domingo, 9 de dezembro de 2012

Ter e não ser, eis a questão: o império da megalomania



 

O caráter de uma pessoa é discernível pela sua reação quanto às boas qualidades do outro. Alguém que respeita, reconhece e mesmo admira as boas qualidades de uma pessoa é um ser humano aberta para a evolução, diálogo e, claro, sinceramente capaz de nutrir afeição pelo próximo. Tendem a perceber e valorizar mais os traços bons do que os defeitos. Já um outro tipo de gente procura destruir o outro, menosprezar suas capacidades, ocultá-las, ignorá-las ou sobrepujá-las, sempre dotando esses talentos de alguma característica negativa, talvez para compensar sua própria inferioridade ou simplesmente “eliminar a concorrência’’ de alguém que pode ser, no lugar dele, o centro das atenções. Uma pessoa que fala bem é “espertinha’’; um estudioso é “louco’’; um fiel cristão é “alienado’’; um bom pai de família “sempre tem algum segredo sujo’’; alguém que escreve reconhecidamente bem só o faz para “aparecer’’; se fulano é rico, "é porque roubou''; se cicrano é ético, é por interesse ou falsidade.  É triste.

O pior é que o segundo tipo de pessoa costuma parecer o primeiro: fingem respeitar e admirar o outro, o cumulam de elogios, buscam seu favor quando necessário, utilizando uma bajulação constrangedora para maquinalmente ocultar suas movimentações contra o incauto objeto de inveja. Esta é fruto da vaidade das pessoas: não conseguem suportar que algumas pessoas façam certas coisas de forma melhor, ou que tem princípios mais elevados, ou que são mais queridas. A inveja e a vaidade, essa acima de tudo, são verdadeiras patologias do espírito, que muitas vezes levaram os homens a por em prática empreitadas absurdas, como o objetivo milenar de alguns elementos humanos de ascender à divindade. E, tal como os déspotas da antiguidade oriental (era o caso de nosso velho conhecido, o imperador Calígula, a personificação da inveja, da loucura e da megalomania), nossos invejosos de hoje buscam superar o outro, dominá-lo e converter-se no objeto máximo de adoração alheia; qualquer pessoa “melhor’’ que estes pequenos tiranos deve ser destruída. É o reflexo da opção descarnada sociedade pelo espetáculo pirotécnico midiático, da colonização do espaço público por meros interesses privados: as pessoas almejam se tornar celebridades de seus pequenos microcosmos sociais. E nada mais propício ao império da inveja do que o desejo da fama e glória. É o “querer ser admirado’’, sobretudo a partir do poder econômico. Acaricia nosso ego. Doce ilusão!

Tanto teimam em superar os outros, para supostamente resguardar sua arrogância e seu ego intactos via consumo, que esquecem de suas próprias qualidades, e acabam perdendo sua identidade, valores e mesmo a capacidade de amar.

Uma pessoa sem caráter, que deseja se tornar objeto de adoração pelos outros para alimentar sua própria vaidade (como no conhecido conto de fadas, onde a rainha-má teima em tentar tornar-se a mais bela, destruindo a pobre Branca de Neve por ser mais bonitinha), acaba esvaziando-se de valores, da própria personalidade e finalidade ética para simplesmente viver em função de si mesmo; o que, em resumo, não tem sentido nenhum: acumular bens, consumir, concentrar poder, e para quê? É o alto preço que se paga pela megalomania materialista de nossos tempos. Por outro lado, são duas as forças que destroem a fortaleza do espírito humano, e estão na raiz do mau-caratismo do homem invejoso. A primeira, a frustração, seja com o corpo (representação do Eu para a exterioridade/sociedade, bem como autoimagem), seja com os relacionamentos amorosos, seja com aqueles de quem dependemos e que dependem de nós (família, por exemplo); e que, no nosso pequeno estudo, é compensada pelo uso - e abuso- do poder econômico para forçar uma modificação em tais estados de fato: cirurgias plásticas para "corrigir'' o corpo; redução do amor ao sexo, que pode ser pago; redução da família e amizade ao pragmatismo ou ao simples convencionalismo. Essas três formas de tentar superar a frustração consistem na simples adoção de estereótipos sociais. A segunda força, talvez um pouco desconhecida, mas igualmente devastadora, são os próprios paradoxos da vida, que a fazem perder o sentido: momentos de felicidade extrema seguidos de tristeza; vitórias seguidas de derrotas; a morte que ceifa a vida. O sofrimento necessário ao amadurecimento é abominado e, de todas as formas, escondido, evitado: busca-se apenas o prazer. O homem se torna assim frio, tanto porque perde a esperança no otimismo ou por simplesmente ignorar as lições do sofrimento, estagnando em sua evolução espiritual.

O homem invejoso e egocêntrico é uma casca vazia, inconstante, que pode deter mil conteúdos estereotipados diferentes, que sempre são trocados de acordo com as circunstâncias; acabam vivendo em função dos outros, tentando compensar suas frustrações e, ao tentar se tornarem os senhores absolutos dos seus semelhantes, acabam reduzindo-se a um tipo curioso de escravidão e dependência sentimental dos elogios de outrem. Perdem o sentido de suas vidas, mergulham na depressão - porque se frustram fatalmente- ou, então, acabam se afundando na perversidade e na frieza: são capazes de apreciar o sofrimento alheio sem sentir um pingo de emoção. Destarte, podem se tornar bestas, amálgamas de vícios (pedofilia, alcoolismo, dependências de narcóticos etc) – por meio das quais buscam emular ou simular satisfação e felicidade, algo do qual são incapazes- ou, então, nem sequer isso: o pior para eles é terminar como uma estátua, vivendo mecanicamente. 

É assustador saber que essa tipologia nada especial de seres humanos domina nosso mundo, seja como políticos, empresários, banqueiros ou religiosos... e, claro, buscam impor os mesmos (des)valores ao resto da sociedade. E a voz por meio da qual fazem isso é a mídia. Diversas crises econômicas, políticas, culturais, espirituais, psicológicas tem como causa direta a imposição do estereótipo da megalomania, que é o meio implicito que o sistema capitalista encontra para estimular o consumo amalucado e a competição pelo dinheiro, poder e status. E, eis as perfeitas distrações para o homem frustrado e pessimista: preocupado com a busca do poder, mal pode averiguar a ruina interior e sua própria infelicidade ou, pior, busca compensar essa frustração com o consumo. Competindo, para tal, com o outro. Eis a gênese da inveja.

Essa competição, longe de levar a ascensão dos "mais produtivos'', dos melhores elementos ou de propiciar o avanço técnico da sociedade (que são apenas efeitos colaterais: ora, quem já tem dinheiro e tecnologia não vai permitir que pessoas com potencialidades maiores, mas sem os mesmos recursos, ascendam, não?), tem como efeito principal o esmagamento da grande maioria por uma minoria ( e a consequente crise existencial e a proliferação de patologias sociais diversas, como vícios, pobreza, marginalidade), legitimando toda forma de arbitrariedade e abuso em nome do lucro e do consumo, que são as formas oferecidas pelo capitalismo para satisfazer a vaidade humana; a projeção disso, na economia, são os poderosos monopólios não-naturais que dominam a economia mundial. A inveja é a peça-chave nesse processo, no microcosmo social das pessoas. O Mercado, numa frase, oferece a seus discípulos a chance de ser "deus'': donos de sua vida, reis de si mesmos, livres para satisfazer a si mesmos, usando e desusando as pessoas, senhores de seus contextos sociais. Acabam, pois, escravos não só da opinião alheia, mas do próprio Mercado! Mercado este, note-se, criado por estes mesmos homens, ansiosos de usá-lo para satisfazer sua vaidade!

Em suma, nosso sistema, numa visão microsistêmica, é sustentado pela vaidade e inveja das pessoas, de uma certa forma. Essa vaidade é quantificada pelo lucro e consumo, sendo o outro um adversário a ser derrotado para a suposta supremacia do homem. O resultado é que o homem deixa de ser homem, esvaziando-se de si mesmo, tornando-se ou um psicopata ou uma máquina fria e implacável pragmática, em busca de poder, status, glória.  O ter destruiu o ser: as pessoas buscam destruir-se, para concentrar poder aquisitivo em suas mãos. Essa necessidade de destruir o outro é enraizada nas frustrações e na esquizofrenia invidual em abominar o sofrimento. Em suma: o invejoso, o frio e calculista, o psicopata e tantos outros loucos sociais são frustrados, títeres raivosos de um sistema decadente que constitui, ele mesmo, uma doença. E tudo isso nos acompanha em nosso dia-a-dia! Cuidado com os invejosos: o buraco é bem mais embaixo!

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