O que é a santidade? Há pouco tempo, pensava eu que "santidade'' era uma característica inatingível portada por homens e mulheres esculpidos em pedra que decoram as Igrejas. Pessoas que eram muito diferentes das quais se encontra habitualmente: modelos de perfeição moral, marcados pela dor e sofrimento em renegar ao mundo para servir a Deus. O sacrifício por eles feito, assim, me estranhava e até mesmo assustava; pareciam eles tão distantes de serem alcançados quanto as estrelas dos céus; totalmente inumanos, pois negavam, com suas renúncias, ao que me parecia mais natural ao ser humano.
Essa mácula de tristeza, seriedade, pudor e abstracionismo, descobri, não passa de pura invenção ou estereotipação que é imposta pelo senso comum. A santidade não é algo que está além do homem, mas, sim, é intra omnes: ser santo é seguir a própria e verdadeira natureza humana. Não a fisiológica, mas a espiritual, a de amar sem medidas, tal como Deus, e por isso se entende doar todo seu ser em prol do próximo. E, longe de serem pessoas tristes e infelizes, os verdadeiros santos são poços eternos de alegria e felicidade, por que encontraram a fonte do amor na doação. O único sacrifício que fizeram foi o dos seus próprios interesses e vontades mesquinhas em prol dos demais seres vivos. Amaram, como Deus amou, até o fim de suas forças e, ao perder sua vida, acabaram por ganhar uma nova, eterna. A maioria desses santos, contudo, não são venerados nas Igrejas.
Um sem número deles jamais serão conhecidos, mas o amor que praticaram os fez adentrar ao Reino eterno. Essa maioria, contudo, é de pessoas simples, tal como pronunciado no Evangelho "para adentrar a Meu Reino, deveis ser como crianças''. Isso não significa, por sua vez, portar ingenuidade ou inocência. Uma criança se diferencia de um adulto por ser "vazia'', livre de ideologias, filosofias ou preocupações materiais, e totalmente confiante em seus pais. Deve-se estar vazio, livre da "riqueza de espírito'' para aceitar a Deus e Nele confiar como uma criança confia em seus pais. Isso é "ser pobre de espírito'', mas rico de Deus. Não é por caso, por outro lado, que alguns dos maiores santos foram pessoas pobres, materialmente falando: a miséria e a abnegação dos bens do mundo auxilia numa maior valoração da cooperação coletiva e incute uma busca permanente pelo bem estar do próximo. As pessoas mais felizes que conheço, certamente, são aquelas que voltam para casa, depois de 8 ou 10 horas de trabalho cansativo, satisfeitas em terem uma família ou amigos para quem se doam completamente.
A pobreza de espírito, assim, não raro, coincide com a pobreza material, e não por outro motivo que Jesus tanto andava entre os pobres e marginalizados; é contra eles que a dor vem mais forte, e é no solo fértil da periferia que as sementes de Cristo afloram mais rapidamente. A questão da pobreza conduz a mais uma indagação. Como pode, diante da santidade dos pobres, o Criador permitir tanta opressão contra eles? Será Ele injusto? De que vale ser santo? Tais indagações, que levam muitos a se afastarem da Igreja, é respondida pelo fato de que a justiça de Deus não é a do "olho por olho'' talionesca e erroneamente disseminada pela teoria da retribuição (Deus castiga os injustos e premia os justos) mas sim a da misericórdia. Ele não pune um tabefe com outro; dá a outra face. Não fez cair um raio sobre os que o crucificaram; perdoou-lhes e, assim, os salvou. Assim, ao invés de conclamar a destruição dos opressores, Deus oferece o caminho do perdão, por que a traça e o tempo irão erodir toda a riqueza e poder pelos quais os grandes do mundo tanto se sacrificam. Só o que restará, na vida eterna, serão as boas ações desta vida e perdoar quem oprime e mata por ganância é uma das melhores possíveis; por que são os próprios pecados que condenam o pecador, e a desvirtude é uma forma lenta de suicídio, já que Deus nos brinda com o caminho da vida, mas preferimos, conscientemente, o da morte. Deus não condena, salva e perdoa.
É nesse ponto da justiça que existe uma falsa dicotomia entre santos e pecadores, como se as duas esferas não pudessem se tocar. A verdade é que todo santo tem seus pecados e todo pecador suas santidades. Contudo, em determinado momento da vida, o santo escolheu superar seus pecados em nome de um bem maior, enquanto que o pecador foi incapaz disso, negando assim sua natureza e condenando a si mesmo à tristeza e morte. O inferno, assim é uma criação da humanidade, e está aqui, ao nosso redor, disfarçado de paraíso material. O custo de nossos prazeres consumeiristas é a miséria de mais da metade do mundo, fome, doenças alastradas, trabalho infantil, condições espúrias que aceitamos para ter um celular ou um carro da moda. O inferno é a destruição das vidas de tantas pessoas, seja pela pobreza seja pela depressão, por um sistema econômico e cultural corrupto, assassino auto-proclamado divino e inquestionável. É o "príncipe deste mundo'' que antes era o império romano e hoje é o capitalismo todo-poderoso, absolutizado; é com ele que não podemos coadunar. Não é possível servir a dois senhores, da mesma forma que não podemos alimentar o capitalismo consumeirista e suas terríveis consequências e ao mesmo tempo portar-nos como servos de Deus. Quantos mais pobres e famintos teremos que sacrificar nos altares dedicados aos novos césares?
Curioso é notar que esse sistema utiliza-se do cristianismo, muitas vezes, como ferramenta de consolo provisório, verdadeira ideologia de auto-ajuda que acaba por renegar a essência do próprio cristianismo. A auto-ajuda é um ode ao egoísmo: um monte de palavras escritas em um livro me ajudarão a ficar em paz, por pouco tempo; eu "me ajudo''. A salvação e a paz do cristianismo levam o homem além dele mesmo: é ao ajudar o próximo que evoluo, e é Deus, não eu mesmo, quem pode me conduzir nesse caminho. E esse é o caminho da santidade, e fora dele não há felicidade possível. Todas as outras formas de felicidade são degenerações desta em especial, por que invertem os polos básicos da felicidade oriunda da doação ao próximo: a pseudo-felicidade é uma forma de auto-adoração, de satisfação consigo mesmo, não com os outros ou com Deus. É uma auto-enganação.
Assim, um verdadeiro santo não tem um coração de pedra como as imagens presentes na Igreja; mas de carne, que pode se ferir e verter lágrimas, sem contudo deixar de amar a tudo e a todos como Deus ama aos seus. Tampouco seguir padrões rígidos de conduta, desumanizados; mas sim realizar a verdadeira natureza humana e, ao perder sua vida em prol do próximo, encontrar a vida eterna e a felicidade sem fim, realizando a justiça de Deus nos mais divinos atos de amor: dar a vida pelo próximo e, realizando a justiça de Deus, perdoar. A perfeição não consiste na adesão e cumprimento de postulados morais vazios, mas sim a vivência prática do amor incondicional, sendo esta a natureza humana, "imagem e semelhança'' de Deus. Santidade e felicidade, assim, são duas faces de uma mesma moeda.
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