quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A "Pátria Educadora'' do governo Temer: para manter a ordem


O bom da nova burrice do governo Temer é promover uma discussão necessária sobre a educação brasileira. Mas, como tudo nesse país, é mais um debate que nasce ideologizado e partidarizado. 

Particularmente me preocupa quem deseja “flexibilizar’’ o currículo escolar ou mesmo extingui-lo, deixando para as crianças e pais a tarefa de “escolher’’ o que vai ser ensinado, um “self service’’ de disciplinas e conteúdos.

Isso por que, se tem uma coisa que aprendi como ex-estudante de Licenciatura em História, é que o ser humano possui diversos tipos de racionalidade e inteligência (inteligência emocional, discursiva, reflexiva, lógico-matemática...) e que cada ramo do saber e conteúdo ministrado estimulam essas capacidades distintas. É só assim que uma delas vai aflorar e guiará nossa futura escolha profissional: sim, você pode nunca mais ter que realizar uma equação, mas ela ajuda a desenvolver um tipo de inteligência que “puxa’’ as demais e te deixa com mais embasamento para escolher o caminho mais adequado às suas capacidades.

Exemplo? Platão era um filósofo, talvez o maior que já existiu. Mas todas as suas fantásticas ideias, que influíram principalmente nas “ciências humanas’’, foram germinadas enquanto ele fazia cálculos matemáticos e geométricos, “forçado’’ por seus mestres... e se Platão fosse um estudante brasileiro e detestasse as “ciências exatas’’? Será que ele desenvolveria um pensamento tão complexo sem a inteligência lógica que deixaria de adquirir? É isso mesmo. Platão ficaria na caverna e nunca sequer pensaria em "sair para a luz''!

E aqui vai a principal lição que as ações irresponsáveis do governo Temer e seu ministro da educação nos levam a concluir: a educação não é terra de ninguém, a ser “flexibilizada’’ e moldada de acordo com o “gosto’’ das pessoas, ainda mais a partir de uma “canetada’’ imperial feita às pressas, mas um ramo do saber em si, com profissionais habilitados – os professores – que precisam de valorização, investimento, consideração, respaldo.

Por que o grande problema da nossa educação não é o que se ensina ou o que se deixa de ensinar, mas o “como se ensina’’: nosso problema é metodológico, didático. O professor precisa ser formado para, acima de tudo, saber lidar com a interdisciplinariedade; e muitos são, mas com salas de 50, 60, 70 alunos, auferindo um dos mais baixos salários para professores do mundo, sem qualquer estrutura física, sofrendo cobranças constantes e “canetadas’’ ingratas (aumentar a jornada do ensino médio pra 7 horas? É sério isso, gente?).

Não há liberdade real para o aluno sem investimento no professor, sem o ensino de conteúdos mínimos (sim, o currículo é desenvolvido, ou deve ser, por profissionais que estudam anos para tal, com o fim de proporcionar ao estudante o mínimo para que possa escolher o que seguir...), sem investimento NA ESCOLA?

Educação não se faz com ideologia, com canetadas ou proselitismo. Se faz com trabalho, e enquanto continuarmos MARGINALIZANDO nossos trabalhadores educacionais (agora, qualquer um que tiver "conhecimentos relacionados à matéria'' poderá dar aula, sem necessidade de ter licenciatura!) e consagrando a Escola como terra de ninguém, a retirada de Sociologia e Filosofia do currículo obrigatório só será uma pequena parte daquilo que já toma ares de projeto: o de sucateamento e precarização da educação, como parte de um projeto de poder maior para manter o Brasil exatamente como é. Um país governado por um golpista que transformou 8 mil refugiados em 90 mil diante de uma reunião internacional; um país onde a lei diz “a prisão é medida excepcional’’, mas que termina se tornando a regra por causa de “interpretações’’ duvidosas; um país onde uma empresa (a Samarco) despeja milhares de toneladas de lama tóxica em cima de uma cidade, por anos, e ninguém percebe nada de errado, já que “ninguém mais usa química depois da escola’’; um país onde um ex-ator ruim tem mais acesso ao ministro da educação do que os melhores profissionais da pedagogia; um país onde, pela falta de conhecimento, tudo se reduz à uma ou outra ideologia, enquanto vamos para o buraco.

E “Pátria educadora’’ era o lema do governo. Foi, sem dúvidas, uma sinistra profecia. Se a educação é revolucionária, então ela será a primeira vítima dos inimigos do progresso e amantes da "ordem''. A "ordem'' que tão bem conhecemos.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Pernambuco sob o domínio do medo: do caos sempre surge um tirano


As pessoas tem medo de dizer claramente o óbvio do óbvio. Pois bem: o governo de Pernambuco perdeu inteiramente o controle da segurança pública, e no pior momento possível. Veja a sequência dos desastres só este ano: fuga em massa da Penitenciária do Barreto do Campelo (53 foragidos, número desconhecido de mortos e feridos); três dias depois, fuga em massa do Complexo do Curado (vulgo Aníbal Bruno), com direito a explosão do muro, duas mortes da fuga e especulações de até 100 prisioneiros fugitivos; crescimento de 38% no número de assaltos a ônibus na Capital (com picos de até nove assaltos a cada 24 h); quase 60 assaltos consumados a bancos (a maioria no interior, com uso de armamento de guerra e totalmente livre da ação da polícia) e mais de outros 50 tentados, um aumento de mais de 30% (alguns falam, extraoficialmente, em até 300%!).

O último dado que explicita o descontrole da situação é o crescimento rápido da taxa de homicídios, em mais de 10%, e o assustador número de assaltos a mão armada (dados raramente divulgados, curiosamente) - nesse sentido, apesar do total de estupros ter caído, as mulheres são os alvos preferenciais dos assaltantes. O pior mesmo é a famosa "cifra oculta'': milhares de crimes que ocorrem todos os dias e que jamais chegam ao conhecimento da polícia. No cotidiano, arrastões no Recife Antigo, no Parque Treze de Maio e em Boa Viagem, homicídios em cidades interioranas e antigamente tranquilas como Caruaru, Arcoverde e Petrolina mostram que todo o Estado está prestes a entrar no colapso de um estado de guerra.

Como é impossível aguentar a pressão por tantas catástrofes, o governador vem se movendo o mais rápido que pode. Fez dois concursos para aumentar os efetivos das polícias, mas não está interessado em fazer o óbvio, talvez por medo: reconhecer que a atual estratégia de segurança pública é um desastre e rever todo o sistema do zero. E isso parte da necessidade de finalmente enxergar que somente contratar mais pessoal não resolve. As forças de segurança precisam de um soldo digno (atualmente, PMs e Civis recebem uma das piores remunerações do país; os civis, principalmente delegados, vivem em estado de quase greve nos interiores por que o governo não manda dinheiro nem para a limpeza das delegacias), treinamento capacitado e modernizado em técnicas não-letais, restruturação de equipamentos (viaturas, coletes, armas de fogo), e essencialmente, investimento no setor de inteligência, com o mapeamento das zonas do crime, elaboração do perfil dos criminosos e, o que é mais importante, desarmar a bomba relógio dos presídios e das penitenciárias do Estado, que no fundo estão na origem, ao lado do descaso do governo, desta onda de crimes que tomou o Estado (a maior parte dos criminosos é reincidente e pertence a gangues baseadas em presídios). Se vivemos uma crise fiscal que impede maiores investimentos, pelo menos na área da inteligência se precisa focar.

Ora, se é no setor de inteligência que está o problema, não é admissível que a Polícia civil continue sucateada, subfinanciada, com apenas 40% da capacidade, baixíssimos salários e nenhuma logística para a investigação. Já passou da hora de se montar uma operação de grande escala, por exemplo, para desmontar as quadrilhas de roubo e desmonte de veículos (crimes que vem batendo recordes) e de assaltos a bancos (esse nem se fala); mas quando nos perguntamos por que tal operação não existe, a resposta está na cegueira do governo, que continua a crer que a Polícia Militar vai dar conta do recado. Polícia esta pouco equipada, mal distribuída (existem municípios onde, pasmem, há apenas dois ou três policiais) pelo território do Estado e totalmente despreparada, do ponto de vista da inteligência, para derrubar tais quadrilhas. E não é de se surpreender, pois tal missão é da polícia civil e do seu setor de inteligência, que o governo insiste em sucatear: o caminho para a redução da violência passa pelo fortalecimento da Polícia civil, não da polícia militar - se cada uma cumprir seu papel, dentro de uma mesma estratégia de inteligência coordenada, o Estado desorganizado pode ter uma chance contra a criminalidade.

De outra banda, outro grande problema, na verdade a matriz desse gravíssimo quadro de instabilidade social, é a não-reinserção dos antigos detentos, presidiários e afins na sociedade. Enquanto não forem pensadas estratégias alternativas que viabilizem penas alternativas, ou o cumprimento das condenações em colônias agrícolas e industriais, com o acompanhamento psicológico e de qualificação profissional do preso, não se poderá matar o motor da criminalidade.

Mas para fazer tais movimentos, o que é mais importante é aceitar que Pernambuco corre o gravíssimo risco de sofrer com o mesmo destino do Ceará (que começou com índices absurdos de violência fruto em última instância de crises no sistema penitenciário): de amargar ver a queda dos índices de criminalidade pela ascensão ao poder, dentro dos presídios, do Primeiro Comando da Capital, que dominou Fortaleza e impôs uma drástica redução de homicídios para maximizar os lucros com seu império das drogas, contrabando e atividades ilícitas. Ou nós agimos para retomar o controle da segurança pública, ou a criminalidade "desorganizada'' se organizará para construir um Estado paralelo e por em permanente risco todos nós.

O Ceará já foi tomado pelo PCC. Até marcha comemorativa a população humilde fez, para celebrar a queda dos homicídios decorrentes da instalação do império criminoso. Pernambuco está no mesmo caminho, e, se o governador não agir rápido, vai entrar para a história como o governante que entregou Pernambuco, o Estado que expulsou os holandeses do Brasil e se rebelou diversas vezes em nome da liberdade, para a tirania de um império do crime. Ou escolhemos combater o crime com inteligência, nos dois sentidos (e não com mera truculência), ou nos curvamos a deixar que os próprios criminosos resolvam a situação.

Em suma, vivemos com medo de admitir o óbvio e mesmo de brechar pelas janelas; o governador tem medo de admitir que perdeu o controle do Estado; os policiais, seres humanos como nós, também tem medo de ir trabalhar e não mais voltar; e só quem não tem medo, esta terra de ninguém, são os criminosos. Como já dizia um famoso escritor, é em situações de completo caos que os homens preferem ver um tirano no poder do que perder suas vidas, mas nem mesmo Thomas Hobbes poderia prever o que aconteceria quando aqueles que deviam pagar pelos seus delitos é que estão no poder: no nosso caso, o Leviatã sentado no Palácio do Campo das Princesas vai ser domado por uma Hidra cujas sete cabeças se espalham por todo o Brasil. Não é uma propaganda de televisão que vai cortar as cabeças da fera.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Contos privados do governador de Pernambuco - O julgamento final (parte um)




O governador esfregou os olhos preguiçosamente. No relógio da parede, as cinco da tarde chegavam sob cada pequeno avanço do ponteiro dourado e com uma brisa suave, mas gélida, eriçava os pelos do braço forte do primeiro mandatário do Estado. Parecia um aviso, um alerta; talvez o cochilo diário da tarde fosse acompanhado pela fatura que só pecado da preguiça pode gerar.

Levantando-se, apanhou seu celular na mesa de mármore da sala, deixando sua amada varanda para trás, arrastando os pés. Com um esgar de aborrecimento, notou as mais de dez chamadas perdidas e um permanente toque anunciando a chegada de diversas mensagens de aplicativos. Não era justo que até a paz do domingo lhe fosse negada. Tinha convicção, nesse sentido, de que homens de bem não faziam nada aos domingos e só as raposas, bandidos ou vagabundos se ocupavam de ofícios quaisquer no dia que foi reservado pelo Sagrado para o descanso. Pensava isso não por que fosse religioso: afinal, aproveitar-se daquilo que aos seus olhos eram as coisas boas da religião e dispensar as ruins e irritantes (como ajudar ao próximo e falar a verdade) já havia se tornado um hábito.

O que teria ocorrido? Aliados insatisfeitos? O governador pensara que os pedaços de governo que havia jogado no chão para os “aliados programáticos’’ bastavam. Uma rebelião em algum presídio? A bronca dada aos diretores dos estabelecimentos, com ameaças de desoneração (o que implicava a queda de boa parte da camarilha que acompanhava cada gestor), poderia por medo até no PCC. Possibilidades de alguma aventura de alcova? Ah, isso o interessava, mas, ao verificar as mensagens, só notou contatos masculinos. Podia então se dar ao luxo de tomar um banho relaxante. A única coisa que fez antes de se encaminhar para o banheiro foi passar uma mensagem para seu secretário, ordenando que realizasse uma filtragem daquela imensa e irritante quantidade de informação.

Depois de quarenta minutos e quatro aplicações seguidas de um shampoo anti-queda contra a calvície, fato que muito lhe manchava a vaidade e autoestima, o homem mais poderoso do Estado ouviu a campainha tocar. Ignorando a chamada, continuou a se enxugar, quando ouviu novo toque. Irritado, foi se vestir ao som de mais cinco toques, e a raiva que sentiu o fez suar mais que o vapor da ducha inglesa recém-utilizada. Onde raios estava a empregada?

Se dirigindo para a sala, girou a maçaneta dourada da porta e deu de cara com o secretário de Segurança Pública. No milésimo de segundo entre a porta escancarar e a primeira palavra ser trocada, uma faca cravou-se no peito do governador e rasgou-lhe o coração até as entranhas. Algo estava muito errado.

- Governador, mil desculpas por importunar o senhor em pleno fim de semana... – começou o homem baixinho e calvo, que nada mais era que um servidor público de carreira que ocupava interinamente a pasta. O último secretário indicado, o quinto de uma série tão catastrófica quanto a campanha de alguns times de futebol do Estado (alguns brincavam que a segurança pública do Estado havia caído da “primeira para a quarta divisão’’ em poucos meses), havia caído depois que um ônibus foi sequestrado ao lado do comando da Polícia; mas, pelo menos nesse episódio, algumas vítimas saíram vivas.

O secretário começou, mas não terminou. O governador, desmemoriado da sua rigidez habitual com os subordinados, somente esperava. Não queria apressar notícias ruins. Na sua mente, quanto mais uma catástrofe não fosse por ele conhecida ou ignorada, mais ela podia ser negada diante da mídia com maior sinceridade autêntica.

Enquanto aquela situação se tornava cada vez mais constrangedora pela mudez do subordinado e a impotência do chefe, alguns fogos de artifício eram ouvidos ao longe. Ou ao menos pareciam fogos. O sexto ou sétimo pipoco, no entanto, deixaram o governador mais azul do que já estava: pareciam ser tiros.

- Maciel, o que porra foi que aconteceu? – falou o chefe, numa voz sumida. A atenção de ambos foi desviada pelas portas do elevador, também douradas, que se abriram silenciosamente. Por elas passou um homem alto, com uma barriguinha saliente contida pelos botões dourados da farda da Polícia a frente e um passo ordenado e forte. A gravidade do seu olhar fez o governador ver estrelas. Precisava se sentar.

- Excelência – falou, como o arauto da tempestade – tentamos falar com o senhor desde a hora do almoço.

Comida? Ele estava prestes a coloca-la para fora. Sentia pena pelo delicioso risoto francês se tornar uma pasta gosmenta.

O governador viu as estrelas piscando e sorrindo para ele. Logo o brilho delas foi tão intenso que nada mais via, a não ser uma luz branca que parecia lhe rachar a cabeça e os olhos. A realidade era dor, luz e o nada. Sem tiros, sem desespero, sem aquela notícia brutal congelada na garganta do secretário. Ah, seu belo risoto!

Quanto voltou a si, o primeiro mandatário estava em sua poltrona de couro, sentindo um forte odor de álcool e sendo observado com preocupação pelo secretário e furor pelo comandante da Polícia. Tentou fechar os olhos e ainda fingir que ainda dormia, mas era tarde demais: fora visto.

- Que houve? – murmurou, para ganhar tempo enquanto organizava seus pensamentos.

- Governador, tentamos resistir, mas eles entraram no Palácio. Pegaram tudo e queimaram o resto. E depois... – começou o comandante, quando foi interrompido pelo secretário.

- Senhor, pare! Deixe-o ao menos recobrar o fôlego!

Furioso, o policial esbravejou contra o burocrata, e uma intensa discussão teve início. Como contaram mais tarde, os privilegiados vizinhos do governador ouviram, no meio dos gritos, as palavras “desastre’’, “loucura’’, “impotente’’, “frouxo’’, “encher’’, “rabo’’, “dinheiro’’ e, a mais repetida, “guerra’’. Guerra. E não era letra de música, embora algum MC pudesse compor o sucesso do próximo verão com esses termos.

Ah, não. Não no seu governo. Era hora de chamar o feito a ordem e matar o problema com uma canetada certeira, como de costume.

- Olha – começou, paternalmente – eu já entendi a situação. Maciel – disse, dirigindo-se ao secretário – liga pro chefe de gabinete e manda fazer uma nota oficial. O modelo padrão mesmo.

Revirando os olhos, o comandante da máquina policial bufou:

- Senhor, modelo padrão não vai resolver. Aliás, modelo nenhum, papel nenhum, acho que nem o Exército resolve!

Então a porra era séria. Pegando o controle e ligando a televisão de cinquenta polegadas, com a mais moderna tecnologia de cristal líquido, deu diretamente com a musiquinha do plantão da Globo. Como se fosse iniciar uma descida numa montanha russa, o governador sentiu o estômago cair e desmanchar-se no chão.

“Às quatorze horas desse Domingo, bandidos tomaram o Palácio do governo de Pernambuco depois de enfrentar a PM no que começou com uma briga de torcidas organizadas...’’

As imagens eram feias. Um homem atirou um coquetel Molotov contra as vidraças do Palácio, que explodiram em chamas. Um grupo de policiais do batalhão de choque, com os escudos juntos, recuava e era posto pra correr por uma tempestade de pedras, pedaços de vidro e bombas de São João. Seguiram-se cenas de ônibus em chamas e, ao longe, uma imagem aérea focava o palácio do governo tomado por chamas negras. A repórter finalizava a inserção informando que, em todas as cinco zonas da cidade, foram relatados distúrbios, saques e mortes ainda não contabilizadas - embora  registradas a todo momento.

- Estão chamando de “o julgamento final’’. – sentenciou o coronel.

Puta merda, pensou o governador.

***

Então era por isso que ninguém estava em casa. Teriam todos fugido? Teria sido deixado para morrer na pior série de ataques que a cidade já vira? O governador roía as unhas. Nem nas brigas de colégio se sentia tão só.

Enquanto o tempo passava e os primeiros relatórios lhe eram expostos pelo coronel, percebia-se o quando a situação era desesperadora. E o maldito telefone não parava de tocar, turbando seus pensamentos, que só se dirigiam à uma absurda falta de orientação. Era como estar, novamente, numa banca de sala de aula, prestes a fazer uma prova sobre geografia física ou história, as únicas coisas que davam mais medo ao governador menino do que as sandálias da mãe.

Quando a porta se abriu novamente, o governador foi despertado do seu transe. Mais secretários, junto com o líder do governo na Assembleia Legislativa, entravam na residência do homem a quem deviam seus cargos, privilégios e sua obediência. Todos em pé, formavam um grupo sinistro, como se fossem um Tribunal do Júri e o governador, o único sentado no centro da formação, fosse o réu.

- O senhor deve estar a par – começou o homem desagradável que era secretário da Educação. Era uma herança da gestão anterior – e tão pesada e desagradável que o governador se recusava a decorar seu nome, rebatizando-o mentalmente de “secretário um’’.  – Então nós podemos ser bem francos aqui – continuou, carregando o sotaque pesado de sertanejo  e olhando ao redor – por que nós conversamos no caminho e achamos que a melhor opção é decretar calamidade pública e pedir uma mão do governo federal. O senhor sabe, estamos todos na base, o presidente não vai se negar, sabe, até por que eu mesmo tenho muito trânsito com ele, posso até fazer o contato, mas, claro, a ordem será sempre sua.

O primeiro mandatário detestava aquele tom autoritário e petulante do secretário um. Parecia estar, a todo momento, ameaçando a posição do chefe ao ostentar suas (as vezes superestimadas) boas conexões políticas. Respondeu com um torcer dos lábios que os assessores mais próximos identificavam como um “por mim mandava atirar você da janela, mas é isso mesmo’’. Olhou ao redor e seus olhos recaíram sobre o secretário da Casa Civil, Evandro.

- Veja, não tenho dúvida de que é isso mesmo que Dorival falou. Mas assinar um papel e jogar a bomba pra Brasília pegaria muito mal. Seria tipo um atestado de que não temos competência pra resolver o problema, e veja, já estamos dependentes demais do governo federal na questão das contas – à menção dessa última palavra, o governador fechou os olhos. Aquele era o outro inferno na sua vida. Tanto o era que simplesmente esqueceu do resto da fala do seu secretário.

- Não – falou firme outro homem, um indivíduo repugnante também herdado da gestão anterior, nominado “secretário dois’’ pela sua velha aliança com o secretário um e por compartilhar com ele, igualmente, da ojeriza do chefe do governo. – Quer tirar onda é Evandro? Acha que a gente peita essa bola sozinhos? Saiba você que os policiais estão se recusando a ir pra rua. Eu não culpo ninguém nessa situação. O coronel disse no celular que a munição da tropa acabou antes das quatro da tarde.

O militar assentiu com a cabeça.

- Então manda comprar mais – começou o secretário de Finanças, Murilo, notoriamente conhecido nos corredores do Palácio do governo como “Murilove’’ pela a enorme lista de beldades provenientes da alta sociedade pernambucana que já desfilaram pelos seus braços. – Posso emitir um decreto liberando a receita pra isso. Com o decreto de calamidade, dá pra liberar o dinheiro ainda hoje, liberar no armazém do Exército e já armar o nosso pessoal.

O governador assentiu. Finalmente alguém que, ao invés de contar os problemas, agia para resolver, exatamente como devia ser. Se dependesse dele, somente homens como Murilo estariam no seu governo; mas sabia que não poderia nem dar um passo rumo ao banheiro para cagar sem que algum daqueles crápulas lhe ajeitasse o assento da privada, outro o limpasse e o último desse a descarga. Isso mesmo: para o governador, governar era como ir ao banheiro. Era uma necessidade básica, era incômodo, envolvia sujeira e, ao mesmo tempo, limpeza. Governos bons terminavam leves e limpos; governos ruins, constipados e mau odorentos. E, claro, se alguém tinha que meter a mão na merda – o velho jogo de safadezas, compras de voto, venda de cargos etc. – eram seus três secretários sem nome. Nesse ponto, a atenção do governador se voltou para o último daquela tríade sinistra encarregada dos negócios escusos do governo.

- Tem que dar as caras. Nessas horas é muito importante que o povo e a mídia vejam o que seu governador tem a falar da situação, até pra tranquilizar enquanto a gente trata de saber mais do que ta acontecendo. Eu digo mais: se o senhor for pra rua, acompanhar os trabalhos da polícia, for como um general na frente de batalha, acho que isso reverte um pouco pra gente -falou, com um sorriso enrugado, aquele ex-governador que hoje era o secretário da Agricultura e, secretamente, o “secretário três’’, o líder do trio parada dura que controlava parte da base do governo na Assembleia legislativa.

Foi a primeira vez que naquele furdunço todo o governador teve vontade de rir. Como seria interessante para esta velha raposa se ele, o chefe, fosse alvejado e morto pelos bandidos, gerando um clima de comoção que podia muito bem ser aproveitado por aqueles que “voltariam nos braços do povo’’ para salvar o perdido e órfão Estado de Pernambuco...

- Mas isto seria uma idiotice – falou, com franqueza, o coronel comandante da Polícia. Era um homem severo e seco, mas leal e honesto, até onde se sabia. – O melhor agora é arranjar a munição mesmo. E mais importante, não deixar que essa informação vaze.

Puta merda, pensou o governador. Leal e franco, mas as vezes burro como uma porta era esse comandante. É óbvio que alguém naquela sala iria vazar a notícia de que as forças policiais estavam sem munição para enfrentar a bandidagem. A pergunta era em quantos minutos a notícia seria postada em algum blog.

Era hora de agir.

- Murilo, faça o que você disse por favor, imediatamente. Você, o coronel e o Maciel, por favor, vejam se podem ir adiantando isso agora. Eu vou falar em público sobre isso, não se preocupem. Mas peço que nenhuma declaração seja dada até que eu mesmo esclareça as coisas para a imprensa. Moreira. Alguém conseguiu contato com o Moreira? Maciel, liga pra ele, diz pra ele agendar isso aí direitinho. No mais...

O celular do secretário três tocou espalhafatosamente, cortando a fala do governante. Com brilho nos olhos caídos, o secretário atendeu e estendeu o aparelho para o governador. Quem estava na linha era o presidente da República.

“Será que isso acaba?’’, pensou o governador, antes de forçar um sorriso e por o celular no ouvido.

***

Até a meia-noite, os policiais haviam dominado as ruas. Camburões – conhecidos dos filmes policiais como “caveirões’’ – percorriam as ruas, junto com motos, carros da guarda municipal e viaturas. Os dois únicos helicópteros da Polícia varavam os céus e os latidos de cachorros treinados foram constantes durante toda a madrugada. Não fora preciso solicitar ajuda do Exército.

Em termos logísticos, a operação “abafa’’, como foi batizada pela criatividade mordaz do secretário três, foi um sucesso. Foram mais de cento e vinte prisões, quinze bandidos mortos, quase cem mil reais apreendidos e, na grande surpresa da noite, a tropa especial da polícia estourou um depósito, na periferia da cidade, com quase cem quilos de drogas. Telefonemas do secretário de comunicação social, o Moreira citado na tensa reunião ocorrida no apartamento do governador, já tinham consolidado entre a imprensa a versão de que a briga de torcidas na verdade era um desdobramento da disputa entre gangues por um carregamento de drogas que seriam vendidas no jogo ocorrido naquele dia. Assim, a maior parte dos mortos foi transformada em membros de gangues rivais que se mataram. O “cidadão de bem’’ havia sido preservado pela rápida ação da polícia, que abriu mão de proteger o Palácio do governo para combater os marginais em diversos pontos da cidade.

E como aqueles jornalistas sabiam trabalhar. Foram entrevistados policiais, empresários e trabalhadores, estes à beira das paradas de ônibus, indo trabalhar com aparente tranquilidade, sob o olhar vigilante das constantes patrulhas. O governador até conseguiu comer suas panquecas com certa satisfação no café da manhã, enquanto assistia o jornal matutino.

A bonomia acabou quando um jornalista tomou as declarações do líder da oposição, o professor, poeta e jurista Demócrito Pinto, em meros vinte segundos. As acusações foram pesadas e, aos olhos do governador – que sabia que seu governo não era de jeito nenhum “limpo’’ – até mesmo injustas. Tudo começava com descontrole das contas públicas, cortes no orçamento da segurança e gastos descontrolados com obras (sim, era época de eleição municipal e os candidatos do governo precisavam dar um up grade em suas gestões) e ia até o famoso decreto do governador que regulava, no âmbito estadual, as torcidas organizadas. A conclusão do opositor era de que o governador recebera propina das torcidas organizadas para liberar suas atividades e, enquanto metera o dinheiro no bolso, passara a tesoura no orçamento dos policiais e sucateara a tal ponto a estrutura da polícia que os agentes estavam totalmente despreparados para um evento como a briga que terminou fazendo o palácio do governo arder.
Nas manchetes dos principais jornais da capital, o ataque ao palácio fora destaque. Mas mais destaque ainda foi a velocidade do governo em sufocar o tumulto, com uma enorme foto do governador, cercado por microfones, ao fazer uma coletiva de imprensa no pátio da Assembleia Legislativa. Para demonstrar que a segurança estava de volta, o governador retornou para casa sem escolta. E os comentaristas políticos, muitos deles dependendo do “patrocínio’’ governamental para fazer suas viagens de férias para a Europa, fizeram a festa exaltando a “coragem’’ do líder máximo do Estado.

O governador se sentira tão bem que passou em um endereço pouco conhecido, antes de voltar para casa, mas dessa vez sob escolta, visto estar longe dos olhares da imprensa. Quando saiu daquela cama perfumada, era um homem renovado. O que uma hora de prazer não fazia para despertar o estadista que dormia nele?

Uma notícia menor, contudo, lhe chamou a atenção. “Procurador de Justiça denuncia Romualdo Nunes ao TJPE’’. Romualdo... e não era que esse camarada era do seu partido? Resolveu telefonar para o líder do governo na Assembleia, que se mantivera estranhamente silencioso durante a reunião do dia anterior. Até parecia tenso, muito mais que os demais presentes. Algo ali fedia a merda.

- Ô Marcos – disse o governador, quando o aliado atendeu – você viu o jornal nessa manhã?

- Sim governador. Parece que no fim deu tudo certo.

- Tudo certo o quê, rapaz? Você viu que denunciaram o Romualdo? Que negócio é esse?

Do outro lado da linha, o deputado demorou alguns segundos para falar. Estava escolhendo as palavras certas.

- O senhor não tem que se preocupar com isso, sabe como essas coisas demoram. Não foi nada demais, só um problema aí com umas licitações na época que ele era prefeito. A gente tá traçando uma defesa pra ver a melhor maneira de sair dessa.

- Sei. Mas antes de fazer, me dê um toque. Olha – mudou de assunto – hoje vocês vão votar aquela proposta né? Tá tudo certo pra todo mundo da base aparecer?

- Tá.

-Então tá certo. Eduardo, já falou com ele?

- Tá tudo falado.


- Tá bem. Me dá um toque quando resolver isso aí.  

Mal sabia o governador que somente havia uma única coisa resolvida, e ela não era, de forma alguma, interessante para ele. 

(continua)

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O "suicídio'' de Dilma Rousseff


Apelar ao passado pode engrandecer ou humilhar ainda mais. A tentativa orquestrada por Dilma Rousseff de se igualar a Getúlio Vargas, no aniversário do famoso suicídio, soa como uma caricatura. Mas caricaturas não são meras piadas; em suas ironias, trazem verdades que golpeiam todos os "lados'' envolvidos na novela do impeachment.
E de todas as ideias quem vem à tona, a de "injustiça'' é a que mais combina com os defensores e opositores de Dilma nessa confusa comparação com Getúlio. Era irônico que um ex-ditador defendesse seu direito de terminar seu mandato democraticamente conferido, mas pensar de outro jeito significava clara injustiça com a vontade popular. Hoje, é "injusto'' que Dilma caia sem ter cometido crimes de responsabilidade (ou pelo "pequeno'' grau ofensivo dos mesmos, se existentes; pessoalmente creio que estes não aconteceram, nem o processo de impeachment seria cabível, mas não trato disso aqui) por ser um desrespeito com a vontade das urnas; e é igualmente injusto que ela, com o apoio de menos de 10% da sociedade e depois de ter destruído a economia do país como nem a crise de 1929 o fez, almeje voltar ao poder.
Nesse combate de injustiças que se acusam, há, no entanto, um elemento em comum com 1954: a vontade popular vem sendo continuamente desrespeitada. A guinada que tanto Dilma quanto seu sucessor deram (adotando o jeitinho PSDB de governar) não foi chancelada pelas urnas em 2014 e só poderiam ser autorizadas, de tão marcantes que são, por uma nova eleição que praticamente nenhum ator político relevante deseja. O verdadeiro "golpe'' está aí, quando a "democracia'' resolve seus problemas sem o "povo'' que a alimenta com o dinheiro de seus impostos, em um grande "acordo'' capitaneado pela escória política da nação.
Esse mesmo povo queria Getúlio, o trabalhismo e o nacionalismo governando; e essa vontade foi traída quando o presidente foi forçado ao suicídio. Nessa mesma linha, não é o impeachment de Dilma, no caso, que consuma a falência e o rompimento do Estado democrático de direito, mas sim o fato do projeto eleito nas urnas ser jogado no lixo e outro não brotar da mesma fonte do primeiro. Sim, da "vontade'' popular.
Mas a história se tornou farsa quando, enquanto Getúlio deixou uma carta testamento que cristalizou um patrimônio político maior que ele, Dilma não deixa absolutamente nada a não ser o desastre. Totalmente perdida e despreparada, foi vítima de suas próprias alianças suspeitas, as relações perigosas com corruptos notórios (que, para variar, a traíram na primeira oportunidade), da incapacidade de simplesmente dar uma motivação para sua permanência no cargo. Dizer que "é meu direito ser presidente'' não tem força para anular os milhões de direitos por ela violados em suas decisões políticas.
No fim, na véspera do início do julgamento final do impeachment, uma única conclusão se impõe, e uma razão assiste a quase ex-presidente do país: o atual governo "interino'' não tem legitimidade (do ponto de vista de ter um conteúdo programático aprovado pelas urnas, não da lei em si) nem relevo moral e ético (um governo integrado por diversos investigados, condenados e asseclas do coronelismo) para estar no poder.
Chegamos, perigosamente, perto do Brasil pré-1930, onde oligarquias políticas racharam o país e o governo em zonas de influência enquanto se unem para evitar perder o poder (a reforma eleitoral de 2015, que favorece coronéis, pastores e subcelebridades; a tentativa de desmontar o SUS para agradar à máfia dos planos de saúde; a estranha e apressada modificação das regras de exploração do pré-sal; e, escandalosamente, a operação de salvamento montada para salvar Eduardo Cunha) e submeter o país a um projeto contramajoritário, do jeitinho que a UDN quis fazer na época de Getúlio. Mas enquanto tivemos no passado um estadista que se matou para evitar essa tragédia, hoje temos uma presidente que, mais que uma suicida, já é um fantasma: além de ter contribuído diretamente para toda essa situação, vai ser um símbolo a nos assombrar por toda a nossa história, sempre nos lembrando que, em 2016, por muito mais do que umas pedaladas aqui e ali, nossa democracia faliu por excluir dela mesma a voz do seu povo. Este povo, por quem tantos dizem falar, mas que em vez de "impeachment'' gritou "novas eleições''!

domingo, 29 de maio de 2016

A morte de um sonho



O espaço entre dois sonhos é sempre o mais sombrio. Não é surpresa que, como reflexo disso, ninguém saiba para onde o país vai atualmente. A instabilidade política, regada a crises diárias, é reflexo de algo maior e mais imponente que a simples disfuncionalidade do sistema político-eleitoral: é o fim de um sonho acalentado desde os anos 80, onde uma esquerda modernizadora se aliou ao que se chama de uma esquerda clássica contra uma velha forma fisiológica e oligárquica de política. PT e PSDB eram aliados programáticos; radicalismos do primeiro a parte, convergiam para a social-democracia, embora discordassem nos meios de realizá-la. Sucessivamente, se alternaram no poder, com práticas e políticas parecidas e projetos de poder que se tornaram complementares, no fim das contas. Afinal, a estabilidade econômica do Plano Real – em que pese os sacrifícios sociais para mantê-la – foi a pedra angular da redução das desigualdades da era petista.

O sucesso dos dois governos, no entanto, esbarrou na contradição flagrante da práxis política, evocando o velho ditado de que quem brinca com lama tende fortemente a se sujar; com o tempo, os programas partidários, que encantaram gerações, foram sendo cedidos paulatinamente em troca de uma ou outra medida pontual, até que as negociações com a base aliada congressual, política e regional se tornassem a verdadeira prioridade. Os meios se rebelaram contra os fins. O PT e o PSDB de vinte anos atrás seriam irreconhecíveis hoje: o primeiro adotou receituários liberais e tirou direitos trabalhistas; o segundo defende as bandeiras sociais do primeiro e votou contra o “ajuste fiscal’’ do governo. Fizeram isso premidos pelas alianças – e pelo mais simples desejo de poder, de sua conquista ou perpetuação.

O crepúsculo dos dois gigantes partidários tem um ingrediente especial. Em um país de formação histórica notoriamente anti-ética (onde jeitinhos, malandragens e espertezas são valorizadas socialmente) a bandeira da ética sempre teve forte apelo eleitoral. Vassouras e caçadores de marajás despertam o fascínio popular há muito; com os dois grandes partidos do país, não foi diferente. O PSDB surgiu de uma ala do PMDB que não aceitava que o comando do partido ficasse a cargo de antigos oligarcas e coronéis vindos do velho ARENA; no poder fez pior que o PMDB. O PT dizia ser diferente. Embora a prática da corrupção possivelmente tenha se mantido constante, sem os “saltos’’ que os indignados de plantão costumam atribuir ao ano de 2003, o campeão da ética já enfrenta o segundo grande julgamento de suas principais figuras por corrupção. Acabou o último sonho político de nossa geração, sob os auspícios de um estelionato eleitoral e da crise. Acima de tudo, as contradições inconciliáveis produziram isso.

Se há um espaço de dormência entre um grande sonho político e outro, certamente, na nossa história, sempre houve uma “ponte’’, uma ligação entre passado e futuro. PT e PSDB herdaram uma tradição de esquerda, vagamente nacionalista e modernizadora iniciada desde 1930. Hoje, as pontes estão rompidas. Os velhos projetos, mesmo que atualizados sob linguagens modernas, são incapazes de empolgar – a heterogeneidade social chegou a tal ponto que purismos não são eficazes. Algo deveria nascer das duas experiências antitéticas, mas harmônicas, entre o tucanismo e o petismo. Talvez esse algo cristalizasse o aparato social do Estado com a eficiência econômica e a convivência com uma economia de mercado mais marcante. Infelizmente, a única coisa que se produziu foi exatamente a volta ao poder dos setores políticos que os dois partidos diziam combater no passado. Os velhos asseclas da ditadura, os oligarcas de terno francês, os bacharéis que mal disfarçam sua burlesca gana por cargos e verbas, associados a novos tipos, como fundamentalistas donos de impérios midiáticos e porta-vozes de uma espécie de medievalização tardia. Tem tudo para dar errado e está dando.

Já se vinha preconizando, nas cansadas democracias europeias, a morte das ideologias. No Brasil, algo mais profundo, o próprio sonho geracional que já havia se cindido entre PSDB e PT, filhos pródigos do projeto modernizador, consumou seu óbito com as últimas eleições e todas as movimentações que se seguiram. E teve de tudo: esquerdista defendendo governo de política “neoliberal’’; movimento supostamente apartidário convocando manifestações pelo impeachment de um governo tão corrupto quanto os financiadores secretos de ativistas anticorrupção; uma oposição votando contra um governo que, se mudasse a sigla partidária, seria ferozmente defendido pelos moralistas de ocasião; militantes anti-corrupção que sonegam impostos, pagam propinas e ainda dizem que não vão pagar o pato; movimento dos trabalhadores sem terra bloqueando rodovias e protestando em nome do governo que menos fez reforma agrária na história. É o caos. A contradição matou os sonhos. E os órfãos se digladiam pelo espólio de milhões de corações e mentes que se perguntam agora: para onde vamos?

Dizem que as crises e rompimentos de contradições inconciliáveis são a deixa para o estadista entrar em cena. O famoso “homem providencial’’, típico da tradição caudilhesca e populista, tipo que combina com perfeição a astúcia, o maquiavelismo, o forte apelo popular e a capacidade de conciliação entre os inconciliáveis, pelo bem maior da união nacional. São os pais dos pobres, os homens dos cinquenta anos em cinco, os sonhadores da democracia, o anjo vingador cuja espada faz as divisões na história do país. A atual prática política privilegia, ao contrário, o político radical, hipócrita, beberrão e sectarista. Quando criminosos comuns dão as cartas no jogo da República e assumem a cadeira dos estadistas, que sonho pode resistir ao golpe da morte? Golpe da realidade que engolfa as expectativas não realizadas, até hoje, de cumprimento do espírito da constituição de 1988, relegada a simples peça de poesia?

O governo que dá as cartas hoje é uma múmia. Sua alma já foi rifada em negociatas; o próprio corpo do governo, seus ministérios, já está tão dividido e em mãos tão distintas que nem mais pode ser considerado uma unidade e muito menos ser capaz de qualquer movimento a não ser espasmos de dor. Os discursos, símbolos e nomes mal disfarçam uma tendência inconfessa de agir à “República Velha’’, sem ligar para a vontade popular. Quando o próprio governo foi costurado e gerado, como um verdadeiro Frankstein de partidos e tendências, para barrar uma operação policial que ameaça a própria classe política, o principal feito do governo parece ser uma cópia da missão de Odorico Paraguaçu, o popular coronel de Dias Gomes: construir um cemitério que, ironicamente, será inaugurado por ele mesmo.

Este é o governo Michel Temer. Um grande cemitério para uma classe política que deverá ser extirpada, pelo voto ou pelas sentenças condenatórias, do mapa político. Mas também é cemitério dos sonhos que acalantaram os brasileiros nos últimos 30 anos.

Um ditado latino dizia-se que a morte é princípio da vida. Novos sonhos virão. Novas lutas serão ungidas pelo voto popular. Infelizmente, o desconhecimento que temos hoje das novas utopias é como pular em um abismo. Se a queda não nos matar, nos deixa sequelados, divididos, pequenos, dependentes. Isso só aumenta a necessidade de um novo sonho forte o bastante para nos reerguer.


A paciência nunca foi a melhor virtude do brasileiro. E, como dizia Confúcio, enquanto esperemos pelo amanhecer, acendamos uma vela para iluminar a noite. Ao que tudo indica, depois de duas semanas de “governo interino’’, ela será longa.

terça-feira, 12 de abril de 2016

PMDB, codinome escândalo



Os erros e consequências da ditadura militar continuam produzindo graves consequências até hoje. Na política, talvez um dos maiores seja a criação, pelo Ato Institucional nº 2, do sistema bipartidário no país, por meio do qual surgiu o MDB, a sigla de oposição ao Regime, que por longos anos cumpriu bem seu papel. Com a decadência da ditadura, os generais resolveram retomar o pluripartidarismo para dividir a oposição e realizar alianças com setores mais conservadores do antigo MDB, agora PMDB. A nova política, levada a cabo por Golbery do Couto e Silva e pelo presidente Geisel, inaugurou as primeiras pontes entre o PMDB e o governo federal, fortes o suficiente para permitir um verdadeiro êxodo de políticos integrantes do PDS (partido de sustentação da ditadura) para o PMDB, levando, com eles, toda sua malha de prefeitos, vereadores, governadores e deputados. O exemplo mais famoso foi José Sarney, antigo líder do Regime no Congresso, que aceitara ser vice de Tancredo Neves na próxima eleição presidencial indireta.

A aliança de Tancredo com os antigos apoiadores do Regime, agora colegas em um mesmo partido, levou à uma mudança dramática na composição política do PMDB, que antigamente era um partido maciçamente votado nos centros urbanos, pelas classes média e baixa, e se tornou uma sigla com cada vez mais força no interior do país, em cidades médias e pequenas. Isso se explica pela adesão, no apagar das luzes do governo Figueiredo, ao partido de líderes políticos da antiga ARENA, que trouxeram para o partido seus “currais’’ eleitorais.

O Partido cresceu de 40% das cadeiras no Congresso para 53%, no governo Sarney. Após 1989, sofre uma grande perda com a criação do PSDB, que abarcou pelo menos metade dessas cadeiras – saíram boa parte dos membros originais do partido, obtendo o comando do partido aqueles que vieram da antiga ARENA (José Sarney e aliados). Os anos seguintes seriam de recuperação, principalmente quando o partido desistiu de concorrer às eleições presidenciais e focou em conquistar prefeituras e parlamentares. Foi assim que conquistou, em 1998, 2002, 2006 e 2010, as maiores bancadas do Congresso, o maior número de governadores e mais de mil prefeitos, principalmente em centros eleitorais tradicionalmente de domínio do antigo ARENA (Bahia, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Amazonas, Paraíba, Alagoas, por exemplo).

O tamanho do Partido, no entanto, se deve à única vez que ocuparam a presidência, em 1985, com José Sarney. Naquela época, o plano Cruzado havia congelado os preços e estagnado a hiperinflação, artificialmente mantidos até a eleição de 1986, quando o governo do PMDB conquistou 20 dos 21 governos estaduais em disputa. Além de governar praticamente todo o país, a gestão Sarney distribuiu mais de 3 mil concessões de rádio e televisão para políticos e apoiadores – o próprio presidente da República se premiou com dois canais de televisão no Maranhão – que estão na raiz da manutenção de grandes bancadas e prefeituras conquistadas pelo partido.

Assim, controlando as comunicações nas cidades do interior, aliados quase sempre ao governo federal pelo tamanho de suas bancadas e com o poder dos governos estaduais em quase metade do país, o PMDB é a síntese da política brasileira. E, agora, está prestes a reassumir o poder presidencial. Por infelicidade, cumpre lembrar que os métodos nada convencionais do partido em angariar poder e altas votações estão diretamente relacionadas a escândalos graves de corrupção e permitem suspeitar que o antigo opositor da ditadura é o epicentro de um sistema político viciado, durante mais de três décadas. Segue um pequeno histórico policial do partido:


 1- O início: a farra das concessões de rádio e TV pelo governo Sarney.

Tiveram como fim a cooptação de apoio político para que o mandato presidencial fosse estendido de 4 para 5 anos;


 2- Problemas de estatura: os Anões do Orçamento.

 Em 1993 e 1994, a CPI dos Anões do Orçamento denunciou os principais líderes do PMDB. Ibsen Pinheiro (RS), o mesmo que hoje comanda o diretório do RS pelo impeachment de Dilma, foi cassado;  Genebaldo Correa (BA) e Cid Carvalho (MA) renunciaram.

3- Os desvios no governo Orestes Quércia (PMDB-SP) .

Contra o ex-governador de SP foram investigados desvios do Banespa, compra sem licitação de equipamentos israelenses, irregularidades na venda da Vasp e na construção do Memorial da América Latina.

4- Luiz Estevão e o juiz Lalau.

É o único caso de senador cassado. Foi acusado pela CPI do Judiciário pelo desvio de R$ 169 milhões do prédio do TRT de São Paulo, num conluio com o Juiz Nicolau dos Santos Neto.

5- Jader Barbalho e o escândalo do Banco do Pará.

Presidente do Senado, teve que renunciar ao posto em 2001, envolvido em denúncias de desvio de dinheiro do Banco do Pará e fraude na Sudan. Foi preso. Elegeu-se deputado.

6- Joaquim Roriz e os desvios do BRB.

É o senador de carreira mais curta da História. Renunciou em 2007, após 5 meses de cargo, para fugir de processo de cassação. Suspeito de ter partilhado R$ 2,2 milhões desviados do BrB.

7- O casal Garotinho e o dinheiro que nunca chegou aos hospitais do RJ.

Os ex-governadores Anthony Garotinho e Rosinha foram acusados pelo Ministério Público de terem se beneficiado de esquema que desviou R$ 61 milhões da Secretaria da Saúde em 2005 e 2006.

8- O caso Renan Calheiros.

Envolvido em denúncias de que teve despesas pagas por empreiteiras e de que usou notas fiscais frias na venda de gado, renunciou à presidência do Senado para fugir do processo de cassação. Ainda pendente de investigação perante o STF, o senador é investigado pela Operação Lava-jato.

9- Silas Rondeau e a propina das construtoras.

Acusado pela Polícia Federal de ter recebido R$ 100 mil dos diretores da Construtora Guautama, na Operação Navalha, acabou renunciando ao Ministério de Minas e Energia.

10-  Odílio Balbinotti.
Foi convidado por Lula em 2007 para ministro da Agricultura. Antes da posse, foi derrubado por denúncias de que teria desviado dinheiro do BB e forjado documento para facilitar empréstimo.

11-  Newton Cardoso e a eleição que custou demais.
As eleições do ex-governador de Minas foram sempre contestadas por parte dos adversários e foi denunciado por compra de voto por Itamar Franco. Sua ex-mulher diz que tem patrimônio de R$ 3 bi.

12-  O escândalo da Funasa.
Em 2008, o mininstro da Saúde, José Gomes Temporão, acusou de corrupção o presidente da Funasa, Danilo Forte. Apadrinhado de Eunício Oliveira, um dos líderes do PMDB, ele ficou no cargo.
13-  Romero Jucá, o campeão.
Ministro da Previdência de março a julho de 2005, o atual presidente do PMDB foi alvo de denúncias. Entra as principais, desvio de recursos do Ministério da Saúde para a Prefeitura de Cantá (RR). Ainda é investigado pela Operação Lava-jato. Jucá também é o recordista de inquéritos no STF: atualmente, responde a 33 acusações diretas, fora a lava-jato, desde falsidade documental, ocultação de patrimônio e posse de uma concessão de televisão, a TV Caburaí, ilegal para parlamentares. Em 2013, o Ministério Público tentou cassar seu diploma como senador, quando um assessor do homem foi pego pela polícia atirando R$ 100 mil pela janela de um carro.

14-  Ney Suassuna, o Drácula.
Antigo líder do PMDB, foi alvo da Operação Sanguessuga da PF, que investigou um esquema de desvio de dinheiro do Orçamento da União para compra de ambulâncias superfaturadas.

15- José Borba e  mensalão.
Antigo líder do PMDB na Câmara, foi para a cadeia por envolvimento com o mensalão.

16- A caça a Íris Rezende, ex-governador de Goiás .

Acusado de desviar recursos da prefeitura de Goiânia, chegou a ter parte dos bens bloqueados para ressarcir o município.


1    17-  PMDB, o vice-campeão de fichas-sujas.

Nas eleições de 2012, o PMDB possuía 49 políticos cassados ou condenados por denúncias de corrupção, logo atrás do PSDB. Em 2014, na lista divulgada pelo TSE com mais de 6 mil nomes de políticos inelegíveis por condenações, principalmente por contas irregulares, a maioria era ou já foi ligada ao PMDB. Fonte: http://www.tse.jus.br/hotSites/tcu/2014/ResponsaveisContasJulgadasIrregularesEleicoes2014_Alfabetico.pdf.


1    18- A prisão de Natan Donadon (RO).

      

O PMDB foi pioneiro ao ter o primeiro deputado condenado e preso da história do país. Natan recebeu em 2010 uma sentença de mais de 13 anos por ter liderado um esquema que desviou R$ 8,4 milhões da Assembleia Legislativa de Rondônia. Após o STF rejeitar seus recursos, ele foi preso em 2014. Apenas em 2013 o PMDB o expulsou.


19- No centro da Operação Lava-jato.


Segundo a PF, Jorge Zelada e Fernando Soares, o Fernando Baiano, foram apontados como operadores do PMDB no esquema de desvio dos recursos da Petrobrás. A missão dos dois era abastecer as campanhas do partido com dinheiro doado legalmente por construtoras, mas obtidos por meio de fraudes e superfaturamentos em contratos com a estatal. O total dessas doações ao partido soma em torno de R$ 20 milhões de reais, segundo a própria Polícia Federal. Nestor Cerveró, um dos ex-diretores da área de contratos internacionais da empresa e envolvido diretamente no esquema, também foi indicado e sustentado no cargo pelo PMDB, que comandava e comanda o Ministério de Minas e Energia, ao qual a Petrobrás é subordinada.


f

      20- Eduardo Cunha, o "picareta-mor'' (apud Ciro Gomes) da República.

     Réu perante o STF, Cunha é acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, em uma operação de venda de sondas para a Petrobras. Segundo a denúncia do Procurador-Geral da República, Eduardo Cunha mantêm contas na Suíça, com saldo atual de U$ 5 milhões de dólares, mas por onde circularam cerca de U$ 470 milhões. Parte do dinheiro sustentou uma vida de luxo por parte da mulher e da filha do presidente da Câmara, com direito a roupas de grife, viagens internacionais e gastos milionários em cartões de crédito.


      Essa foi a lista da vergonha do PMDB. Esse é o partido que vai voltar a governar o país, em meio a uma das piores crises de sua história, causada por um sistema político cuja principal expressão é o próprio PMDB. Tem como dar certo?