quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Cem anos de baião


Conheci a música nordestina ainda muito cedo. Uma vez, estávamos eu e meu pai no carro, diante da chuva que caia sobre as plantações de palma. No rádio, que estava ligado, uma música internacional deu lugar a algo que eu nunca tinha escutado: um ritmo arrastado, contagiante; letras alegres, irreverentes; era ele, o rei Luiz Gonzaga. Fiz o que muitas crianças faziam e fazem hoje: me desinteressei. Meu pai aumentou  o volume do rádio e começou a cantar, algo que nunca havia feito: só depois, quando adolescente, eu viria a saber qual o significado que as músicas daquele homem misterioso, por trás de uma voz tão marcante, representava para nordestinos da velha guarda.

Pois bem, foram cem anos de encantos, dores, lágrimas e glórias. Hoje é um dia maravilhoso para o Brasil: o centenário de seu maior artista, o rei Luiz Gonzaga. O maior, sim! Grande, porque sua música encantou o país numa época em que o nodeste era considerada a "região-problema'', curral eleitoral de oligarquias viciadas, o "quintal'' do sudeste industrializado, destino este de muitos dos pobres sertanejos. Gonzaga foi um deles, e, como retirante, também uma vítima de injustiças sociais: foi obrigado a fugir de Exú porque cometeu o crime absurdo, inonimável e hediondo de apaixonar-se pela moça errada! Jurado de morte, entrou para o Exército e jurou voltar ao sertão coberto de riqueza e casar com Nazinha, seu primeiro amor.

Mas, ora, por quase vinte anos, sofreu junto aos nordestinos que buscaram no Sudeste uma esperança de riqueza. Morou em favelas, passou fome, tocava nas ruas para ter esperança de chegar ao estrelato; e, em meio a capital do poder, o Rio de Janeiro, Gonzaga subiu da lama às estrelas. Os nordestinos viam um pobre como eles, retirante mulato, fazer presidentes, industriais e oligarcas se inclinarem em respeito ao seu talento! "Se ele pode, nós podemos!'' tornou-se a frase de ordem para os filhos do nordeste, desde então.

 Ao lado do sua personalidade e história marcantes, a música gonzaguina, seu ritmo, suas letras simples, portadoras, ao mesmo tempo, da profundidade profícua das espadas filosóficas que cortam a alma, encataram o Brasil. A produção desse grande homem não pode ser vista, contudo, como um mero trabalho entretivo: sua principal obra, "Asa branca'', é mais um grito de socorro, um grito de "Brasil, nós nordestinos existimos e sofremos!'' do que uma simples alegoria de metáforas vazias. Gonzaga se perguntava do porque da judiação, do porque da morte de seu alazão, diante do Brasil estupefato por "descobrir'' tanto as delícias da industrialização desigual quanto o sofrimento dos nordestinos... hoje, o nordeste continua uma região pobre, concentrando a maior parte dos analfabetos, pobres, miseráveis e mortes violentas do país. 

Mas algo mudou: as pessoas não passam mais fome, tem acesso a um enorme mercado de consumo, estão empregadas e, finalmente, veem o nordeste ser a região que mais cresce no país, que mais concentra investimentos, que mais reduz a desigualdade social! Pernambuco, em especial, deu ao Brasil um presidente que, como Gonzaga, saiu da miséria para entrar na história e comandou essa grande mudança que só está no começo. As secas vão e vem, mas o povo nordestino resiste como o mandacaru e, quando a chuva chega no sertão, floreia em verde efusivo. Gonzaga é a representação do espírito determinado e guerreiro do nordestino que, mesmo diante das maiores secas da vida, é capaz de reter vida em seu interior: são suas condições materiais tão prejudicadas que despertam no homem sertanejo uma criatividade extraordinária, simples e brilhante, bem como uma alegria, uma vontade em superar os infortúnios, que só os pode levar a grandes feitos! 

E qual foi o maior feito de Gonzaga? Mostrar ao Brasil os encantos do nordeste? Talvez o maior feito tenha sido ele mesmo. O fato de ter vencido na vida, em uma sociedade racista, com marcas do estamentismo, repressora, esquizofrência ao ponto de importar sua cultura dos grandes centros do mundo: quando Luiz estourou, muitos brasileiros preferiam ouvir Rock, blues, valsas, modinhas.... Gonzaga foi o capitão de uma rebelião da música nacional e regional contra a mera importação de melodias estrangeiras.

 Felizmente, grandes artistas como Flávio José e Dominguinhos continuam o legado do rei do baião, ameaçado de esquecimento pela hegemonia da péssima música em que se transformou o forró, nada mais que versões paupárrimas do ritmo inaugurado por Gonzaga, meros grunhidos ininteligíveis, as vezes! A saudade de termos artistas como Gonzaga é forte - , mas, seguindo uma das últimas ordens do rei, "saudade, meu remédio é cantar....

Assim, sempre lembro de meu pai quando ouço o grande Gonzaga. Não só de sua persona, mas dos valores e crenças, comuns a todo nordestino, que ele procurou me repassar e que, seguindo vergonhosamente o exemplo vexatório da atual geração de considerar tal cultura rústica e ultrapassada, menosprezei injustificadamente. Porque o próprio Gonzaga era a encarnação dos valores simples do sertanejo: dedicação à família, solidariedade, luta alegre e ao mesmo tempo implacável contra as dificuldades da vida e, também, a fé em Deus, na sua moral, nas tradições que fazem do Nordeste uma região cultural única no planeta. Superar, sim, superar as dificuldades, mas para garantir a preservação de um mínimo-ético, de tradições belas e sinceras: superar para preservar! E, diante de uma sociedade que gradualmente vem assassinando a moral, nada mais temos a fazer que procurar nossas raízes, culturais, que nos fazem ser nordestinos... e  ninguém as representa melhor que o rei do baião. Salve, Luiz, o capitão, mesmo nos braços do Pai, dessa ressurreição do espírito nordestino, da mais bela cultura do mundo! Que venham muitos centenários!

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