É frequente que o senso comum politicamente correto - como parte integrante de nossa moral social- frequentemente contradiga as práticas sociais. Talvez regras morais existam para não serem (tanto) quebradas, ou para ao menos dar um pouco de ordem ao que, naturalmente, é caótico por essência: o comportamento humano. Sendo assim ou não, é de se notar que, especialmente no caso dos brasileiros, em que pese predominar um certo senso de união coletiva e de atenção caridosa ao próximo - herança, segundo o arquétipo ideal de Weber, de nossa tradição católica- está se operando uma escalada do individualismo, talvez em face da contínua norte-americanização da cultura brasileira. Além de vestirmos jeans, comermos McDonalds e agregarmos cada vez mais expressões anglófonas ao nosso linguajar habitual, - e, claro, importamos também as instituições políticas dos EUA, como o seu presidencialismo imperial e seu modelo de supremacia das decisões judiciais, razão do atual choque entre os Poderes da República na quebra-de-braço Executivo/Judiciário- acabamos por, a grosso modo, adotarmos a filosofia de vida tipicamente anglo-saxã.
Não se trata somente de se operar um robustecimento do individualismo na vida do brasileiro comum, que desgosta-se cada vez mais com instituições que anteriormente congregavam a coletividade e defendiam valores universais, como os partidos políticos, a Igreja Católica - substituída pelas pentecostais de origem norte-americana, onde o fiel tem uma relação direta com Deus, em um misto de auto-ajuda e interpretação literal da Bíblia, ensejando um crescente fundamentalismo (sim, deixe pessoas sem formação adequada interpretar um complexo texto histórico como se lê um jornal e não ficará impressionado com evangélicos enfileirados indianamente, gritando "morte aos gays...'')-, organizações sociais e sindicais, mas de uma verdadeira contaminação cultural (o velho provérbio "o exemplo vem de cima'', aplicado contra Luís XVI e ao fato de que todos, na França, procuravam emular o comportamento esbanjador do rei, tem muita força). A questão básica, penso eu, é que o individualismo emana das próprias instituições coletivistas, sendo causa de seu patente desprestígio: estas acabam se valendo de valores coletivos para defender os interesses privados de seus dirigentes. O padre que cobra o dízimo e tiraniza moralmente seus fieis, mas que utiliza as verbas da paróquia para comprar objetos de luxo ou mesmo ter uma vida sexual ativa; o político que se diz ético, democrata e defensor na família, mas que ostenta inúmeros processos judiciais nas costas, subserviência aos poderosos e algumas amantes (de ambos os sexos!) para variar. O chefe de trabalho que se apropria das criações de seus subordinados, reduz seus salários e aumenta o próprio, ainda assediando as pobres e indefesas secretárias; não se trata de hipocrisia, que é mero efeito, mas de um fruto direto do amor-próprio desenfreado que leva à satisfação de si mesmo às últimas consequências. Em suma, a máscara do coletivismo e do bem maior do grupo caem por terra quando os dirigentes das próprias instituições sociais dão "o mau-exemplo'', que põem por terra a função do grupos sociais. Logo, se dissemina, de cima para baixo, uma forma de viver e pensar que preza, antes de tudo, pelo próprio Eu e as vantagens que pode obter para si, aliando pragmatismo e instrumentalismo moral.
O individualismo é apenas a primeira fase do processo, onde o homem substitui os valores sociais pelos próprios, mas mantendo uma postura de respeito diante dos primeiros e dos valores individuais alheios. Só que, frequentemente, o individualismo "evolui'' para sua forma superior: o egoísmo. E, aqui, todo o respeito pela coletividade decai completamente, nada mais põe limites os desejos do indivíduo. Quando egoísta, busca se projetar contra todos afim de subjugá-los à própria vaidade, invadindo, se necessário, a esfera de intimidade alheia, pondo-se acima de tudo - como o caminhante das nuvens, ao lado. Maquiavélico, no pior sentido do termo.
Esse processo, assim, corporificado na falta de ética dos dirigentes sociais, é tomado como carta-branca pelos dirigidos para se rebelar contra a coletividade. A ideia básica desenvolvida por Trasímaco, em seu célebre debate contra Platão em "A República'' sobre a Justiça, elucida bem isso: o sofista dizia, basicamente, que a Justiça se confundia com a vontade dos mais fortes, que a usavam para justificar suas ações, que, claro, visavam sempre ao bem dos próprios poderosos. Os mais pobres e fracos, quando justos, apenas seguiam os desígnios dos mais abastados, sendo, assim, os valores coletivos uma peça pregada para mantê-lo submisso moralmente. Partindo da ideia de que esses valores eram relativos e históricos, já que tanto variavam de uma cultura a outra, chega-se a conclusão de que a ideia de justiça, em si, não existe. Ou seja, mais fácil seria ao indivíduo desobedecer ao valor social da justiça dominante, e, assim, realizar a própria vontade, e não a dos poderosos. Trasímaco fez uma verdadeira ode ao egoísmo moral. E, claro, a mesma ideia se dissemina cada vez mais: "vou garantir o meu, vou pensar o que quiser, custe o que custar, já que pensar o que é 'certo' apenas serve a u(ns)m hipócrita(s), não a todos.'' Salve sua pele, traduza-se!
Dizia o velho Freud que, seguindo o rastro platônico, a mente humana tinha uma divisão básica tripartite, onde os desejos irracionais e sexuais eram contidos pelo super-ego, ou seja, pela pressão social internalizada, em uma tensa relação mediada pelo ego, que, a grosso modo, seria uma seleção de quais desejos e características pessoais poderiam ser externalizadas. Quando esse super-ego enfraquece, a mente humana, em seu inconsciente, passa a erodir qualquer limite à satisfação do prazer. Logo, tem-se um desequilíbrio mental de certa ordem, já que, como qualquer órgão, a mente também tem uma lógica interna e uma função, baseada no equilíbrio entre as três camadas. E é esse preciso desequilíbrio que, hoje em dia, é causa frequente de psicoses, depressões e demais perturbações mentais. "Ó tempos, ó costumes'', dizia Cícero, e, hoje, diz-se "ó tempos, ó loucuras''! Ora, só podemos concluir que o inflacionamento do ego só pode ser um desequilíbrio a ser contido pelo robustecimento da pressão social.
Não é preciso recordar que, em épocas passadas, quando o egoísmo suplanta o coletivismo e o bem estar coletivo, gera-se tal divisão na sociedade que esta pouco pode resistir ante à crises profundas; note-se que Roma caiu em um período em que foi dividida por lutas pelo poder, e nunca mais se elevou novamente, onde cada general objetivava o trono, mas não pensava em repelir as invasões bárbaras! Certa vez, um velho monge galês, poucas décadas depois da queda de Roma, escreveu um livro, "Excedio britanae'', denunciando as causas da conquista e destruição da Britânia sub-romanizada pelos invasores saxões. A principal causa da derrota dos bretões foi sua divisão em um grande número de reis, cada um lutando contra os demais em busca do poder: foi somente quando um jovem, Ambrosio Aureliano, reuniu os reis e comandou as primeiras e lendárias vitórias do seu povo contra os invasores, que serviu de base para o surgimento da lenda do Rei Arthur, o mito que, em si, representa, até hoje, a unidade territorial da Inglaterra e marco de legitimação da monarquia inglesa. Quando Ambrosius morre, e seus filhos disputam o poder, completa-se a derrota dos bretões.
Porque são nos grupos sociais diversos que buscam-se apoios e proteção diante de abalos que somente pela coletividade podem ser solucionados: a civilização floresceu a partir dos braços dos homens e mulheres que, juntos, dominaram os grandes rios e retiraram as primeiras colheitas do seio da terra, e foi sua cumulação que permitiu a especialização do trabalho, a geração de riquezas, sua concentração e consequente desigualdade social, um dos pilares do egoísmo. Ou seja, a raiz do amor-próprio desenfreado é, em última análise, a própria união social. Sem esta, pouco há para o intelecto humano objetivar: todos os grandes desafios, e, por sua vez, as grandes conquistas, são coletivas. O que motiva o indivíduo, o que lhe introjeta ambições, são desejos e desafios instituídos pela coletividade; é esta, inclusive, que estabelece como padrão de comportamento o individualismo! Teria Alexandre Magno conquistado o mundo antigo sozinho? E as grandes navegações? E a ida à lua, o que seria, sem os centenas de estudiosos, políticos e militares que para sua consecução se empenharam?
Mesmo que a ética seja um valor imposto, ela não deixa de existir como um fator que une pessoas diversas em prol de objetivos em comum - no clássico do cinema "O poderoso chefão'', um patriarca comanda, protetor e sábio, uma família mafiosa, a qual as vezes precisa oprimir, para garantir que esta sobreviva e, nem por isso, acaba por impor sua visão, egoisticamente, aos demais, sempre procurando ouvi-los, mas sem abrir mão de sua autoridade, sem a qual a família decairia em desagregação e, consequentemente, ao ocaso; é uma relação de dependência entre governantes e governados, que precisa ser reconhecida. E é por isso que a ética geral e universal não pode ser suprimida: sem ela, a sociedade, e nós mesmos, não seríamos viáveis. E se esse objetivo comum serve ou não, realmente, ao interesse maior da coletividade, é algo a ser julgado pelos próprios componentes desta - embora não se possa negar, como Trasímaco, que ele existe! E, atualmente, chega-se a conclusão, neste país, de que o que devia ter funções públicas, seguindo uma tendência histórica, acaba por servir ao desfrute privado: na verdade, diria que se trata de um momento de conscientização a respeito dessa inversão e, claro, o início de um movimento que recuperará o papel das instituições coletivistas, que, uma vez mais, retomarão seu papel de super-ego sobre o hipertrófico Ego de todos nós. Dessa forma, que se reconstrua a ética, que, como uma bandeira, possa representar a síntese entre a tradição brasileira, coletivista, e as influências globalizantes atuais, individualistas, garantidora de um mínimo-ético à nação e, ao mesmo tempo, condições de propiciar a autonomia moral do indivíduo. Assim, certas questões devem ser deixadas à escolha do indivíduo, mas outras, deverão estar sob guarda das competências da sociedade. Mas isso importa, no mínimo, a repressão ao egoísmo desenfreado e doentio de que estamos começando a sofrer, pelo qual lotamos clínicas psiquiátricas e centros de recuperação de dependentes químicos, além de dar continuidade ao mesmo modelo social explorador e repressor que tanto nos marca, entristece e ilude. O egoísmo é uma máscara, mas com a qual não nos escondemos, mas sim à sociedade, da qual fingimos não precisar, e estigmatizamos como algo negativo e prescindível!
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