ação mau-construídas, junto com uma trama demasiado longa (o que não teria sido problema se o filme avançasse para algo mais amplo; acabou por ficar perdido em poucos cenários, poucos conflitos emocionais e sequências de luta muito fracas) prejudicaram bastante a trama. Contudo, o nível de reflexão que ela proporciona é extremamente rico, como veremos. 


2- A decadência dos EUA e a esperança no Morcego

Poucos devem lembrar, mas o Batman dos quadrinhos é um filho da crise. Não exatamente da atual, mas de uma já passada, a famigerada "Grande Depressão'' que se seguiu à crise de 1929; até os anos 30, não existiam super-heróis como conhecemos, sendo que todos que hoje enquadramos no gênero (com algumas exceções) surgiram em tal década. Foi o caso de Batman, criado por Bob Kayne para rivalizar com o primeiro dos super-heróis, o Fantasma. A ideia básica de Kane era criar um personagem que detivesse todas as virtudes apreciadas pelo povo norteamericano, para inspirar as futuras gerações a reconstruir o país. Veremos mais adiante sobre a ideologia que rodeia e preenche o detetive-morcego.

Nos dois longas anteriores, uma cidade obscura e decadente, marcada por terríveis contrastes sociais, cujos pólos são uma aristocracia enriquecida e frívola e a população marginalizada, em uma relação mediada pelo corrupto aparelho policial e estatal, e ainda um quarto agente, o poderoso crime organizado. Um dos produtos dessa tensão social é o órfão Bruce Wayne, um bilionário que buscou, durante toda a vida, um sentido para sua vida, pelos quatro cantos do mundo. Após anos de treino, Wayne retorna a Gotham city, após destruir uma sociedade secreta de cunho ocultista, para tentar reerguer a cidade através do combate ao crime organizado. Sozinho, ou melhor, com a ajuda de uns poucos, Wayne se torna um vigilante mascarado e declara guerra ao crime organizado, lutando, ao mesmo tempo, contra a ineficiência do sistema estatal. 

A Gotham City retratada é uma bela síntese do resultado da decadência do sistema capitalista americano dos anos dourados (1950-1980), que produziu contradições tão insustentáveis que somente um homem acima do bem e do mal (e da Lei, é claro), poderia lidar com a situação. Batman dá esperança aos habitantes da cidade durante as noites n luta contra o crime e, ao mesmo tempo, como Bruce Wayne, durante o dia, ridiculariza a hipocrisia social dos bilionários da cidade, que se divertem com frivolidades e ostentam uma falsa consciência social manifesta em seus inúmeros bailes de caridade. No fim, Batman, nos três filmes, salva a cidade do colapso causado por tais contrastes, sem nunca eliminá-los

O novo Batman de Christopher Nolan também é um filho da crise, de uma certa maneira, que marca nossos dias. A crítica social exposta dos últimos filmes chega aqui ao seu auge, como veremos. Basta dizer aqui que os EUA de hoje, como nos anos 30, chegaram ao auge da decadência de um sistema econômico-financeiro neoliberal que, durante mais de duas décadas, aparentou funcionar muito bem: hoje, contudo, metade da população do país detêm menos de 1% da riqueza nacional, enquanto menos de 1% dos ricos possuem quase 35% do PIB. Uma enorme desigualdade social, que vem sendo criticada pela inércia e ingerência do governo (Obama) em proporcionar a recuperação do país, ensejou uma onda de protestos contra o capitalismo jamais vista desde os anos 60, capitaneada pelo Movimento Ocuppy Wall Street. E, aqui, o novo filme do morcego faz referência direta à realidade social que o gerou, com a contestação, pelo vilão Bane, ao corrupto sistema capitalista.

Essa contestação pós a descoberto as contradições da sociedade, representadas pelos criminosos enjaulados na penitenciária de Blackgate, que, uma vez soltos, subvertem a ordem e, em tribunais insanos (comandados pelo Espantalho, vilão dos últimos filmes) condenam os destacados membros da alta sociedade Gotham e todos os opositores à morte ou exílio. Milhares de roubos, estupros e assassinatos ocorrem.


A melhor pergunta que o filme nos traz é a seguinte: nos esforçamos para eliminar todos os que se revoltem contra a ordem, principalmente criminosos, usando apenas a força bruta para isso, encerrando-os em jaulas, enquadrando-os em leis duríssimas (Tolerância Zero e Direito Penal máximo). Poderia dar certo por curto prazo, mas e se as portas da cadeia que mantêm esses inimigos presos (o Estado) caísse? Trata-se do Estado enquanto pura repressão, representada por seus órgãos coercitivos. Mais uma vez, o herói mascarado é o líder e símbolo do reerguimento do sistema punitivo e liberal, onde, numa batalha mortal pela cidade, os policiais vencem os milhares de criminosos armados até os dentes por Bane; e se trata do explícito discurso liberal, onde o Estado apenas tem uma função repressiva, não social. Aqui, que fique patente: a solução sugerida pelo filme para a crise econômica que ameaça mudar a sociedade americana é a simples reformulação do sistema. A possibilidade de queda do Estado-repressor e instalação da anarquia (ou "poder popular''), mesmo que por nobres ideais, acabaria em morte e caos; a mudança embasada em ideais democráticos e distributivistas é perigosa. Trata-se ma crítica direta aos que pregam a mudança brusca da sociedade americana, organizados pelo movimento Ocupe Wall Street.  Uma crítica bem fundada. As ideias do movimento são nobres, mas eles não possuem nenhuma articulação ou projetos para o futuro; atingindo seu objetivo, ou seja, destruindo a sociedade neoliberal financeirizada, não teriam nada a propor à sociedade.

Uma cena magistral exemplifica muito bem esse clima de tensão nos EUA. Enquanto a superfície da cidade e do país brilham de aparente paz e prosperidade, os alicerces são destruídos por uma confusa força oculta; em um estádio de futebol americano lotado, uma criança canta o hino nacional de forma emocionante, personificando a ordem estabelecida. Quando termina, o estádio desaba e Bane surge, com sua pregação revolucionária. A ideia é básica: a sociedade americana é destruída, em seus alicerces (a economia), quando ressurgia da decadência de outrora (a crise atual), por um bando de loucos que, desejando piamente destruir o símbolo da ganância (como alegaram ter feito com Roma e Constantinopla) e decadência da América, se escudam em um discurso socialista e revolucionário, quando seu objetivo é puramente destruir o sistema (representado pela destruição do Estado e o corte das relações globalizadas do Mercado, materializado pelo "cerco'' que impõem à Gotham), mesmo que, para isso, tenham que destruir as pessoas que dele dependem. 

O filme prega um meio-termo. Enquanto endeusa o Estado-repressor e demoniza os revolucionários, identificando a mudança social por um ângulo negativo (os criminosos soltos roubam dinheiro, joias e carros, numa caricatura do processo de distribuição de renda; distribuir riqueza para o povo miserável é roubo!), defende a responsabilização dos ricos no destino do país (através da boa ação filantrópica, também alvo da crítica do vilão Bane e da Mulher-gato ao próprio sistema capitalista). (Ao lado, Batman comanda a polícia contra os "revolucionários'', liderados por Bane, que ocupam a prefeitura, numa apologia direta aos valores que o herói personifica, que guiam a resistência dos EUA contra os desejos de mudança de parte de sua população)

Assim, o filme traz a mensagem de que a crítica ao sistema pode muito bem deixá-lo pior, com um custo altíssimo para restaurá-lo e, a partir daí, operar mudanças gradativas, e não radicais, na sociedade. Ou seja, qualquer alternativa que não inclua a preservação do capitalismo levaria inevitavelmente à desordem, caos e mortes. E que fique a dica: o objetivo real dos vilões do filme era destruir o capitalismo implodindo seu símbolo áureo, Gotham City, não devolvendo o poder ao povo, mas eliminando o câncer chagoso em que se convertera o sistema. Ou seja, se eram realmente anti-capitalistas, mais ainda eram anarquistas. E o Batman é o único que pode vencê-los. 

3- Conclusão: a ideologia liberal e Batman como salvador do Capitalismo

Como dissemos, Bob Kane criou Batman com o fim de torná-lo um rival para o Fantasma, mas mais por motivos ideológicos do que editoriais. O Fantasma era o protetor de uma região oriental-africana fictícia, onde o Estado era débil e inúmeros exploradores tiravam proveito da fragilidade das tribos indígenas e das riquezas da região (uma crítica explícita ao imperialismo), e herdeiro de uma dinastia de combatentes. Seus maiores inimigos eram os piratas (europeus...), a quem sempre vencia com a ajuda dos povos da selva (os explorados). Ele era o grande campeão dos fracos e oprimidos, uma figura lendária e aparentemente imortal (pelo fato do pai suceder o filho).

Batman foi apresentado como um homem rico que, ao fazer justiça com as próprias mãos, buscando muito mais objetivos próprios (a vingança contra a classe criminosa que matara seus pais), acabava por assegurar ao próprio sistema capitalista sobrevivência diante dos grandes chefes do crime organizado. Sem nenhum superpoder, além de sua inteligência e fortuna, Batman conseguiu derrotar as maiores ameaças à civilizada sociedade de Gotham City

Ou seja, temos um homem (individualismo), que busca o bem próprio (egoísmo), e, com isso, acaba beneficiando a própria sociedade, sem a ajuda do Estado ou mesmo contra este e sua corrupção (uma apologia direta ao Estado-mínimo e ao liberalismo extremado). O homem por trás da máscara, porém, é um sujeito solitário e bilionário, que usa sua fortuna em grandes pesquisas técnicas (progresso e benefício individual acabam por fazer avançar a própria sociedade) e obras de caridade (a filantropia é clássica dentre os ricos americanos), movido por opções éticas auto-impostas (autonomia da vontade), não por uma determinação estatal ou legal. O Batman clássico é o mais autêntico herói americano que personifica os valores individualistas, liberais e morais que tornaram os EUA uma grande nação.

Seguindo o modelo do Batman clássico dos quadrinhos, Nolan apresenta, no decorrer da série, um homem que busca combater mais os efeitos da crise do sistema do que o próprio sistema. Com a ajuda de poucos aliados, procura deter a criminalidade sem eliminar sua causa evidente, a grassante desigualdade social tão bem contextualizada no filme. Contudo, contra o herói dos quadrinhos, o Batman não é um defensor da ordem estabelecida; ele próprio admite que sua ação é apenas uma paliativo ou mesmo um símbolo (“A ideia era ser um símbolo. O Batman poderia ser qualquer um”, diz Wayne, em determinada passagem do filme) pelo qual a cidade se recuperaria pelas suas próprias instituições civis e pela própria vontade popular, muito bem materializada no segundo filme da trilogia (o melhor, diga-se) na figura de Harvey Dent (o promotor que se tornaria o Duas-Caras). É precisamente a ligação dos problemas de Gotham à desigualdade social que está a diferença ante os Batmans clássicos para o de Nolan.

Batman abre passagem para uma nova era em Gotham, onde o crime- materializado pelas quadrilhas de tráfico de drogas-, visto como câncer causado pelo desemprego e desigualdade, é na também o motivo perpetuador (em um círculo vicioso,onde o efeito aumenta a causa, a desigualdade) para essas últimas, já que corrompe o Estado, afasta investimentos geradores de empregos e cria a atmosfera de terror social que favorece a desunião e individualismo (o "salve-se quem puder''); com a queda do crime organizado, em uma guerra onde Batman é o melhor soldado (e "um exército de um homem só'') e o comissário Jim Gordon é o general, os investimentos retornam a cidade, o Estado pode retomar suas funções básicas e as pessoas finalmente obtêm paz e ordem social asseguradas para crescer economicamente e diminuir o fosso social, já que o círculo vicioso é quebrado (o crime não alimenta mais sua causa, a desigualdade, monopolizando o Estado ou afastando investimentos honestos). Tanto é verdade que, aos poucos, a suja e sombria cidade de Gotham dos primeiros filmes de moderniza, areja-se (perde seu ar sombrio), limpa-se estaeticamente e se torna uma manifestação visual da ressurreição da prosperidade. Assim, contra o individualismo, o Batman nolaniano prega mais cooperação social, mais coletivismo.  A repressão derrotou o crime, a trava que emperrava o funcionamento da sociedade; a roda do capitalismo liberal voltou a girar. Desnecessário dizer que os alguns grandes inimigos de Batman não são terroristas megalomaníacos nem criminosos de rua, mas mega-empresários ambiciosos e sedentos pelo lucro, verdadeiros super-vilões (mas que são minoria, diga-se...).

O segundo filme, "O cavaleiro das trevas'', é a ponte entre a Gotham arrasada do primeiro longa e a aparentemente recuperada do terceiro. Nele, a derrota dos principais criminosos, favorecida por uma união entre o Morcego, Jim Gordon e o promotor Harvey Dent, abre um vácuo para que um perigo muito maior ganhasse força. O Coringa (Heath Leager) personifica uma contestação a Gotham, em aparentes acessos de loucura deliciosamente lúcidos; junto com o Ras Al Ghul do primeiro filme, é apresentado como um "terrorista'', que mergulha a cidade no caos e leva os aparentes heróis ao cúmulo do desgaste, fazendo-os revelarem partes sombrias de suas personalidades. O grandioso conflito entre bem e mal, dentro de cada homem, é a brilhante marca do segundo filme, onde o crime organizado é definitivamente derrotado a um altíssimo custo para Batman e seus aliados.

O que brilha no novo filme, um pouco menos que nos dois últimos, é a reflexão sobre uma forma alternativa de resolver os graves problemas do capitalismo. Aqui, Bruce Wayne é apenas um homem com grandes limitações que dá início a um processo em cadeia que muda a sociedade. Ele é a corporificação de uma proposta política de reforma do capitalismo, mas pela derrota das forças de contestação ao sistema (ou de seus resquícios), e da restauração do Estado-repressor. A desigualdade social, a causa da decadência de Gotham (dos EUA) permanece intocada, beneficia pelas obras filantrópicas de altruístas como Bruce Wayne, como fica patente no filme. Quando Batman se retira da cena, no fim do filme, é legitimamente homenageado como herói; mas qual o horizonte de possibilidades para Gotham (EUA)? 

Só há uma resposta. A simples restauração dos valores americanos, que superarão a maior crítica a si mesmos em nome da ordem e da possibilidade de um futuro. Como a crítica ao sistema parte de seus findamentos (economia) ela procura implodi-lo dali (como as revoluções, partir da economia ou infraestrutura para a superestrutura, a política), mas a resistência brava da polícia (Estado), cujo símbolo é o homem-morcego (mediante sacrifício de ambos) garante a subsistência do sistema.

E quem é Batman?

Batman é a corporificação de um espírito altruísta do capitalismo. É forte, as vezes desacredita de si, solitário, emotivo, um bilionário que usa sua fortuna para o "bem''. Dispõe dos melhores meios técnicos para vencer a contestação ao sistema, ostenta valores nobres, é a própria personificação da ordem: os grandes empresários podem salvar a sociedade, mesmo que inicialmente a margem do Estado, embora, no fim, trabalhem juntos. É, ainda mais, o salvador que todos gostariam de ter, mas apenas um homem como outro qualquer, um homem que poderia ser qualquer um. Eu ou você... Nolan convida seus telespectadores a despertar seu "Batman interior'', tomar as rédeas da situação de lutar pela preservação da sociedade e da dignidade dos valores americanos. Veja a sugestiva e já citada frase de Wayne, no filme: "a ideia era de que o Batman fosse um símbolo... qualquer um pode(ria) ser o Batman...''.

O que é um avanço, já que qualquer um pode ser o Batman, o elo simbólico (sempre simbólico) que dá início à reação em cadeia que enseja o renascimento do sistema. Aquele que luta contra os pretensos revolucionários lunáticos que querem apenas destruir a sociedade tão duramente construída. É um relativo passo que o liberalismo do filme dá rumo à democracia. Mais que isso, une democracia e liberalismo, já que o Batman não é um homem que busca exatamente o bem da sociedade, mas um sentido para sua vida e uma forma de vingança pelo que sofreu.

Assim, diante da crise do capitalismo e da explosão das contradições sociais nos EUA, a mensagem do Novo filme de Nolan sobre o Morcego é clara... resistência, fé, nos valores liberais, confiança na justiça que não tarda, na restauração do Estado-repressor (que não puniu os criminosos de Wall Street). E, então, qualquer um pode ser um super-heroi, mesmo cheio de dores, medos e dúvidas, como Bruce Wayne. E, mais que tudo, cujo único poder é a capacidade de ser um símbolo para os seus pares. Os EUA (Gotham), assim, podem renascer da imensa crise onde se encontram. (Nos quadrinhos, na saga "Queda do Morcego'', Bane derrota Batman e, numa imagem magistral, o deixa aleijado; quebram-se as pernas que sustentavam o símbolo dos valores americanos. Será que os Banes que ocupam Wall Street vão conseguir vencer o Batman capitalista?)

Batman- O cavaleiro das trevas ressurge é a esperança, em forma de filme, de vitória do capitalismo e soerguimento de uma grande nação, que vencerá seus males e voltará a ser a grande potência condutora do progresso humano. Vamos aguardar para ver, então, se nossos Batmans vão salvar o país do Tio Sam da grande explosão revolucionária ou se sucumbirão, com suas Gothans, no fogo da renovação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário