Hoje o
país se dividiu em comemorações e manifestações de repúdio. Como é
típico, afinal, de uma nação historicamente dividida em dois pólos
políticos que se enfrentam e se revezam no poder desde a independência.
José Dirceu, o verdadeiro poder por trás do Lula do conto de fadas, está
encarcerado. Genoino, outro manda-chuva do partido mais popular do
país, idem. São dois nomes que, a independer de
suas atuais funções na política nacional, trazem à lembrança de todos
os que viveram e sofreram com o jugo da ditadura imagens, no mínimo, de
herois. Dirceu era líder estudantil e comandou a histórica passeata dos
cem mil embalado pela morte de Edson Luiz; Genoino combateu no Araguaia,
foi torturado e massacrado.
Ambos representam uma geração histórica que
se convêm chamar de "geração de 68'', que se formou politicamente na
luta contra o regime militar e, com Fernando Henrique Cardoso, chegou ao
poder, a independer de suas divisões. São políticos, diga-se, que
formularam um modelo político de desenvolvimento misto, com as bases do
nacionalismo trabalhista de Vargas com nacos da doutrina socialista, que
no Brasil consistiu, em sua evolução, na proposição de um Estado de
bem-estar social cristalizado na Constituição de 1988. A carta magna
atual, assim, é o símbolo maior de sua vitória política sobre as forças
reacionárias que apoiavam o regime. E os dois condenados petistas foram
peças-chave na garantia, no texto constitucional, de uma série de
direitos sociais e da instituição de uma ordem econômica gerida pelo
Estado. Por outro lado, eram defensores, como herdeiros da rebelião
juvenil de 68, de uma maior liberação moral e flexibilização dos
costumes.
O que é interessante observar é que essa geração só toma o
poder quando uma vez coligada com as forças que sempre combateu.
Coroneis do interior do país ligados ao PMDB, ruralistas do PR,
industriais de vários partidos. Formalmente, a ideia era estruturar um
grande pacto entre capital e trabalho, unidos pelo desejo de retomar o
desenvolvimento nacional, em uma aliança que possibilitasse uma
histórica conciliação entre exploradores - alguns dos quais um dia
apoiaram o regime militar ou surgiram pelas benesses dele,
financeiramente falando- e explorados. Mas na verdade a frouxa aliança
escondia a adesão da heroica geração de 68 à velha forma de fazer
política: distribuir poder, fazer alianças em detrimento do pensamento
ideológico e vontade popular enriquecimento através da coisa pública. A
política das boas relações e do presidencialismo de coalizão.
E eis que
pagar dívidas de campanha dos aliados políticos é praxe nesse jogo de
poder, e foi assim que Dirceu e seus "comparsas'' arcaram com os débitos
do PTB e de alguns políticos isolados. A isso foram juntados uma serie
de fatos desconexos, como o contrato ente o BB e a agência de
publicidade Delta de Valério, a qual recebeu uma bonificação de volume
musculosa, entendida como dinheiro público (quando todos que trabalham
no meio publicitário consideram dinheiro da agência...) e o suposto
pagamento de propinas a um ex-deputado petista, também através de
contratos de publicidade. Tudo isso foi amarrado numa lógica duvidosa e
criou-se a ideia de que "se tratava de uma quadrilha'' embasada pela
ideia de que, se Dirceu comandava o governo na Casa civil e o partido,
ele necessariamente deveria "comandar também'' as ações "criminosas''
desenvolvidas pelo grupo do poder, por que tem o domínio final do
"fato''. E o resto é história.
Hoje todos foram presos, como uma vez
foram no regime militar. Dessa vez não por perseguição política, mas por
vontade política do STF em reprimir as práticas da "boa e velha
política'' tão presentes ainda hoje. Isso é positivo,
indubitavelmente... contudo, me espanta a seletividade do Tribunal
supremo. Há 15 anos o "mensalão tucano'' espera por julgamento, e a
partir do próximo ano a pena em abstrato de boa parte dos envolvidos vai
prescrever. Triste ver o fim de Dirceu e Genoino, que arriscaram a vida
em nome de ideais elevados, encarcerados por terem cedido às mesmas
tentações do poder que tanto combateram quando jovens e idealistas.
Apertaram as mãos dos homens que, um dia, armaram os militares para
combatê-los na ditadura; tomaram champagne com os que beberam o sangue
da nação; deram os braços aos que uma vez os apedrejaram. E o fim não
poderia ser diferente. Por que a história e o povo condenam muito mais
facilmente e pesadamente os idealistas e herois que se deixam corromper
do que aqueles que são vilões assumidos desde sempre.
Assim, além do rigor do julgamento incidir mais gravemente sobre os mocinhos do que sobre os bandidos (alguém acha que uma condenação do Batman não seria muito mais pesada que a do Coringa?), talvez Dirceu e Genoino tenham agora de realizar uma última contribuição para a política nacional. Se uma vez lutaram contra o regime militar, hoje suas imolações na cadeia podem os tornar símbolos de uma nova era de intolerância, em todos os níveis, não com a corrupção em si, mas com as práticas políticas arcaicas que ainda prendem o Brasil ao pior dos subdesenvolvimentos: aquele voltado para o enriquecimento de uma elite cada vez mais robustecida. Sua punição por aderirem à velha política pode, quem sabe, representar uma mudança na cultura política incutida por um repúdio generalizado ante à classe política. E, mesmo agora vilões, terão feito mais pelo país do que quando, um dia, subiram ao pedestal glorioso de herois na luta contra o regime militar.
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