sexta-feira, 22 de junho de 2012

Algumas sugestões musicais- Top 10

O gosto musical é uma das marcas da cultura humana. Praticamente todas as civilizações desenvolveram algum uso ritmado de sons, seja com fins religiosos ou para mero deleite, algo que, com a progressiva escalada técnica e científica da humanidade, vem se tornando mais predominante.

Hoje, essa herança cultural vem se intensificando cada vez mais (basta lembrar que, há cem anos, não havia rádio ou meios acessíveis de se ouvir música-os gramofones eram raros e caros-, a não ser ao vivo), e, cada vez mais, o gosto musical da pós-modernidade vem se degenerando, como sintoma da doença chamada relativismo-materialismo axiológico. Contudo, sem mais deliberações filosóficas, aí vão as indicações do Blog para os interlocutores que apreciam uma boa música, relaxante e reflexiva ao mesmo tempo: estudos comprovam que o tipo de música que você ouve influi no padrão de suas ondas cerebrais, tornando-as mais harmônicas e eficientes, melhorando o desempenho intelectual do ouvinte. Outras, por outro lado, obstruem as ondas cerebrais e tem como efeito "fazer com que não se pense'', e apenas se reproduza, corporalmente, o ritmo musical- ou seja, são músicas que, além de não agregar em nada o aporte cultural, ainda prejudicam as atividades cognitivas do indivíduo de mau-gosto que as ouve. Vamos a um pequeno Top 10 das músicas que aprecio- não necessariamente em ordem crescente ou decrescente de importância. Umas mais, outras menos, ajudaram a fundar a parca e frívola personalidade de quem vos escreve...

1- Chevaliers du Sang real- Hans Zimmer

Essa música foi o tema dos filmes "O Código da Vinci'' e "Anjos e demônios''. É ideal para a reflexão de temas filosóficos ou acadêmicos; sua gradação rítmica começa com uma melodia lenta que, ao seu desenvolvimento, se revela cada vez mais densa e monumental, transmitindo a sensação de que se está desenvolvendo o objeto de reflexão rumo à conclusões extraordinárias. A aventura do conhecimento, a delícia da descoberta, o vislumbre da Alheteia filosófica é uma música para quem deseja ver a luz. Seja ela qual for.


2- Linger- The Cranbierres

Apesar de aparentar ostentar uma letra relativamente simples- que conta a experiência amorosa de uma garota, a partir de seu primeiro beijo- o grande hit dos Cranbierres tem o condão de transmitir uma das mais fascinantes experiências da humanidade- a paixão amorosa- em sua melodia.  Está nela presente o sentimento dual da paixão- a intensidade do amor e, por sua vez, toda a tristeza que resulta de sua maculação. O céu e o inferno do amor, presentes em uma música, pela qual é impossível não lembrar de alguém amado. 


3- Arioso- J. S. Bach

Uma primeira impressão pode sugerir que essa música- obra-prima de Bach- tinha como tema o amor. Na verdade, trata-se de uma das passagens da grande obra de Bach, "A paixão de Cristo segundo S. Mateus'', quando o Mestre, em sua agonia no horto, anuncia seu sacrifício aos discípulos (inciando-se com a Santa Ceia). Toda a tristeza de Jesus e a dor de seu sacrifício- ademais, a esperança de sua vitória sobre a morte- estão carregadas na música, que inevitavelmente traz o ouvinte a seus próprios desafios; há sempre um bem maior pelo qual vale a pena sacrificar-se.

4- Canon em D maior- Pachelbel

Irmão de Bach, Pachelbel não fez tanto sucesso quanto este. Todavia, uma obra em particular, que permaneceu ignorada por quase dois séculos até ser redescoberta por músicos românticos do século XIX, retrata a Oração Eucarística solene, chamada "Cânon romano'', de maneira fantástica. Aqui, uma melodia suave, alegre e criativa expressa a união da Igreja, que se concretiza na corporificação de Deus- o pão, resultado do trabalho de todos, é partido igualmente para a coletividade, resultando na alegria (vinho), que é sangue purificador de Deus, que limpa a humanidade de seus pecados. Assim, diferentemente da sobriedade das demais músicas sacras, o Canon eleva o moral interior e, sobretudo, é uma das melhores músicas para o desenvolvimento de atividades cognitivas, sendo muito usada, na Europa, para ninar os bebês- sua melodia harmoniza os padrões cerebrais e permite um "plus'' em seu funcionamento. 

5- My Immortal- Evanescence

Mais uma música emotiva. Como a maioria dos hits estrangeiros, sua letra não é atraente (que, mais uma vez, fala sobre as desventuras amorosas femininas), mas seu ritmo e embalo tristes suscitam possibilidades de grande reflexão. A maior parte dos seres humanos não morre sem ao menos uma decepção amorosa que lhes incomode em alguma medida- essa tristeza, de forma um pouco melosa, mas brilhantemente composta, é uma marca dessa música; há uma ideia de decadência sentimental que traz a lembrança do ouvinte sua própria vivência amorosa desastrosa. Amores impossíveis, rejeições, traições... quem nunca passou por isso?



6- Por una cabeza- Carlos Gardel

Sucesso na próspera Argentina da metade do século XX, Por una Cabeza é considerado o melhor tango de todos os tempos, "el tango de los tangos''. Tem como tema um dos mais populares hobbies mundiais da era de ouro do rádio- as apostas em cavalos- e sua relação com a mulher amada. Mais uma vez, a melodia, espetacularmente composta, transmite o fogo da paixão entre homem e mulher de uma maneira sumamente elegante; é um verdadeiro mergulho na atmosfera dos bairros burgueses de Buenos Aires, onde o romantismo de uma época de ouro da música portenha imperava. Esqueça Paula Fernades ou os pagodes desmiolados. O verdadeiro romantismo está aqui: a explosão, o olhar fulminante, o entrelace de corpos, a externalização dos desejos e a consumação do amor, tudo isso expresso da maneira mais elegante e bela já elaborada, por uma cabeça...

7- The Godfather Theme- Nino Rota

Filmes extraordinários são caracterizados por trilhas sonoras ainda melhores. Nesta composição de Nino- uma de minhas favoritas- parecem estar presentes duas melodias, onde uma delas nos traz ao velho sentimento de família, onde há um fundamento moral para nossas vidas, tão em falta nesses dias de hoje. Esse pilar moral, contudo, não é imune às corrupções oriundas do mundo externo, e, por mais poderosa que seja a família, por mais que a amemos, ela sempre se contamina com essas más-influências. Quem não ama sua família, mas reprova totalmente algumas de suas práticas, como expresso em "O poderoso chefão'', onde Michael resiste a entrar no mundo familiar, representado pelo seu pai, Don Vito Corleone? Tendemos inicialmente  a rejeitar nosso lugar na família, procurando distância dela, talvez com a ilusão da independência e auto-afirmação. Mas, no fim, Michael (e todos nós, de certa forma) assume o lugar do pai, integrando-se a família e, mais que isso, dando-lhe seu toque pessoal, ao mesmo tempo dando continuidade às tradições que a caracterizam (a cultura siciliana, no caso do filme)- algo que é traduzido na música, quando o tema sinistro inicial é substituído, gradualmente, por uma valsa italiana: ao parar de lutar contra a família, mas a ela integrando-se, assumimos o lugar de nossos pais e encontramos o equilíbrio psicológico e afetivo que nos permite desenvolver nossas potencialidades rumo a um destino incrível- note-se que a valsa tem um tema não alegre, mas monumental, pelo qual o ser humano ascende a outro nível, como visto no caso de Michael, que leva o império da família a ser mais poderoso do que nunca. Então, aceitar nossa família (não importa quão doloroso seja) e nos entendermos como sucessores de pais, avós e bisavós- e não meramente ilhas afetivas que surgem do nada, mas como construtores da família -, iguais a eles, são as principais mensagens dessa música memorável.

8- Tempo Perdido- Legião Urbana

A medida em que o tempo passa, o olhar para o passado não nos deixa de vir a cabeça. Quem nunca especulou sobre o que faria, se tivesse mais tempo ou simplesmente já tivesse, em épocas vindouras, a experiência ou saber atuais? Renato Russo pensou nisso, certamente, quando compôs essa obra-prima do Rock nacional, onde a marcha irrefreável ao futuro diante do tempo perdido- o passado- é dada ao lado da pessoa amada. E nela o consolo pela perda do tempo e a incerteza do futuro é uma marca sensível, onde, também, descobre-se o próprio tempo em que devem viver- o presente. Amor, passado e futuro, incerteza, esperança ("mas tenho muito tempo... temos todo o tempo do mundo'', ou seja, o tempo inteiro do mundo para o amor e para amar) são as marcas dessa que foi, é e será a trilha sonora de muitas pessoas, não somente do ótimo filme "O Homem do Futuro'', que retrata perfeitamente o tema da música nas telinhas.

9- Dona da minha cabeça- Geraldo Azevedo

A música regional tinha de estar presente neste post. Entre tantas opções (gostaria de incluir aqui a produção de Luiz Gonzaga, Flávio José e Zé Ramalho, além de tantos outros) escolhi essa porque o artista foi o mais recente que ouvi. Uma música simples, com os ritmos do nordeste nela embutidos, além de sentimentos sumamente humanos, característicos da humildade do homem do interior, da terra e do gado. A alegria de admirar a beleza feminina- e, ademais, a humildade e boa-fé da moça que "não acredita'' que pode ser tão bonita a ponto de ser a dona da cabeça do um homem, algo em falta hoje em dia, onde nossas mulheres são exemplos de futilidade, superficialismo e egoísmo- é uma das marcas do homem nordestino, como a capacidade de admirar e produzir o belo a partir do simples; mais, eu diria que é o manejo do que é simples (os recursos naturais escassos), do humilde (as virtudes familiares e religiosas sem as quais a sociedade nordestina não seria possível), que torna o homem nordestino tão criativo, comunicativo, socializante, alegre e, por sua vez, produtor de grandes obras de arte, tendo a cultura nordestina como o verdadeiro museu ou exposição permanente da obra de arte que ela mesma é- talvez como forma de resistência diante da hostilidade do meio-ambiente sub-árido, com a mensagem de que, em condições extremas, o homem dá aquilo que é seu melhor. A beleza, sobretudo, é em especial admirada por nós nordestinos- a beleza do simples, daquilo que vira a cabeça dos homens e mulheres, em suma, o próprio amor. Quer algo mais bonito, e mais simples?


10- Cálice- Chico Buarque e Gilberto Gil

Apesar de pouco ouvir a MPB clássica, não poderia deixar de rankear uma amostra do ritmo aqui no top 10 do Blog. Da MPB relativamente debiloide e alienada dos atuais tempos quero distância...
A antiga MPB caracterizou-se pela árdua militância política e pela composição de letras de alto valor significativo, que absorveram as aspirações e angústias de uma geração que sofreu com o terrível "cale-se'' dado ao país pela ditadura militar. E é nesse contexto repressivo que a música é utilizada como arma contra a ditadura, ao driblar os censores, visando atingir o grande público através da alta ambiguidade das letras- sendo uma forma indireta de propagandear a queda da repressão e o retorno da democracia. Não só Chico e Gil, mas inúmeros artistas caracterizaram uma era onde a juventude possuia uma formação intelectual, ideológica e política muito superiores a dos tempos atuais- a comparação chega a ser vergonhosa para a atual juventude...-, motivo pelo qual rebelou-se contra o silêncio imposto pela ditadura e pegou em armas, em alguns casos, para derrubá-la. Essa juventude, brutalmente calada pelas baionetas dos militares, envelheceu, perdeu os antigos ideais ou morreu- ou morre, lentamente-, sendo substituída, paulatinamente, pelas gerações formadas sob a hegemonia da Rede Globo e do sistema educacional montado pela ditadura militar, o que eliminou os indivíduos intelectualizados, críticos, independentes e moralmente livres dos anos dourados da política estudantil. Todo um país emburreceu, conformou-se com a ditadura e, por sua vez, após a redemocratização formal, permitiu que os velhos vícios do regime continuassem a calar a sociedade. Hoje, os oligopólios midiáticos cortam as manifestações de protesto contra a ordem estabelecida; o governo continua a sucatear a educação, com os mesmos objetivos e, por fim, o capital continua com sua busca pela mão-de-obra barata e disciplinada. Não aparenta, assim, ter mudado muito a situação do país, embora a aparente liberdade moral e de expressão sejam marcas que distinguem os tempos presentes dos antigos, não sendo, nem de perto, potencializadoras da democracia; talvez mesmo sirvam como válvulas de escape (sexo livre, programas humorísticos, futebol a vontade, críticas pontuais ao governo...), simples interesses mórbidos, que disfarçam o silêncio do brasileiro ante às questões fundamentais da nação, talvez auto-imposto. O Brasil continua a emudecer diante do ensurdecedor eco do "cale-se'', cujo grito ecoou assustadoramente por todo o país, em 1964, que se traduz nas próprias consequências de 21 anos de uma ditadura brutal, cruel e intolerante. A regra, hoje, é devolver o grito com ainda mais força. Afinal, ninguém segura esse país, que vai pra frente, puxado por 190 milhões de semoventes em ação... "Pai, afasta de nós esse cale-se!''

Espero que tenham apreciado este pequeno Top 10. Se desejarem, podem efetuar críticas, sugestões ou simplesmente jogar uma conversa à fora comentando o post. A gente se vê por aqui...

terça-feira, 19 de junho de 2012

O Poderoso chefão

Pelos corredores do Congresso Nacional, a passos lentos e controlados, um senhor simpático desfila, há mais de 50 anos, em belos ternos italianos. Cumprimenta os porteiros, seguranças, agentes de limpeza e, com um aceno, saúda algum aliado pelos funestos corredores da Casa do povo. Sempre cercado por homens de terno, sorrindo, com seu sotaque nordestino se impondo, mesmo a partir de sua voz baixa e macia, de forma quase majestática, sobre os murmúrios daqueles que observam. Esse homem, um idoso de mais de 80 anos, é o homem-chave da política nacional: José Sarney de Araújo Costa. Nada melhor que o capo di tuti capi (poderoso chefão, na Máfia siciliana) do Maranhão para estrear mais uma série de nosso modesto Blog, já que, apesar de sua exposição frequente na mídia, poucos realmente sabem como Sarney entrou na política e como galgou os maiores postos da República. Vamos contar, resumidamente, a história daquele que, muitas vezes, teve o meu, o seu e o destino do país inteiro nas mãos.

Nascido no Maranhão, em 1930, José Ribamar Araújo da Costa (seu nome original), era filho de Sarney Costa, um desembargador modesto e, ademais, mulherengo, que devia o cargo aos favores políticos do governador do Maranhão à época, Victorino Freire. Sua mãe, Kyola, era uma mulher simples. Sarney pai devia o nome à gratidão do pai a um comandante inglês que visitara o Maranhão no início do século, que batizou seu primogênito com o nome do tal gringo: Sir Ney, que abrasileirou-se como "Sarney''. Apesar da família passar por dificuldades financeiras, Sarney Costa educou seu filho no Liceu de São Luís, um centro de educação de alta qualidade, durante os anos 40. De lá, o pequeno ingressou diretamente na Faculdade de Direito de São Luís, onde passou a fazer parte de um grupo literário famoso, pós-modernista, ao lado de Ferreira Gullar, Mário Quintana e outras grandes mentes da época. O maior sonho do jovem José Ribamar era integrar a Academia Maranhense de Letras, conhecida como a "Atenas brasileira'', veja só...

Durante seus estudos, José foi indicado, pelo pai, para um cargo no fórum, onde, já desiludido com as promessas de glórias literárias, passou a engendrar seus primeiros esquemas e articulações políticas. Era o responsável pelo sorteio dos processos a serem distribuídos, e, claro, realizou seus primeiros "negócios'' distribuindo os processos certos aos desembargadores certos. Antes de formar-se, foi nomeado assessor do governador Victorino, que viu grande futuro no filho do seu compadre Sarney Costa. Foi com o governador que José aprendeu a velha arte da política, principalmente sobre o funcionamento do fisiologismo, das brechas legais e, sobretudo, foi pelas suas mãos que foi iniciado no mundo das boas amizades da politica. José aprendeu tanto que, logo após formar-se, já casado, conseguiu se tornar quarto suplente de deputado federal, de onde, coma ajuda de seu "padrinho'' Victorino, esquadrinhou sua campanha própria, chegando ao Congresso Nacional pelo voto de 3000 maranhenses. Filiado à ala de esquerda da UDN, nosso herói era uma das figuras destacadas de oposição ao governo JK.

Correspondente de alguns jornais em São Luís, o recém-formado político- e recém casado- obteve a tão sonhada cadeira na Academia Maranhense de Letras, por alguns poemas feitos em honra de sua esposa. Na verdade, a satisfação dessa pequena vaidade foi de pouca valia para Sarney- que acompanhava, atentamente, os rumos da política nacional. A construção de Brasília inaugurou, para sua sorte, uma era caracterizada pela forte intervenção estatal na economia e em sua aliança com entes privados, e, mais que isso, caracterizado pelo aumento absurdo dos gastos públicos com obras e serviços de bem-estar, executados pela iniciativa privada, na figura das grandes empreiteiras. O esquema basilar da política nacional, baseado na lucrativa parceria dos políticos e de tais empresas, financiadoras de suas campanhas, estava em germinação.


O jovem José rapidamente fez contato com os grandes empresários interessados em executar obras para o governo, conseguindo, a partir de seus amigos de bancada da UDN, indicar as pessoas certas- para ele- para cargos-chave da administração pública. A troca de vantagens era simples: indicado pelo Executivo para um cargo de gerência ou chefia, o "beneficiado'' favorecia as empresas "certas'' em processos licitatórios, que, por sua vez, usavam a riqueza obtida-  via superfaturamentos, remessas de lucros, sonegações fiscais- para financiar os políticos que serviram de ponte para o fechamento de novos e futuros contratos com a Administração pública. Assim, o sistema se reproduzia. E Sarney, aos poucos, tornou-se especialista na área.

Lentamente, Sarney articulou uma grande base de apoio, por meio da qual, cada vez mais, os interessados em cargos públicos de confiança- aqueles disponíveis nos "cabides'' da máquina pública- dependiam dele para obterem suas nomeações. Muitos políticos do Maranhão, para nomear as pessoas de sua confiança para os cargos adequados, recorriam a Sarney, já um habilidoso traficante- de influência, é claro. Essas articulações entre políticos, funcionários e empresas era complementada pela ação de José enquanto parlamentar, nas votações de importantes projetos de lei- concedentes de benefícios fiscais, emendas parlamentares ao orçamento (o "negócio'' mais lucrativo depois das licitações)- onde era um poderoso articulador nos bastidores das discussões.

Após 12 anos como parlamentar, nosso herói acompanhou, após o golpe de 1964 (ao qual apoiou vigorosamente, compondo a recém-formada ARENA, sustentáculo político da jovem ditadura), sua grande chance de sair do dito "baixo clero'' da câmara dos deputados surgir. Aproveitou os tempos de crise e agitação política, onde os militares procuravam apoiadores civis para suas políticas de ajuste fiscal e, posteriormente, de crescimento econômico. Sarney era, assim, aos olhos dos militares, um homem com as conexões políticas necessárias- entre os demais políticos e os empresários, assustados com o Golpe- para o estabilização do Regime e a asseguração de maiorias parlamentares sólidas, além de ser absolutamente confiável (entenda-se: não era um subversivo comunista). Foi assim que o então presidente da República, o Marechal Humberto Castelo Branco, já amigo de Sarney de outras épocas, apoiou a candidatura de José ao governo do Estado do Maranhão, contra a coligação orientada por Victorino Freire, seu mestre na política.  Dessa vez, o aluno superou seu mestre: Sarney forjou intrigas (pediu ao então coronel Figueiredo que ameaçasse de cassação o então governador e seu candidato, ambos indicados por Victorino; logo, o tal candidato resolveu esnobar o coronel, lançando-se sozinho, sem o apoio nem de Victorino ou do governador) que resultaram num racha político entre Victorino e seu candidato ao governo, que, sem alternativa, lançou-se sozinho na campanha, já contra outro candidato apoiado por Vic. Aproveitando a divisão dos inimigos- "dividir para conquistar''- e com o apoio dos militares, José Ribamar vence a eleição. Sua vitória, apesar dos podres conchavos que a sustentavam, foi entusiasticamente saudada  pelo povo maranhense. Em sua posse, filmada pelo cineasta Glauber Rocha, Sarney prometeu uma democracia de oportunidades, investimentos da indústria, geração de empregos, combate à fome, construção de hospitais. O povo foi a loucura, imortalizado pelo cineasta no documentário "Maranhão 66''. Veja abaixo:


Glauber ficou fascinado pela ousadia do jovem de 36 anos e pelo seu carisma popular. Pouco depois, Sarney mostraria ao que veio. Espertamente, antes de candidatar-se ao governo, sabia que os militares iniciariam um programa de altos investimentos na região norte, sobretudo na região oeste do Maranhão (o Projeto Carajás), centro do Pará e alto Amazonas; mobilizando seus contatos em Brasília e a bancada da UDN, José articulou a vitória das empresas "aliadas'' nos bilionários processos de construção de hidrelétricas na região norte. Tais empreiteiras remuneraram muito bem os serviços do governador.  A Camargo Correia e a Odebrecht são bons exemplos dessa lucrativa parceria e, com a aliança de Sarney, passaram a monopolizar (até hoje) os contratos de obras públicas em todo o país.

Por outro lado, a proliferação de empresas estatais gerou um grande número de cargos públicos passíveis de nomeação, tanto no governo estadual quanto na cúpula federal. E Ribamar- nessa época, já havia retirado o seu segundo nome- participava e indicava a maioria dos nomes. Logo, a empresa de energia do Maranhão- a CEMAR- estaria sob seu comando. O contrato da maior empresa produtora de alumínio brasileiro- Alumar- com o governo, para a obtenção de energia barata (o alumínio consome muita energia), foi negociado por Sarney e por seus agentes. E, a partir desse poder acumulado, o governador foi estendendo seus tentáculos rumo ao topo do setor energético nacional, onde até hoje determina o nome do ministro de minas e energia (uma exceção foi Dilma Roussef) e do presidente da Eletrobrás (sem contar a ANEEL, Furnas, Light...).

O governador Sarney ganhou milhões de dólares com o setor energético, sendo essa sua principal fonte de lucros, mas apenas o primeiro tripé de seu esquema de dominação política. O segundo foi a opção preferida das elites nacionais, concentração de terras terras. E ele fez isso por meio da Lei estadual de Terras, de 1969: pequenos proprietários foram desapropriados (literalmente, tiveram suas terras penhoradas por novos impostos não pagos ou pela cobrança dos antigos) e isenções fiscais foram dadas às grandes propriedades. O governo estadual, ao longo de duas décadas, foi tomando as terras dos camponeses e leiloando-as a grandes grupos econômicos, que lucraram com o apoio do governo, a mão-de-obra barata e os corredores de exportação de commodities produzidas no latifúndio. A crueldade da concentração fundiária- que não era até então um problema no Maranhão- resultou na diáspora de mais de 1 milhão de maranhenses pelo pais, que fugiram da pobreza, da fome (já que sem agricultores e terras para cultivar alimentos, a oferta destes diminui e seu preço aumenta, prejudicando sobretudo as classes populares) e da perseguição dos latifundiários. Quem ficou foi para as cidades ou se sujeitou a um regime de semi-escravidão nas fazendas de arroz, exportado para o resto do país a preço baixo.

O próprio Sarney, por meio de laranjas, adquiriu suntuosos latifúndios- e, até mesmo, uma ilha inteira.

Ao sair do governo, no início dos anos 70, Sarney foi eleito senador e comandou, por anos, o ARENA, seguindo fielmente as ordens dos generais presidentes e estendendo sua influência a todo o país. Recebia ligações dos governadores nordestinos, de políticos diversos, dos militares, embaixadores, grandes empresários interessados em seu enorme- e, há quem diga, seu maior atributo- e infinito poder de nomear as pessoas certas para os cargos certos. Por fim, o último tripé, segundo Palmério Dória, do império nada-secreto de José Sarney, foram as telecomunicações: dezenas de rádios e os dois únicos canais de televisão do Maranhão- dentre eles, a Tv Mirante, afiliada da Rede Globo- são "propriedade'' sua, um pequeno presente dos generais e, posteriormente, do próprio Sarney a si mesmo, quando distribuiu mais de mil concessões de radio-televisão a parlamentares em troca do apoio destes ao alongamento de seu mandato presidencial.

Sim, ele estava em todas, nos anos 80. Seus filhos já estavam crescidos, formados e atuantes nos esquemas do pai: a mais velha, Roseana, era assessora sua em Brasília, onde dava festas monumentais- regadas a muita bebida e jogos de azar, nos quais é viciada- com seu marido Murad; Zequinha Sarney, posteriormente, seria ministro do meio ambiente de FHC e deputado federal; e, finalmente, Fernando Sarney, treinado por ninguém menos que Paulo Maluf, iria suceder o pai na articulação dos esquemas de corrupção sob o império da família Sarney.

Foi durante essa época em que, viajando pelo mundo, Sarney fez amigos na política internacional, posando de intelectual e lançando seus livros no mercado- o que lhe garantiu um lugar na Academia Brasileira de Letras, contra o ex-colega Mário Quintana. Em uma conferência mundial, na cidade de Nova York, Sarney conheceu Ana Maria Roiter, a mais bela repórter da Globo na cidade, que gentilmente recusou o senador quando este, um pouco bêbado, assediou-a, batendo-lhe a porta do quarto de hotel na cara. "O senador delirava só em pensar sobre a realização de sua mais íntima fantasia- uma bela lambida no dedão do pé'', disse Palmério Dória em "Honoráveis bandidos'', uma irônica biografia sobre o senador.

Mas tudo bem. Afinal, não se pode ganhar sempre.

Com seus dividendos seguros na Suiça ou em nome de laranjas, Sarney dedicou-se a exercer o papel de articulador-mor da politica nacional. Nessa época, a ditadura, da qual era um filho querido, estava morrendo, pela mãos das Diretas Já e da irreversível redemocratização- e, Sarney, como bom filho, abreviou a dor de sua querida mãe e deu-lhe um tiro de misericórdia, ao apoiar Tancredo Neves contra Maluf, de seu próprio partido, durante as eleições indiretas ao Planalto, em 1984. Foi o vice na chapa, fundando, com Marco Maciel e outros políticos que abandonaram a ditadura, o PFL. Mas um triste acontecimento mudaria para sempre o seu destino e o do Brasil.

Sarney não esperava subir mais na vida. Na verdade, estava desesperadamente- como outros figurões do ARENA- tentando salvar-se do barco furado da ditadura e ingressar no regime democrático em uma posição confortável, no recém-criado PDS. Não imaginava que, após a vitória de Tancredo, este seria gravemente internado um dia antes da posse e, poucas semanas depois, pereceria. O medo dos militares, ainda no poder, de ver a ascensão de Ulysses Guimarães em uma possível eleição direta os fez apoiar aquele a quem já haviam renegado como traidor- Sarney. Nem nos seus melhores sonhos, o já imortal da Academia Brasileira de Letras imaginaria envergar o tradicional smoking do chefe da nação e, em uma cerimônia simples, cingir a faixa de Presidente da República.

A ditadura terminou pelas mãos de um dos seus filhos. Sarney assumiu rapidamente seu velho discurso populista, logo durante a posse, prometendo acabar rapidamente com a inflação, reestruturar o país, pagar a dívida externa herdada dos militares (a maior do mundo), construir escolas e hospitais país a fora- tudo conversa fiada. Seu artificial e perigoso plano econômico- o Cruzado-, que congelou os preços ascendentes, lhe garantiu aquele que ainda hoje (mesmo depois de Lula) foi o maior índice de popularidade dos presidentes da República (92%, em 1986). Apesar dos graves problemas gerados pelo plano, Sarney insistiu em mantê-lo em vigor até as eleições, quando sua base aliada venceu em 21 dos 23 estados brasileiros e lhe garantiu uma pesadíssima maioria no Congresso. Ele estava livre para, finalmente, moldar o novo Brasil à sua imagem e semelhança.

O presidencialismo de coalizão, depois da Constituição de 1988 (da qual, a contragosto, foi o convocante) foi sua maior herança política ao país. O complexo jogo de alianças, troca de favores, negociamento de cargos e emendas ao orçamento, favorecimento de empreiteiras em processos licitatórios e nomeações negociadas aos cargos-chave da República foram estendidos a todo o país e profundamente enraizados no Planalto Central, onde ainda hoje são a alma da política brasileira- o fisiologismo.

Após a maior vitória de sua vida, Sarney sofreu derrotas. O rumo da Assembleia constituinte fugiu-lhe do controle- para nosso alívio-; o Cruzado teve de ser revogado, ocasionando a volta da hiperfinflação, jamais derrotada até 1994; lideranças políticas despontavam ao criticá-lo; a população revoltou-se, derrubando sua popularidade para a pior da história da República. Pelo país, os bancos imprimiam dinheiro a torto e a direito- por meio dos títulos da dívida-, a máquina pública era loteada de cargos, a inflação atingiu o maior nível da história brasileira e, por fim, o governo pediu moratória da Dívida pública, um vexame internacional sem precedentes. Os barões da federação- governadores estaduais- dominavam a política, financiando despesas correntes com receitas de capital (empréstimos), explodindo os gastos em fim de mandato para deixar ao sucessor uma terra arrasada. Enfim, Sarney lançou o país no delicioso caos.

No fim, nenhum candidato às eleições de 1989 se filiou ao governo. Sarney, contudo, já havia obtido mais um ano na presidência, de onde articulou sua candidatura ao Senado, pelo Amapá (um estado recém-criado), onde jamais havia pisado, numa das eleições mais hediondas desde a República velha. Em um último golpe, quase emplacou a candidatura de Silvio Santos ao Planalto- uma manobra abortada, a tempo, pelo Judiciário.

Odiado pelo povo, aos gritos de "Sarney, salafrário, tá roubando meu salário, Sarney, ladrão, Pinochet do Maranhão'', nosso herói exilou-se em sua mansão no Maranhão, permanecendo na moita enquanto Collor era derrubado e FHC elegia-se presidente. Como tinha de reorganizar o país (e desfazer a obra de Sarney, caracterizada pela farra com a Coisa Pública), o novo presidente precisou de uma sólida maioria parlamentar e, claro, ninguém melhor que Sarney para lhe garantir isso. Logo, ao lado dos velhos companheiros do ARENA- agora PFL- pelo PMDB- ao qual se filiara em 1989-, José comandou o Senado e garantiu a FHC que suas reformas fossem aprovadas. Sua força permaneceu igual, e, já em 1994, elegeu sua filha Roseana Sarney governadora do Maranhão. Em 2002, articulou a candidatura dela à presidência do país, na qual era líder nas pesquisas. Isso até José Serra acionar a Polícia Federal, que descobriu malotes de dinheiro na empresa de Roseana em São Luís, na operação Linus. E o sonho da família de voltar ao Planalto acabou.

Na última década, publicando novos romances, Sarney resolveu se conformar com o cargo não-oficial de manda-chuva da política nacional, usando seus velhos super-poderes de indicação de nomes a cargos públicos (usada como moeda de troca com o governo, na consecução das maiorias parlamentares destinadas ao apoio dos programas de governo). Assim, a articulação das maiorias parlamentares, atingida pela distribuição de cargos públicos e emendas ao Orçamento pelas forças políticas atuantes no Congresso Nacional é o coração do poder de José Sarney; nenhum governo subsistirá sem o seu apoio. Seguindo sempre o mesmo modus operandi, fez novas experiências, como o apoio a Lula, tradicional oponente, em seus dois governos, mantendo seu poder absoluto sobre o ministério de Minas Energia- não enquanto Dilma esteve na pasta, porém- e intacto seu infinito poder de nomear. Seus filhos, contudo, foram alvo de dezenas de operações da PF, sendo Fernando Sarney quase preso, em 2009.

Contudo, Zé sofreu uma grande derrota, com a vitória de Jackon Lago nas eleições estaduais maranhenses de 2006, sob Roseana; ora, em "seu'' estado, um esquerdista venceu! Contudo, mobilizando seu poder, Sarney conseguiu a anulação da vitória com base em falsas acusações, e, por meio de uma aberração jurídica, a posse da filha, para cumprir menos de um ano de mandato restante. No comando da máquina, Roseana seria reeleita governadora do Maranhão em 2010.

A família de Sarney crescia, contudo, com netos, apadrinhados, primos, irmãos e até conhecidos de esquina sendo empregados pela máquina estatal. O vice-governador atual de Roseana - chamado de "Carcará''- comanda os mafiosos propriamente ditos, responsáveis pela solução violenta dos problemas da família. Nas telecomunicações, a Tv Mirante continua nas mãos da família, junto com dois jornais e dezenas de rádios. Acrescente-se a isso os inumeráveis cargos públicos ocupados pelos "servidores'' da família, até mesmo no Senado (vide o escândalo dos atos secretos, em 2009, que quase derrubou Sarney do comando do Senado). Terras, mansões, conventos centenários (transformados em mausoléus, onde um busto de ouro de Sarney aguarda em um túmulo ricamente decorado sua morte), contas na Suiça e um verdadeiro exército de dependentes- desde uma enfermeira qualquer de um postinho de saúde comum da periferia de São Luís, à presidência da Eletrobrás, passando por eleições de políticos do baixo clero, indicação de ministros diversos e mesmo os conchavos que apoiam o próprio presidente da República- sustentam seu poder cinquentenário; os presidentes passam, desde os anos 60, mas Sarney e seu exército mafioso permanecem no poder, dando as cartas. No Maranhão, o poder do império da família é palpável: pode-se ir ao colégio José Sarney, pela Avenida Sarney Costa, passando pela ponte Kyola Sarney; verificar as contas públicas, no Tribunal de Contas Roseana Sarney; ser internado no Hospital Regional José Sarney; ou, ainda, reclamar contra os desmandos da família mafiosa no fórum Sarney Costa, através da sala de Defensoria Pública José Sarney...

O que concluir com essa estafante e pequena biografia?

A história de um homem explica muito sobre a história de um país. Em Sarney, percebemos que o vínculo com a história colonial (Victorino), a ação dos militares, a aliança com as grandes empresas e, sobretudo, a sorte (a virtú de Maquiavel?) conduziram, em boa parte, o Brasil nesses 50 anos de atuação sarneyziana. Este homem, outrora nobre e literato, se tornou o líder que fundaria a política do século XXI no país- inconvenientemente calcada na corrupção, violência e incompetência. Populista, manipulador, sedento de poder a absurdamente bem relacionado- um verdadeiro artista que soube jogar com os desejos dos homens de poder e valer-se deles para subir na política-, José Sarney é a cara do Brasil patrimonialista e patriarcalista, que bebeu das fontes do colonialismo, do império, das oligarquias, do estadonovismo, terceira república e, finalmente, da ditadura militar; personifica cada elemento negativo da história do país em sua figura imponente. Ele é, e sempre será enquanto respirar, o poderoso chefão da política brasileira- o verdadeiro padrinho do setor energético, da máquina pública, dos latifúndios e das telecomunicações. Bon giorno, don Sarney.

domingo, 17 de junho de 2012

O que é pós-modernidade?

                                                           Bem-vindos ao caos da pós-modernidade

Toda ação humana, ao menos em princípio, objetiva um fim. Não fugindo a essa regra, também aqui nos destinamos a um fim, ao refletir, periodicamente, sobre certos temas pertinentes à juventude pós-moderna; aliás, esse é o público-alvo de nossas postagens, não no sentido de reafirmar os valores de tal época histórica, mas de oferecer uma alternativa viável ante a tais princípios que, justamente por seu relativismo, posam de valores absolutos.

Dessa forma, cabe aqui esclarecer-se o termo "pós-modernidade''. Dizem os filósofos que tal signo designa a era na qual o pensamento humano foge aos princípios do modernismo, buscando sua superação; ou, simplesmente, trata-se do tempo posterior à modernidade. Essa, por sua vez, baseia-se no humanismo e no empirismo, tendo herdado, ao mesmo tempo, a tradição filosófica de Platão e Aristóteles e, por outro, assentar-se sob a epistemologia de Descartes e Francis Bacon. A ideia básica é que, por meio de um método de conhecimento, pode-se descrever objetos de estudo tais como eles são e, assim, dominá-los, a fim de utilizá-los para fins próprios da humanidade. Crê-se, sobretudo, na razão instrumental como o elemento que ordena o universo; ou, melhor, a razão é o meio de descoberta do sentido apriorístico da realidade. Tanto Descartes quanto Bacon dizem que, por meios racionais, pode-se distinguir o verdadeiro do falso. O segundo, contudo, diz ser o conhecimento dos fatos empíricos (ou fenômenos da natureza) o único conhecimento possível.

A metodologia científica da modernidade é, assim, baseada na filosofia da consciência- o indivíduo, através da razão, desvela a ordem e o sentido da realidade, que lhe são dados a priori (daí o pensamento ser pressuposto da existência), que é classificada em conceitos abstratos. O sujeito individual, assim, usa a linguagem como mero ente entre o sujeito e o objeto que transmite suas essências. O conhecimento é, assim, uma operação individual e engendrada na mente do sujeito.

O modernismo centra a humanidade, como um todo, como o elemento que dá sentido ao universo e aos valores morais (embora toda a ordem da natureza e o embasamento ético dos valores tenham como pilar a existência de Deus- "o relógio pressupõe um relojoeiro''), e como a destinada a um futuro glorioso (A "Nova Atlântida'' de Bacon), atingido pela plena dominação da natureza. Conhecendo as leis físicas regentes dos fenômenos naturais, o homem poderia manipulá-la a seu favor e, com isso, dominar  a natureza, deixado de ser um mero ser frágil diante de tais fenômenos e, por meio de seu controle, garantir a escalada rumo a um futuro glorioso e utópico. Esse viés filosófico, contudo, via o constante debate entre racionalistas (que acreditavam ser o conhecimento uma dádiva do raciocínio humano, sob hegemonia da dedução lógica) e empiristas (que pensavam ser o conhecimento autêntico oriundo da experiência).

No campo da política, a mesma divergência refletia-se. As novas teorias do Direito Natural, que agora é fruto da razão (mesmo que criado por Deus, que, nesse sentido, não pode alterá-lo) afirmam que a razão humana pode dar ao homem leis naturais, genéricas, universais e imutáveis; os próprios valores morais são universalizáveis. Contudo, enquanto os empiristas, como Hobbes, afirmaram o relativismo moral e creram no pensamento humano como um fenômeno empírico (pensar era movimentar-se, para ele). 

Assim, no campo da moral, os valores continuaram a ostentar um conteúdo imutável e universal (o homem deve libertar-se da natureza). Essa cruzada de libertação e racionalização geral da sociedade (oriunda do método cartesiano, onde qualquer objeto poderia ser dividido em partes, reconfigurado, enumerado da escala mais simples à mais complexa e dotado de ordem) gerou um pensamento político onde o Estado deveria ser limitado pela vontade dos cidadãos e, por outro lado, seus poderes componentes, visando o equilíbrio da unidade política, deveriam ser desconcentrados e sistematizados, para evitar o excesso e garantir a liberdade natural dos cidadãos. A politica era vista como um objeto que, tal como  natureza, teria um equilíbrio a ser atingido pela divisão de suas funções (no caso do Estado, legislar, governar e julgar) em mãos distintas, segundo regras distintas. O Estado liberal, constitucional e assentado na Separação dos três poderes é o reflexo do chamado "projeto iluminista'' sobre a política.

Visando evitar mais divagações sobre a modernidade, escolhi para representá-la seu maior filósofo, o home que hegemoniza o pensamento moderno, resolvendo seus embates teóricos e consolidando seus postulados. Kant.

Kant parte da epistemologia como base da construção de seu sistema de pensamento. Em sua obra, digladiam-se empiristas e racionalistas, sem que se opte por nenhuma de suas correntes; na verdade, a opção kantiana é por um "caminho do meio'': o conhecimento é realmente iniciado pela experiência, mas todo conhecimento só é possivel pela presença de mecanismos racionais a priori de apreensão do conhecimento. Esses mecanismos são anteriores à experiência sensível e reorganizam, na subjetividade do indivíduo, o objeto de estudo, para que este se torne inteligível; o tempo, a causalidade, o espaço, diz Kant, são exemplos de tais mecanismos. O que há é uma verdadeira reconfiguração do objeto (a matéria adquire uma forma inteligível), por meio das formas puras da razão. Aqui, empirismo e racionalismo se fundem em uma unidade dialética. O que é apreendido pelo homem é apenas a aparência do objeto (fenômeno), permanecendo a coisa em si (noumeno) incognoscível.

Seguindo esse mesmo raciocínio, Kant afirma também existir, no campo da moral (e, consequentemente, da política e do direito), mecanismos racionais a priori. Logicamente, pressupõe-se que o homem é livre para realizar suas opções morais, mas apenas opções morais racionalmente desejáveis, que realizem a liberdade apriorística do homem. O homem dá-se ordens que tem como fim a realização da própria liberdade ("imperativos categóricos''), neles embutidas; essas ordens são racionalmente desejáveis quando podem se tornar universais (quando qualquer homem poderia dá-las a si mesmo para realizar a própria liberdade; por exemplo, qualquer homem escolheria, racionalmente, não mentir). Assim, esses imperativos que o homem dá-se são universais na medida em que são racionalmente desejáveis, não portando um conteúdo específico, apenas uma forma que permite distinguir o desejável em termos morais do imoral e indesejável. No direito, essa fórmula se repete, mas em nível coletivo: a população dá ordens a si mesma, objetivando realizar a própria liberdade por meio de imperativos que são fins em si mesmo. Por realizarem a liberdade da sociedade (o conceito de direito), também objetivam permitir a co-existência de arbítrios (a justiça, segundo Kant), sendo, por isso, ordens coercitivas, que podem obrigar os dissidentes a seguirem as definições da maioria; o limite da liberdade é a própria liberdade, onde a invasão de um na liberdade alheia é repreendida por meio da aplicação de sanção. O único direito natural do homem é ser livre. O homem, assim, para realizar sua liberdade, deve organizar-se em um Estado baseado na separação dos três poderes e adequar sua conduta ao que for resolvido pela maioria.

Esses imperativos da maioria se consolidam na forma de leis abstratas, comandos impessoais que se dirigem a todos. Pode-se, admite Kant, legislar sobre tudo e simplesmente dar uma solução para cada caso concreto de dissídio judicial (legalismo).

Por fim, a razão pura (epistemologia) funde-se à razão prática (política, moral e direito), na forma dos mecanismos racionais a priori, que fundam uma moral formalista universal, fundada pelo consenso da maioria. O império desta e sua transformação em centro emanador de imperativos morais é um dos pilares da modernidade, ao lado da dominação da natureza pela razão e da filosofia da história progressista em Kant, no fim, a humanidade derrotará o misticismo e se dirigirá a um futuro de liberdade e justiça, garantida pelo domínio da natureza.

As teorias positivistas, contudo, retomam o naturalismo empirista e "engavetam'' Kant até quando os pensadores europeus o "redescobrem'', na vigorosa luta contra a semiótica e o existencialismo.

Kant levou ao auge a Modernidade. Depois dele, teorias filosóficas se insurgiram contra a hegemonia do projeto iluminista, em uma rebelião emanada de três centros distintos: a filosofia de Nietzsche, as teorias da linguagem e a fenomenologia existencialista. Isso, claro, sem citar a crítica marxista à modernidade (considera-se aqui que Marx é um continuador do projeto iluminista, aplicando todos seus postulados).

Apesar da coisa em si ser incognoscível, a realidade é a reconstrução do objeto; é aparência. O desejo de ver as coisas como elas realmente são- como no filme "Matrix''-, contudo, ainda permanece no pensamento positivista, vigorosamente combatido pelo pós-modernismo.

Tais teorias tem em comum a ideia básica de que é impossível descrever o objeto de estudo tal como ele é, já que sua reconstrução mental é uma verdadeira criação dele. Cada homem, individualmente, é o centro significador do universo e da moral, e é verdadeiramente livre, no sentido em que pode dar-se quaisquer valores sem qualquer limitação. A razão é apenas um discurso dentre os possíveis e a dominação da natureza não guia o homem rumo ao progresso necessariamente (podendo destruir a humanidade, como ocasionado na ascensão do nazi-fascismo e da bomba atômica).

A vontade da maioria perde status após ela mesma suicidar-se, na década de 1930, ao referendar a instalação de regimes totalitários. O homem deve existir no mundo e, a partir de suas escolhas, construir sua própria essência.

Por outro lado, a moral tradicional é vista como um estorvo escravizante, imposta por escravos inferiores como meio de consolação ante suas desgraças; imposta aos ricos, que ignoram a "lei da seleção'' da natureza, onde os melhores devem esmagar os mais fracos e realizar todas suas vontades, pelos pobres do passado. Mais que isso, a moral cristã-platônica herdada por Kant (que é visto como um fraudador da liberdade; se tenho que escolher o que é racional para os outros, não para mim, como serei livre?) não possui mais um conteúdo definido e imutável ou mesmo uma forma imutável, componente de um mundo metafísico, mas como simples falácia. 

Nietzsche diz que o homem deve libertar-se da moral metafísica e irreal dada pela vontade da maioria e fundada em Deus para se tornar a verdadeira fonte dos valores, do conhecimento e da moral, tornando-se um "super-homem'', ao negar a realidade (niilismo) e externalizar toda a sua natureza (o gosto pelos prazeres carnais, injustamente repelidos pela moral cristã; a competição e vitória dos mais aptos, sem elevar-se ao mesmo nível dos ricos os "humildes''). Ou seja, faça o quiser, siga seus instintos, entregue-se à irracionalidade! Com Deus "morto'', o fundamento de obrigatoriedade da ciência (que pressupõe ser Deus o ordenador da realidade que o método científico desvela, em Descartes) e dos valores morais some, deixando o homem livre para seguir suas próprias vontades.

A redução do mundo à linguagem teve, por outro lado, consequências devastadoras. Dizem os semióticos de que a linguajem não é um terceiro ente que se interpõe entre o sujeito e o objeto, mas a condição de possibilidade do conhecimento- é ela quem constrói, subjetivamente, o mundo, sendo sua função descritiva uma mera possibilidade de uso. É o uso da linguagem em seus contextos específicos, em combinações convencionais, que constrói a comunicação e mesmo o mundo ao redor do indivíduo. Na verdade, o próprio mundo é reconstruído na mente do indivíduo a partir da interpretação dos jogos da linguagem- o ser, como em Kant, permanece incognoscível, enquanto o ente, ou para Husserl, o fenômeno, é o que é interpretado pelo homem. O último vai mais longe e diz que a essência dos objetos está na mente do indivíduo, em sua interpretação subjetiva.

Alguns dizem que o mundo é ininteligível ou que o conhecimento é impossível por causa dos defeitos da linguagem. Por outro lado, a história humana não é governada por leis específicas, muito menos a sociedade- a realidade não possui um sentido dado a priori, e a humanidade marcha em sua sina em meio ao caos.

Na pós-modernidade, filha de tais pensadores, não existem valores absolutos dados pela vontade da maioria, a ciência não pode descrever objetos como eles são (pela linguagem ser vaga e ambígua, portadora de vários significados- e, essencialmente, pelo objeto ser reconstruído pelo observador, segundo suas preferências subjetivas), a dominação da natureza pode conduzir ao desastre, a velha moral é uma forma de escravização, a verdade é individual, a essência é determinada pela existência. Busca-se cada vez a mais completa individualização, onde as verdades são íntimas de cada um. O homem enquanto ser individual dá sentido ao mundo e o conhece de forma totalmente diversa dos demais, não podendo comunicar essa diferenciação por causa do caráter incognoscível se sua subjetividade. Não existe sentido a priori, valores a priori ou mesmo vontade da maioria. As ilusões da modernidade, com sua filosofia da história progressista, são belas relíquias do passado, e a história caminha irracionalmente, em um mundo caótico. 

Reconheceu algo em comum? Sim, a pós-modernidade é o nosso mundo. Um mundo que dissolveu os valores abstratos e genéricos, que destruiu as verdades absolutas e se esforça para tornar cada um senhor absoluto de sua vida. Talvez o único valor absoluto seja a determinação do homem somente por ele mesmo. Há um igualitarismo total, como já deve ter percebido.

O homem vitruviano, símbolo da modernidade, é uma representação cabível à pós-modernidade: o homem como o centro significador do universo, mas, dessa vez, sem verdades, de qualquer ordem, generalizantes

O que pouco se discute, em Filosofia, é a relação conveniente entre o sistema pós-moderno e o atual sistema econômico neoliberal e globalizado. A única determinação real que o homem dá-se é para determinar uma pauta individual de consumo, o que esconde a verdade inconveniente de que o próprio homem torna-se um produto a ser vendido. 
A verdade é que pouco importa se não podemos descrever a realidade tal como ela é, pela impropriedade da linguagem. Pouco importa se o significante gera um significado convencional e não válido por si, ou que cada homem é o centro significador do universo. A verdade inconveniente escondida pelos "profetas'' do pós-modernismo é que suas ideias, como o modernismo, também não respondem as dúvidas humanas e vêm se tornando um desastre cada vez maior, engendrando uma sociedade cada vez mais violenta, desigual e destrutiva.  

O complexo da pós-modernidade, com suas glorificações da liberdade existencial, encaixa-se perfeitamente em uma realidade sócio-econômica onde uma única Lei universal ainda é válida e necessária ao sistema: a Lei do Mercado, que é a norma da competição. Muito ao estilo de Nietzsche, não acha? O mesmo homem que exortava os "superiores'' a desprezar a moral cristã e esmagar os pobres, se esse fosse seu desejo. Em diversas obras, o bom filósofo sifilítico denominou tal ideia "lei da seleção'', interpretada pelos nazistas como uma uma seleção racial; desnecessário dizer que  figura de Nietzsche foi glorificada na Alemanha hitlerista.

O superindividualismo da pós-modernidade faz o homem ver a si mesmo como uma ilha. Uma ilha que, sem relação com as outras, morre asfixiada. Por outro lado, a pós-modernidade revela sua rejeição total à democracia, resultando em um verdadeiro vale-tudo onde as vontades individuais se sobrepõem e as relações sociais, por isso, se desagregam (a lei da seleção nietzschiana). A preferência pela realização dos desejos carnais (o que é natural na espécie humana, como Nietzsche notou, dando-lhe o epíteto de "lei natural'', a lei do sexo, injustamente limitada pela moral cristã-platônica) se externaliza no consumo- o superhomem pós-moderno é, na verdade, um escravo de si mesmo, na forma de seus prazeres, e do sistema que acaba por sustentar quando realiza tais prazeres.

Os valores se materializaram em objetos de consumo, um feito inédito na história humana!

Nesse ponto, a grande charada da pós-modernidade é que vive-se em um sistema que garante a liberdade moral de todos, mas apenas de forma aparente, visando condicionar, por meio da mídia e de outros meios, cada homem rumo à realização do prazer, por meio do consumo, associado à felicidade e à inclusão social. Valores morais genéricos são danosos à essa "lógica'', porque têm o papel de limitar as possibilidades de realização do prazer, que se encarna da Lei do Mercado. Assim, aparentemente livre, o homem pós-moderno fica preso na gaiola do sistema neoliberal capitalista, pronto para ser mais um objeto de consumo do próprio sistema. Nada melhor para dominar os escravos, do que dizer-lhes que eles são livres. 

Ao lado, a figura representa a individualidade do ser humano diante dos seus semelhantes; livre, ao passo em que todos parecem iguais, sente-se autorizado a oprimir seus semelhantes e "forçá-los'' a serem livres. A multidão, contudo, caminha a um único fim: a alienação coletiva nas mãos do sistema autosuficiente, ao buscar a realização de seus prazeres

Como romper esses últimos grilhões? Como libertar o homem se si mesmo, da ditadura dos prazeres que, na verdade, esconde tirania de um sistema econômico que impõe os valores- ou desvalores- pós-modernos como absolutos?

Discutir alternativas à pós-modernidade é um dos objetivos das reflexões que fazemos aqui. E é o que esperamos fazer, daqui para a frente, com sua participação. E vamos lá.

sábado, 16 de junho de 2012

A última Ditadura

No jargão da Ciência Política, "Ditadura'' é a forma de organização política por meio do qual os ditames- ou ordens- organizadores da sociedade são emanados de um único centro de poder. Essa conceito político foi introduzido na Antiga Roma no conjunto de elementos culturais importados da Grécia, principal referente etnológico da sociedade surgida no Agreste Lácio; em sua cultura-mãe, a centralização política da condução do governo e da produção legislativa em um único indivíduo recebia o nome de tirania (uma forma degenerada de monarquia, como estabeleceu Aristóteles em seu clássico "Política'').

A Tirania dos gregos, em Roma, foi institucionalizada como "Ditadura'': em tempos de extrema dificuldade, como agressão externa ou risco de invasão da cidade de Roma, os plebeus e patrícios da Urbs abriam mão do regime representativo e republicano então vigente- e funcional em tempos de normalidade- e elegiam, pelo tempo determinado de seis meses, um romano para comandar a cidade com poderes absolutos. Tal instituto, que assegurou a salvação de Roma inúmeras vezes, quando se fez necessário concentrar o poder político a fim de tomar decisões rápidas, algo impossível na ritualidade exigida pela República, acabou se tornando cada vez mais permanente. No fim, de tão essencial, a ausência de um ditador acarretava simultaneamente guerra civil, pondo em risco o sistema escravista e exploratório das províncias até então cuidadosamente montado. O Império, então, foi a máxima expressão da ditadura em tempo permanente, deslocada dos valores republicanos e mesmo democráticos, para assentar-se sob a órbita da teocracia e do despotismo.


Todos esses significados -a origem grega, a centralização do poder, a necessidade de esmagar a individualidade em tempos de crise e mesmo a ideia da ditadura como refundadora da ordem e da estabilidade- atravessaram a História e aportaram no Brasil, atingindo seu auge nos anos 1960. Nessa época, o Brasil era visto por seus habitantes como um país caótico, sob o risco de sofrer golpes comunistas, onde um presidente nada republicano insuflava as massas do campo e da cidade em lutas políticas demagógicas, em um verdadeiro caldeirão que ameaçava explodir o país inteiro. A corrupção dominava o Estado, a inflação explodia nos mercados, os salários eram esmagados pela falta de competitividade do país; a anarquia estava instaurada.

Mas tudo isso não passou de um grande truque de mágica. Pouco do que o brasileiro ouvia e lia em jornais e revistas, impressas ou eletrônicas, correspondia à verdade. Mas, apesar do mercado editorial ser dominado por grandes famílias desde os anos 1930, ao menos havia uma pluralidade de veículos de imprensa de diversas posições políticas (varguistas, peronistas, comunistas), motivo pelo qual havia grande incerteza, nos círculos sociais atingidos pelas publicações quem diz a verdade?

O caos da informação era apenas mais um reflexo da luta entre grande órgãos de imprensa e a chamada imprensa alternativa ou popular, corolário da luta maior entre nacionalistas e esquerdistas contra liberais e conservadores no campo político. Valendo-se do seu poder de alcance, a grande imprensa mobilizou a poderosa classe média, tornando-a substrato civil legitimante, ao lado das empresas estrangeiras e da própria mídia, do Golpe de 1964. E o fez, como já dito, redesenhando uma realidade abstrata, de forma totalmente parcial, na qual havia um Brasil anárquico que necessitava da ordem para o progresso. Ordem, ademais, só possível com a centralização do poder político na mãos seguras dos militares- mais uma vez, os ditames (ordens) governadores da sociedade são concentrados (porque, antes estavam "difusos'', o que acarretava a ineficiência em superar a crise) em um único pólo. Visando a sua própria manutenção, a ditadura militar acabou por administrar as políticas já consagradas por Maquiavel, principalmente, a de que, às vezes, é preciso dividir o poder para mantê-lo.

Essa divisão do poder político seguiu o "principio da semelhança'' com a própria ditadura: a partir de seus instrumentos legais e financeiros, o regime criou ou fortaleceu "mini-ditaduras'' na economia, política e religião, como o latifúndio, o grande empresariado nacional, a Igreja e, finalmente, a mídia de direita, já hegemônica no campo da imprensa.  O que antes era simplesmente supremacia técnica e geográfica (no sentido do alcance nacional de suas notícias) se tornou um verdadeiro monopólio coma  ação agressiva da ditadura contra a imprensa de oposição. A censura, o fechamento de jornais, cassação de licenças de rádio e televisão, exílio de jornalistas de esquerda foram acompanhadas do fortalecimento econômico das já reinantes oligarquias do setor midiático: o governo financiou empréstimos milionários, pagos posteriormente com grandes sacrifícios pelo povo brasileiro (mediante reduções salariais, aumentos dos impostos e desemprego), para a expansão e modernização dos grandes grupos de imprensa já instituídos, como as organizações Globo (que lançou seu canal de televisão com dinheiro público e estrangeiro, logo após os primeiros anos do golpe), o Jornal Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo e, posteriormente, o canal de televisão SBT, no grupo Silvio Santos.


As concessões dos canais, instrumento pelo qual o Estado cede a exploração de bens públicos a particulares, foram renovadas continuamente, enquanto a mídia nativa copiava modelos informativos estrangeiros e os implantava ao Brasil. A ideia básica era noticiar a constante guerra aos terroristas de esquerda, os sucessos econômicos do regime, as novas leis, a nova vida segura da classe média- ou seja, a eficácia da ditadura militar em atender aos objetivos que ensejaram sua implantação, a saber, a restauração da ordem e a pacificação social, tal como na Roma Antiga.

O modelo vigente de "Mídia'' nasceu e cresceu como parte do projeto ditatorial. A parceria com o governo e o investimento cada vez maior em pautas despolitizadas- as telenovelas foram reestruturas e popularizadas em função disso, tais como desenhos animados, festivais musicais de jovens debiloides, filmes nacionais do gênero "pornochanchada''- resultaram na criação efetiva da já propalada ilusão dos "dois brasis'': o Brasil da realidade, onde as pessoas sofriam com a fome e a miséria, além do jugo de ferro da opressão ditatorial, e o Brasil das praias encantadas de Copacabana e dos castelos modernos de São Paulo, onde belas e belos atores e atrizes atuavam em histórias românticas, humorísticas ou trágicas, em tramas que mais serviam como amortizante das mazelas sociais. A televisão ganhou o status de principal conselheira amorosa, companhia diária, elemento de ligação com o mundo externo e ditadora, literalmente, de comportamentos, tendências e modas, sejam estilísticas ou políticas.


A associação dessa mídia com o modelo de industrialização militar foi patente. As grandes empresas internacionais, instalando-se no Brasil, divulgavam seus produtos através da mídia nacional ao principal alvo consumidor- a classe média alta, que viveu no paraíso do capitalismo durante os milagres econômicos da Ditadura. O governo, por outro lado, divulgava sua versão oficial dos fatos pelos exaustivos telejornais ou radiojornais, além de entupir a programação com propagandas oficiais (e, claro, remunerando muito bem as empresas midiáticas por isso). O futebol brasileiro finalmente chegou aos olhos dos brasileiros e foi mais uma arma na exclusão do brasileiro comum da política- principal objetivo da ditadura.

Mas, como nem tudo dura para sempre, os interesses da mídia e de seus parceiros da indústria internacional se tornaram opostos aos do governo militar do qual ela era um dos sustentáculos. A derrota contínua da ditadura, seja politicamente seja economicamente (com a falência de seu modelo de crescimento econômico capitaneado pelo Estado) e os novos rumos do cenário internacional- o neoliberalismo- colocou a mídia como adversária da atuação estatal em geral na sociedade. O monstro voltou-se contra o criador, quando o barco no qual foi gerado começou a afundar.

A partir daí, a imprensa começa a mostrar sua força, ao mobilizar a sociedade em torno de temas eleitos pelos interesses do capital externo ou da própria mídia. Pautas como a redução da maioridade penal, a criminalização dos movimentos sociais, a redução da presença estatal na economia, o pagamento da dívida externa e outras passam a ser lançadas na sociedade que, "amaciada'' por décadas de alienação da política, ingenuamente relaciona as notícias que vê nos jornais com a verdade. Por outro lado, a mídia se posiciona contra as campanhas populares como as "Diretas Já'' (noticiada como manifestação popular em comemoração aos festejos do dia da independência...), mais, ao fim, também passa a jogar o jogo da legalidade. Por isso, trabalhou continuamente ao lado dos velhos políticos da ditadura pela suas vitórias no campo eleitoral, difamando, continuamente, a esquerda, que começava a reorganizar-se no país. Abaixo, um filme essencial para compreender o poder da Rede Globo de televisão sobre o Brasil, "Além do cidadão Kane'':



A nova aliança mais parecia a velha união de 1964, que resultou no golpe. A direita agora dispunha do monopólio sobre as telecomunicações a seu favor, fator que pesou fortemente nas primeiras eleições realizadas sob o jugo da democracia restaurada. Logo, a pauta imposta pelas grandes empresas e bancos- o neoliberalismo- passou a imperar na política nacional e resultou na ascensão de governos alinhados com as grandes potências. Privatizar, cortar gastos e direitos, além de optar pela ortodoxia econômica, estava na ordem do dia- ditada pela imprensa nacional. Classes políticas, grande capital e mídia- com a ausência da Igreja- uniram-se em um novo pacto social contra a esquerda e a favor dos próprios interesses.

A demonstração patente do poder alcançado pela mídia deu-se durante as eleições presidenciais de 1989. A simples reedição do último debate eleitoral e a propagação de injúrias contra um dos candidatos- Lula-, combinadas com a ação política da direita em geral, resultaram na vitória de Collor. Curiosamente, Collor foi alçado ao poder e, posteriormente, destruído pela mesma mídia, essencialmente centrada na Rede Globo de televisão. Naqueles tempos, falava-se que o "doutor'' Roberto Marinho comandava, realmente, o país, por meio de seu escritório na "fábrica de sonhos'', o PROJAC.

A Rede Globo parecia ser o Brasil. 24 horas por dia, acompanhava a rotina do brasileiro. O fazia, rir, chorar, emocionar-se, informava-lhe, dizia-lhe com o que indignar-se. Enquanto o Brasil mergulhava em seguidas crises econômicas e sociais, a grande mídia prosseguia em sua narrativa do reino encantado onde todos eram brancos, bonitos, cariocas e ricos- caracterizado nas novelas do horário nobre. Por outro lado, se a mídia maquiou alguns problemas, insuflou, abstratamente, outros, como a violência (que se tornou um show busniss da televisão brasileira). As políticas neoliberais no governo FHC, por sua vez, receberam o integral apoio da imprensa, que passou a divulgar, novamente, generosas e caras peças publicitárias do governo para divulgar o novo modo do governo agir- ou não agir- na sociedade.

A decadência da velha fórmula foi inevitável ao alvorecer do novo milênio. Cada vez mais, as demandas sociais se materializaram, resultando na derrota da direita, nas urnas, e a passagem da imprensa, novamente, para a oposição ao governo, agora cada vez mais dominado por esquerdistas. Essa derrota da direita foi acompanhada da crescente penetração da tecnologia no Brasil, onde meios alternativos de comunicação desterraram o monopólio da mídia. O modelo combinado de alienação pelo entretenimento (com novelas, desenhos...) e de notícias selecionadas (beneficiadas pelo monopólio da informação) entrou em crise com a democratização geral da sociedade, ainda em curso. Claramente, a mídia não se adequa ao Brasil onde as pessoas podem externalizar suas vontades, ou podem buscar seus direitos, por outros meios que não a mídia. A melhoria da educação do brasileiro resultou em um público permanentemente insatisfeito com a programação televisiva e as notícias nos jornais. Ao menos, minimamente.

Por outro lado, a revisão das concessões e o status jurídico das emissoras de rádio-televisão continua ignorado, regido sob a máxima de que o Estado deve intervir ao mínimo nos negócios privados. Mesmo em se tratando se bens públicos, como a rede de canais de comunização.

Esse desgaste do modelo midiático foi acompanhado de uma violenta reação da mídia, desesperada em conservar seu monopólio, ao optar claramente pelo sensacionalismo, sexismo e busca por audiência a todo preço. A violência, o sexo, a vida das celebridades e os ataques ao governo (a "descoberta'' dos grandes "esquemas'' de corrupção) são os pilares das medidas desesperadas do setor. O objetivo é o mesmo: distrair a massa do que realmente importa e induzir discussões inúteis ou artificiais. Por outro lado, a mídia busca, como ponte entre as grandes empresas e os consumidores, induzir nos espectadores o desejo pelo consumo ilimitado como forma de satisfação dos prazeres, conquista de status e obtenção de segurança (sentimental e psíquica). O caos a ser ordenado está dentro do indivíduo, já que religiões, normais morais e ideologias se encontram em estado terminal; cada homem pode determinar-se plenamente, e, pelo consumo, obter o que quiser, destruindo qualquer moral que o impeça de satisfazer seus desejos; enfim, induz-se ao homem que ele deve aceitar, finalmente, a última das ditaduras, a ditadura da Lei do Mercado, que é a lei do consumo (quem consome prova ser o mais forte...); as relações humanas se tornam cada vez mais líquidas, desconexas; o egocentrismo, onde o indivíduo determina todas suas opções em lucro próprio, é visto como sinônimo da liberdade (na verdade, a liberdade de saciar os desejos internos a partir do consumo, nele tornando-se escravo). A ordenação da pessoa humana, psicologicamente e socialmente falando, considerando o indívíduo isolado, é o objetivo da ditadura do mercado e de sua sub-ditadura e sustentáculo, a mídia, já globalizada. Mas a ordem neoliberal dada por essa ditadura tem como único fim preservar o status quo da desigualdade e do consumo desenfreado.


É com esse viés que a mídia nacional está sendo engolfada por esse movimento mundial, oriundo da globalização, que busca tornar o consumidor uma mercadoria. Enfraquecendo-se o velho modelo midiático, a mídia jovem, cortando o planeta através dos cabos de fibra ótica, se fortalece, ajustada com as "diretrizes'' emanadas dos centros econômicos; o verdadeiro ditador, que parece ser cada indivíduo em relação a si mesmo, são os poderes capitalistas que comandam a multidão de consumidores com mão de ferro. Essa nova mídia- encarnada no Facebook, Youtube e afins- desprega-se totalmente de ideologias e centra-se mecanicamente no consumo, movimento pelo qual a imprensa tradicional é absorvida (vide as páginas eletrônicas dos grandes canais, atuação nas páginas sociais etc).

Enquanto o antigo modelo parece morrer sob os nossos felizes olhares, somos arrebatados pelo novo gigante, que apenas está engolindo o velho. Contra o avanço da democracia, as forças reacionárias se unem em um monstro global sem preferências políticas, que manipula mesmo as Revoltas árabes a favor do capital. Como se trata de um fenômeno novo, pouco se sabe sobre ele- apenas pode-se especular sua incrível eficiência em deter as contestações ao sistema capitalista, sendo estas resultantes do próprio dinamismo das telecomunicações da globalização.


Enquanto acreditam ser sujeitos individuais, os consumidores da nova era capitalista são padronizados e vendidos mundo a fora. O meio de padronização é a própria mídia...

Enfim, a ditadura midiática brasileira, centrada em cinco famílias, foi implantada para reorganizar a ordem e fundar a estabilidade. A ditadura da mídia, então, se antes era subditadura da ditadura militar, se torna a legítima déspota da nova ordem; funde-se o velho modelo de alienação midiática com as novas tecnologias, e é parte de um esquema de dominação novo, onde empresas sem cara ou valores substituem, lentamente, as dinastias da imprensa direitista por uma aparente anarquia que esconde o domínio de uma autocracia de desvalores, materializada na internet. O efeito foi devastador, com a reafirmação do neoliberalismo e o desmantelamento de movimentos mundiais de contestação ao capitalismo. Mas, com as seguidas crises econômicas, por quanto tempo o monstro vai se manter ditando nossas vidas?

Como em Roma, criamos um sistema que não pode funcionar sem uma ditadura- a ditadura dos meios de comunicação, agora digitalizados. Sem ela, o capitalismo, que tanto acalenta o mundo (...) simplesmente não pode subsistir. Mas o regime romano caiu quando bárbaros destruíram Roma; o que não parece ocorrer com o capitalismo. Suas contradições são, na verdade, o motor de sua evolução, não de sua destruição.

Marx ensinou sabiamente que a alienação das pessoas dá-se pelo trabalho. Hoje, contudo, essa alienação dá-se sob uma via dúplice: o consumo e a informação excessiva, que objetivam simplesmente engendrar a construção, no consciente coletivo, de um mundo não-correspondente ao real. Uma verdadeira Matrix, onde os aparentemente livres humanos são escravos de um sistema autômato e perverso; nesse sentido, a mídia é responsável por bombardear o indíviduo com informação, reduzindo sua capacidade de reflexão. a aparente liberdade do consumo se reduz à liberdade da escravidão dos prazeres carnais; daí seu estímulo cada vez mais insistente pelos meios de comunicação, responsáveis pelo relaxamento moral em todas as áreas.

Não temos, assim, uma ditadura da mídia, mas duas, uma que morre lentamente, com a queda pronunciada das famílias Marinho, Mesquita, Frias e Civita, e outra corporificada na internet, integrante da nova fase do capitalismo mundial.

Todas as ditaduras, por último, se assentam em algum grau de força. Força militar, psicológica, simbólica- sempre se garantirá, em última instância, nesta, forçando as pessoas a aceitarem suas decisões. A mídia se assenta em uma violência simbólica sem precedentes, um verdadeiro estupro mental disfarçado de carinhos ousados no ego do telespector. Um dia, contudo, os cordeiros se cansarão de irem diariamente ao matadouro. Espero que esse dia, para o bem da inteligência humana, chegue o mais rápido possível. Mas, nesse sentido, as ditaduras, uma vez escancaradas, sempre perdem o véu com o qual ocultam sua dominação; elas não resistem à conscientização dos dominados e à força de ideais maiores que a força bruta. Vem, vamos embora, porque a repressão continua ativa e há um mundo de companheiros a libertar.

Porque a última ditadura que a humanidade deve enfrentar é aquela daqueles que lhes "informam'', deformando seu entendimento de mundo e mantendo-os na alienação. Só derrubando esse último déspota, ao homem será livre e poderá ambicionar a se autodeterminar. Sejam as cinco famílias, sejam os barões da fibra ótica.

"A força pode esconder a verdade, mas o tempo sempre trará a luz.''
(Dilma Roussef)