"Paris, 28 de outubro de 1893
Minha doce alteza,
O burburinho típico de meus círculos sociais fez a mim chegar uma notícia muito diversa das que estou acostumado. Nos cafés frequentados por minha decadente casta ociosa, vosso nome ouvi. Atentei-me um pouco mais, endireitei-me na cadeira. Meus ouvidos beberam cada palavra que me era dita sobre ti como as abelhas que sorvem néctar das flores para semear a vida.
Foi assim que, como um trovão numa noite escura, soube que estavas de volta à cidade. Meu peito deu saltos, meu espírito avermelhou-se mais que meu rosto e meu pensamento dava voltas em torno de teu eixo magnífico... nada mais quis fazer que não encontrar um meio de ver-vos, depois de nossa prolongada ausência um do outro. Saí do café J'Rome saltitante como uma criança e, não obstante a modorra cinzenta do velho nublado de Paris, em meu ser um belo sol de primavera brilhava como nunca antes. Corri a tomar um coche e parti para a mansão de tua família, sob um pretexto qualquer.
Pobre cocheiro. Penso que nunca recebeu tantos xingamentos dos transeuntes. E isto por que eu lhe prometia, minuto a minuto, aumentar sua gorjeta caso chegasse mais rápido ao meu destino, o que o estimulou a tentar algumas manobras arriscadas. A pressa valeu-me uma conversa rápida com a cavalaria republicana, que patrulhava as ruas nesta tarde; não obstante o aborrecimento, quase dei um abraço no truculento sargento que me perguntou o motivo de tanta, e tão perigosa, pressa. Prossegui na minha jornada...
E foi percorrendo as ruas em direção a ti que passei pelos lugares mais importantes para nós, como que revivendo, um por um, todos os capítulos que já escrevemos desta pequena tragédia, romance, comédia... a triunfal Casa do abutres, o Parlamento de Paris, onde cingistes os umbrais antes só reservados aos homens como mera ouvinte, e me vistes a portar a toga dos velhos oradores. Ao adentrar àquele recinto com cheiro de bolor, tédio e esquecimento, senti algo diferente no ar. Um doce perfume, e uma luz rarefeita, que, como um clarão, cegou-me a vista, quando nos teus olhos olhei. Perdi-me no seus mares escuros; arrebatado fui, como que eletrizado por um raio, e balbuciei pela primeira vez na vida ao ministrar meus deveres. Saí daquele lugar com o coração a romper a boca, banhado de suor, tonto de incerteza. Será que tu virias novamente? E tu, quem eras?
Os dias que se seguiram, sem tua visão, foram como que uma noite incerta. Na mesma noite que o navegante sente ao deixar sua terra e aventurar-se pelo mar, assim fui eu, atormentado pela chance de não mais ver-vos. E não é que, depois das festas de fim de ano, lá estavas? Altaneira, com um belo vestido de veludo negro, um véu a cobrir-lhe as faces delicadas e a pele branca, os cabelos louros soltos, caindo como que uma cascata de sol a me deslumbrar o olhar. E aqueles olhos, que a mim voltastes novamente. E, mais uma vez, fiquei cego.
Depois dos discursos ordinários, recebi os cumprimentos de meus pares e, para minha surpresa, lá estavas tu entre eles. Ao apresentar-te, logo reconheci em vós o nome, as posturas e a docilidade que só a realeza feminina pode portar. E quão doce era tua voz! Mais que o sibilar dos pássaros, reconfortante como a brisa da tarde, mais penetrante em meu espírito que uma espada afiada.
No mesmo dia, por meio de um amigo, que por sua vez conhecia outro, consegui ser convidado a um jantar a ser dado pelo teu pai, o príncipe, na mansão herdada por vós após o exílio de tua Casa. Tomei intimidades com os teus, troquei risadas com teus progenitores, demonstrei todo meu vigor intelectual. Mas não estava ali; meu olhar trôpego mal divisava as pessoas ao meu redor; as belas damas convidadas a mim pareciam parte da decoração. O que era isto, Deus, que sentia ao vos ver ali? Uma forma de loucura, uma doce obsessão, uma paixão ordinária?
Descobri que não era nada disso. Algo muito maior, deveras.
Passei a frequentar vossa Casa daí em diante. Piedosamente, teus nobres pais me pediram que vos ministrastes lições de latim e grego. Posso dizer que, à cada aula, era eu quem mais aprendia. E cada vez, me desconcentrava mais e mais. Logo, em teus olhos não mais vi o brilho da curiosidade... teus gestos, o tom de tua voz, a forma como, ao vos deixar desfechando as lições, parecias desesperada pela minha partida. Estavas tu a enlouquecer também?
A grande Igreja de Santa Madalena cresceu, em seguida, sob meus olhos. Lembras quando lá nos encontramos ao acaso? Eu, antigo pretendente ao sacerdócio, das últimas bancadas divisei teu esplendor. Que o Divino Cristo me perdoe, mas reluzistes mais para mim naquele dia mágico que a cerimônia sacra, e as palavras do senhor bispo escaparam-me dos ouvidos, nos quais só tua doce voz, vívida nas minhas lembranças, ressoava... lá foi que, na hora da comunhão, nos esbarravamos sempre, levemente, para sentir um ao outro. E tantas vezes alegastes indisposição e fostes tomar ar nos ofícios, para ver-me na pequena rua ao lado... pequenos abraços, doces olhares, palavras apaixonadas dali surgiram. Assim te tornastes devota de Santa Madalena, e das fervorosas, por que nunca mais frequentou outra Igreja. Nem eu.
Foi assim que, depois da Igreja de Santa Madalena, meu coração bateu mais forte ao divisar o Café Dominique, tão forte quanto os sinos que conclamavam os fieis para a Missa da tarde. Para lá, num lugar discreto da cidade, perto do antigo palácio real, vos convidei numa tarde quente de julho. E que belo dia... a rigidez entre nós quebrou-se, risadas brotaram, junto a olhares que nos faziam calar por longos minutos. De lá sai, ao vos deixar de volta em tua mansão, como criança a andar pelas ruas tortas perto do Sena, e em longas noites, cantei, como boêmio, as proezas de tua beleza. Diariamente, publicava eu um pequeno poema no Jornal da Manhã, dedicado, secretamente, a ti. Segredos, como sempre. Afinal, és a noiva do príncipe herdeiro de tua terra.
Dizia Cícero que é triste ao homem formar para si ilusões com o fim de negar a realidade. Por mais que me distinguisse na oratória parlamentar ou nos círculos burgueses de Paris, nossos mundos não podiam coligar-se. Teu sangue nobre te forçava a enlaçar-se com outro ser de origem alta. Mas, mais do que nunca, estava eu cego, e conduzia minha carruagem para o abismo das frustrações; desobedecendo Platão, deixe guiar-me pelos cavalos dos sentimentos, afrouxei as rédeas e pus em ferros o condutor da razão.
Toda paixão que, tal como uma rosa num campo de flores, não deveria nunca ter crescido, passa a causar contratempos. E, gradualmente, conflitos surgiram entre nós, devido à impossibilidade de futuro que tal sentimento, embora grande e sincero, nos impunha. Mas, na medida em que as pequenas brigas aumentavam, a brasa da amor ardia mais forte. Cobri-te de presentes, e tu a mim, e vivíamos em um conto de fadas entremeado por pequenas tragédias ordinárias. Cartas, quantas cartas trocávamos? Pelas noites sem fim, pelos dias longe um do outro. Sentia eu uma agonia, uma dor, certo desespero que não se sabe descrever, e meu espírito só encontrava paz com tuas palavras ou tu presença. E assim era com tu... quantas loucuras e sacrifícios, alteza, pareceram ínfimos ante às vezes que nos vimos na calada da noite?
Foi assim que divisei, entretanto, a rue de Sommeile, tão escondida, onde eu alugara uma pequena casa de varanda onde podíamos nos ver sem incômodos. Ou com menos incômodos. Ali, o doce mel que tanto admirei em ti pude sorver, e tuas mãos pude acariciar; a teu rosto pude finalmente aferir quanta maciez ele denunciava ter; teu perfume aspirei mais que os pobres chineses viciados em ópio. E, também, quantos gritos e blasfêmias dissemos um ao outro, em nossos momentos de tensão...
Todos os grandes amores encontram seu ocaso em pleno auge.
Uma estrela, dizia Ovídio, só mostra o quanto pode brilhar quando despenca do céu, atingida pela inveja dos deuses, que sempre desejam emitir mais luz que toda a criação. Talvez por inveja, mas as três velhas que fiam o destino dos homens e Saturno, este deus cruel, atiraram pedras à ilusão que juntos construímos. Ilusão, alteza, de que o conto de fadas para sempre dura, e que seus finais são felizes. Na verdade, tal como o feitiço que tornou a plebeia princesa até a meia-noite, nossa aventura tinha prazo, prazo para que as carruagens se transformassem em abóboras, e os cavalos vigorosos que puxavam-na, em ratos.
E assim, com grande emoção, vos conflitei com o pedido de fuga. Venha comigo, disse eu, para o interior do país, para as colônias. Lá poderemos casar, tornar as promessas e desejos de ambos reais. E foi assim que vi em ti a dúvida. Um coração dividido, como disse bem Horácio, não ama totalmente. E assim estavas; e assim quisestes permanecer, até que tivestes que decidir qual perfume não poderia ficar no frasco delicado que é teu peito. Não fui eu a triunfar.
Lembro das noites após aquela entrevista. Uma grande agonia, para mim e para ti; um tormento sem fim; horas que martelavam a dor da tua perda, bem fundo no meu coração espatifado; dias cinzentos e frios, sem vida ou esperança. Quantas lágrimas não derramei? Ainda hoje, nas noites de dor, me pergunto o porquê de tua decisão, ou da aparente irracionalidade de Deus em nos permitir construir algo tão belo para logo depois por em ruína. Como resposta, ouço o sussurro do vento, a bater nas paredes de minha casa, como que a me acusar de muito ter amado.
E, não obstante tudo isso, continuo a vos amar. Deus muito foi adulado com pedidos desesperados, para que Ele, com sua Divina Misericórdia, retirasse, como cirurgião retira uma bala do coração do doente, este amor de mim. Mas, aparentemente, Ele ouve uma coisa, e faz outra; por que só o que consigo é amar-vos mais e mais. Que faço? Que faço, por todos os santos do céu?
Tua imagem não cessa de me surgir; tua voz não consigo parar de ouvir, no vento, no resfolegar das flores, no ruído da chuva beijando a terra, como convosco fiz outrora. Meus pensamentos giram em torno de vós, como os planetas ao redor de um sol, e muito rezo a Deus por um milagre. Que me faça príncipe, para que possa vos tomar pela força da tradição; que me faça herói de guerra, para que possa vos tomar pela força da reputação; que me faça regente da República, para que vos possa tomar pela força da unção popular. Sinto, pois, que nada disso bastaria. Ah, que enorme tristeza!
E tu, o que pensastes, no que pensas? Terás esquecido tudo o que apenas Deus e nós sabemos?
Hoje vi teu retrato, com vosso esposo real, no Jornal do Governo. Parecias feliz, e a legenda abaixo do noticiário proclamava a beleza do amor do mais novo casal real a trocar alianças em Marselha. Poucas vezes tanto quis desaparecer, como quando vi aquela imagem; que o chão se abrisse, e me engolisse para seu seio, e me destrinchasse em mil pedaços. Pois assim ficou meu coração, ao ver-vos longe de mim. Uma mão de ferro fechou-se sobre meu pescoço; meus pés perderam o vigor; minha cabeça esvaziou-se de tudo; meus olhos arderam, e lágrimas me banharam a face vezes seguidas. Toda a frustração, mágoa e decepção que os derrotados sentem na guerra perdida tomaram conta de mim. Nem quando, como Tenente de cavalaria, vi a derrota em Sedan, senti-me tão igual aos cães que fuçam nas lixeiras da muralha de Paris.
Toda a dor dissipou-se quando soube de tua chegada e, ainda mais, quando de ti recebo um bilhete acalentador. Agora, apresso os cavalos para ver-vos. Misterioso é o amor, que tanto nos inflige a dor, para, no instante em seguinte, nos preencher de felicidade. O que faço em diante ou não, não tenho ideia. Meu único desejo é, uma vez mais, ver estes olhos que tanto me paralisam...
Saibas tu que meu amor por ti é tão perene quanto uma estrela a brilhar nos céus. Saibas que, apesar de tudo, meu coração vive, mais forte do que nunca, a bater por vós; saibas que tal sentimento toma conta de mim como que uma força estranha que me faz flutuar, delirar, dançar nas nuvens do paraíso com os anjos do amor. Para ti retorno, nem que seja para ver-vos de longe... pois vou de encontro ao meu destino.
Espera-me, pois, como vos disse tanto, volto para te buscar...
Meu coração é sempre teu,
Minha fé é sempre em ti,
Nosso amor é para sempre eterno,
Jean Marie de Fouquet''