domingo, 13 de outubro de 2013

Do amor, do vento e das palavras



"Recordo-me que um certo filósofo falava no poder quase que cabalístico das palavras; o velho Heráclito. Palavras podem conduzir as consciências dos leitores rumo à viagens incríveis, reflexões inesquecíveis, sensações poderosas, situações irrepetíveis. Contudo, há pelo menos um elemento, um sentimento, uma força cuja mágica das palavras pouco pode alcançar: seria como descrever o que é o vento e como sabemos que, apesar de não o vermos, ele existe e tem tanto o potencial de nos refrescar numa tarde quente quanto de arrasar cidades inteiras. 

Pois nada melhor que o vento para descrever o amor, seja o que se entender por essa velha palavra latina, amore. O vento é uma força da natureza que que a tudo pode envolver, que está aqui e ali, geralmente suave e acalentador, mas por vezes forte e destrutivo. E, como toda força, tem uma direção definida, e atravessa tudo no caminho, de maneira lenta ou arrebatadora, para chegar a esse destino. Assim é o afetado pelo milenar mal do amor.

No fundo, talvez exista algo mais em comum entre o vento e amor. O fato de que ambos só podem ser considerados existentes quando uma vez sentidos à flor da pele; para saber-se o que é, só sentindo. Isso significa que o amor será somente uma fábula infantil para aquele que nunca sentiu-o percorrer todos os rincões de seu corpo, amolecer suas pernas, revirar seu intestino, fazer ribombar seu peito, arder seus olhos e levá-los às lágrimas... e, ainda como o vento, o amor age esculpindo na pessoa que toma um novo ser. Um novo ser, que sentirá algo novo.

Outro filósofo, Nietzsche, dizia que o sentimento, a paixão, a vontade, é aquilo que mais se aproxima de uma "essência'' humana. Um sentimento, dizia, voltado para a construção e destruição de padrões morais, políticos e culturais; com o amor, o eterno retorno ao nada, com a sempre triunfal ascensão da destruição criativa sobre tudo, sofre uma parada brusca. O amor apenas destrói o que havia antes e edifica, em seu lugar, algo que comunga da perenidade dos sentimentos e crenças sempre presentes em quaisquer sociedades humanas. O que se destrói é uma velha pessoa para que uma nova tome lugar no trono dos imortais, posto na assembleia daqueles que, um dia, amaram com todo seu ser a um semelhante. O caminho da imortalidade da alma é a comunhão com princípios e valores elevados, e no topo da hierarquia dos valores, está o amor. Ele é o fim da existência do homem e, por que não dizer, a porta estreita que, tal como um anel, conduz o ser amante à própria fonte do amor: Deus.

Resolvidos os problemas das essências, como e onde acontece o amor é um dos maiores mistérios da humanidade. Dizem alguns que, tal como uma doença endêmica, ocorre seguramente mais entre seres opostos que os iguais. Na verdade, tal ideia segue a tendência, sempre presente no senso-comum, de que o amor é algo radical: ou iguais, ou opostos. A verdade é que os opostos se separam quando a carga que os une termina (a curiosidade, o desafio, a atração pelo diferente...) e os iguais mergulham numa morbidez tão grande que, ao invés de se unirem e se confundirem em um só, tendem a desenvolver diferenças que não tinham antes, para se diferenciar um do outro, e terminam por se tornarem opostos. Essa racionalidade radical não corresponde à "fórmula do amor''. Na verdade, os amores reais, aqueles que encantam gerações em todos os séculos, se dão entre duas almas que encontraram tamanho complemento um no outro que, cada vez mais, ao invés de se diferenciarem, se unem em um laço de dependência sentimental arrebatador, que, tal como furacão, pode destruir tudo que as impede de juntarem-se numa unidade indestrutível. Se tornam, em pouco tempo, como que um só, comungando pensamentos, ideias, vontades, choros e alegrias, e a mulher se torna uma costela, de costel-cordis (coração, em latim), para o homem. O complemento perfeito pode ser aferido pelo simples pensamento de que a perda ocasional da pessoa amada destruiria de tal forma aquela que restou que nada mais vale a pena ser vivido.

E as palavras... para os apaixonados, são cabalísticas. Entretanto, muito cuidado com as palavras: a paixão não descreve o amor. Não há sinômia necessária entre um e outro. A paixão é uma emoção longa e continuada, quase uma obsessão de cunho quase sempre erótico que, como uma chama de fogueira, tende a se extinguir quando cessa o desejo. O amor, por sua vez, não cessa nem com a morte ou a velhice. Voltando-se ao ponto de partida: as palavras apaixonadas estão dentre aqueles que possuem maior potencial cabalístico. A magia de se ouvir um "eu te amo'' sincero pode mover montanhas mais facilmente que o "fogo!'' proferido por um general que ordena um bombardeio sobre uma cadeira de montanhas. A magia que existe nas palavras de amor são como que a própria extensão da alma apaixonada que busca adentrar à alma amada através de seus ouvidos...

Por fim, mágica maior não pode existir no amor que não sua unidade. E uma unidade, contudo, que tal como o branco é a mistura de todas as cores do arco-íris, pressupõe uma reunião entre várias dimensões do amor. Lewis, famoso escritor, elencou quatro tipos de amores, que, como degraus de uma escada, vão dos mais comuns e menos puros aos mais elevados: dizia ele que a afeição (familiar), a amizade, o Eros (amor de cunho sexual/marital) e a caridade (amor divino e incondicional) são várias dimensões de um mesmo sentimento que tem como fonte e finalidade Deus. Se o amor conduz à caridade, ao espelhamento do amor divino, é um amor real que opera mudanças positivas naquele que ama; quando se distorce em egoísmo, endeusando-se, torna-se a negação do amor, como comumente ocorre com Eros. Arrisco-me a dizer que, em relação ao último, só há chance de ter-se amor real se o Eros for a união entre todos os outros amores. Só assim se tornará independente da reciprocidade, pois a amizade traz o companheirismo, a afeição a profunda ligação dos parentes e a caridade a incondicionalidade elevada própria do amor divino.

E se há uma última palavra que pode ser dita pelo amor é que, como o vento, devemos senti-lo mais que tentar descrevê-lo. Só assim, ao invés de se entender como a árvore imortal do amor cresce, possamos encher nossos olhos quando, nas primaveras eternas nas quais os amantes se unem, os frutos penderem belos e viçosos de seus galhos e alimentarem seus dois jardineiros. Por que a eternidade é o prêmio daqueles que consomem suas almas em prol uma da outra, misturando suas cinzas em uma só, da qual renascerá um único ser, vivente para sempre. ''

José Luís Barreto

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