sábado, 14 de janeiro de 2017

Filha do banqueiro

Um, dois, três
teu pai conta vinténs
vinhos caros sob vela acesa
ele põe em tua mesa

Como um banqueiro
de avarenta vilaneza
pode ao mundo legar tanta riqueza?
ele, que esconde o ouro do obreiro?

Quem transforma açúcar em dinheiro
como pode te legar tanta doçura?
és alegria para os olhos do cavaleiro
e como ti querem ser todas as moças puras

Filha do banqueiro, flor de cerejeira
teu nome forma tão felizes rimas
olhos profundos, de deusa marinha
como é bom cantar-te à seresteira

não conto vinténs, mas escrevo sonhos
no bolso não tenho ouros
mas um pedaço de mim feito para ti
um cofre aberto, pronto para entregar-te

bela flor, nada pode comprar-te
terá a fortuna a mim te destinado?



quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

O alfabeto da sorte

Escrevi o alfabeto
do A ao Z, completo
mas só vi tuas letras
como teus olhos, eram negras

Sibilas um D de dado
e jogo os meus ao destino
numa aposta empenho meu fardo
será para ti algo pequeno?

Quis mudar meu nome
e de rosto, e de vida, por que o que me consome
é saber que minhas letras não estão nas tuas

perco a razão, afundo sem lógica
pois minha letra está tão distante da tua
parecem separadas por mágica

minha sorte não abraça-te
e as estradas das mãos de você me apartam
como a estrela que se perde no horizonte
eu vou-me, levando tuas letras no coração

para com elas me aquecer,
enquanto durar essa eterna separação.

O acidente

Ela rima
como um sonho
onde um recém-nascido
com belo nome se chama

negros como a noite brilham
filetes faiscantes oscilam
curvas suaves desenhadas
luzes que dançam animadas

o que eu poderia oferecer?
comigo só há o perecer
fantasias loucas do que jamais será
mas, é inegável, com você meu mundo flutuará

cai em mil pedaços no teu colo
e sentes como mera poeria
um percalço, um acidente
num lampejo, me esquecerás, mas estarei contigo eternamente.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Contos privados do Governador de Pernambuco - Parte 2



Antes do almoço marcado com empresários italianos, marcado em um restaurante de luxo em Boa Viagem e fechado para a ocasião, o governador estranhou que ninguém tenha lhe repassado nada sobre a sessão na Assembleia Legislativa. O que tinha sido agora, caramba?

Enquanto o carro oficial cortava devagar o Pina em um trânsito infernal e o calor lá fora deixava as gotas de suor incomodamente visíveis no rosto dos transeuntes, o governador ligou para o chefe da base no legislativo. Fora de área. Tentou o número do presidente da Casa, que chamou até cair na Caixa Postal. Nesse momento, pediu para o motorista ligar o rádio. Havia aprendido que o cheiro da merda chegava mais rápido quando a mídia ventilava; se dependesse dos seus aliados, jamais saberia quando algo desse errado.

Dessa vez, esperou longos minutos, até que o celular tocou. Era Murilo.

- Diz – atendeu o governador.

- O senhor já ficou sabendo?

“Aí, meu saco. Sabendo do que?’’

- Não. Deu bronca lá na votação?

- Bronca, bronca... não, pior. Nós perdemos e resolveram sustar os decretos de ontem e aqueles que assinamos no mês passado. Teve louco que até falou em cassação.

Resolveram o que? Como assim? O que cacete mais aquele pessoal queria pra deixar ele tocar essa bosta desse Estado em paz?


-Tá. Eu vou resolver isso. – e desligou. O almoço de hoje corria sério risco de ter o mesmo destino do último.

***

Dessa vez a soneca da tarde não foi honrada. Depois de um almoço a base de muita massa italiana, bolonhesa e vinho safra 1982, o governador despachara os empresários para correr rumo ao palácio do vice-governador, onde havia se instalado devido à interdição do Palácio do governo. Lá lhe esperavam os membros do diretório do partido, alguns deputados e o senador Guerra, um homem alto, viperino e magricela, que fora convocado às pressas para uma reunião de emergência. Evandro expôs, sucintamente, os eventos do dia.

- Muito bem – disse o chefe – Já sei o que aconteceu publicamente, quero saber que merda deu nos bastidores. Não tava tudo acertado?

- Bem – começou Diógenes Ribeiro, vice-líder do governo na Assembleia – foi esse o nosso pensamento. Tudo devia ser meio protocolar né? Só pra inglês ver. Mas aí o presidente leu aquele relatório da consultoria jurídica da Casa. Ele disse que abrir mais crédito e depois mudar a meta fiscal seria má-fé. Eu fui até falar com ele, ele disse que lei era lei. Aí fiquei perdido, por que tava lá sozinho pra coordenar a bancada.

- Espera – comentou Murilo – como assim sozinho? E o Marcos?

- Ah, ele não apareceu – comentou Teodomiro, o falante ex-radialista e deputado da zona da Mata. – Quando os deputados começaram a derrubar o projeto, eu pensei que era tipo ondinha só pra mostrar pra imprensa, mas falei com cada líder que achei e eles disseram que a orientação que tinham recebido das executivas eram essas. Muitos disseram que depois queriam falar com o senhor pessoalmente sobre umas verbas não liberadas aí.

O governador bem que queria meter um soco na mesa. Como assim nem sequer o líder do governo foi pra votação? E ainda mais pra uma merda daquela, que eles já tinham feito tantas vezes naquele governo?

- Olha – disse o governador – eu quero que alguém ache o Marcos. E o presidente da Assembleia. Já to com a relação de quem votou contra e também quero falar de um por um pra gente ver o que aconteceu. Esse pessoal quer o que, que eu dê meu anel pra eles?

Nesse momento, o chefe de gabinete pediu a palavra. Pondo o celular no mais alto volume, tentou exibir para os presentes um vídeo, onde o presidente da Assembleia era entrevistado ao sair da sessão que eles comentavam.

Com as grossas sobrancelhas arqueadas e voz empastada, falando como se proclamasse aos fiéis um novo mandamento recém-descoberto, brandia os braços e e se esticava, numa dança macabra que o governador logo batizou de "a incorporação''. 

- Sim, nós não podíamos fazer isso com o povo. Lei é lei, não dá pra burlar de novo. A gente viu que por desídia e por gastar demais onde não devia o governador teve que rasgar a lei de novo pra evitar que a capital caísse no caos. Assim, pra evitar um caos pior do que o que houve, né? A gente vai estar encaminhando essa situação para o Tribunal de Contas e o Ministério Público.

O presidente continuou, fazendo uma longa alegoria sobre a queda do rei Saul, que se deixou cativar por necromantes, e a ascensão do justo Davi. 

Agora sim, o soco na mesa tão contido foi desferido com violência.

- E cadê o Marcos nessa história toda? – perguntou o secretário de desenvolvimento econômico, Pedro, um homem tão inteligente para economia quanto indiscutivelmente leniente com as constantes viagens da esposa. O governador bem o sabia.

- Eu não sei onde ele está, mas sei onde ele não vai estar mais – sentenciou o governador.

***

Foram mais alguns dias de tensões crescentes com o presidente da Assembleia. Este subira o tom e passara a apontar o que, na sua opinião, vinha sendo uma gestão ruinosa e negligente com os servidores públicos, daí a necessidade de por em pauta seguidos aumentos salariais. Ora, só o cidadão perde com um servidor público que ganha mal. Os primeiros contemplados foram os juízes e desembargadores; depois, membros do Tribunal de contas. Por último, foi aprovado o aumento salarial para os policiais militares, mesmo com todo o esforço do governo para conter a manobra. O governador, o mestre da segurança pública, agora era inimigo público número um do setor.

O chefe do Executivo falara por diversas vezes com o presidente. Prometeu, regateou, ameaçou, baixou o tom, ofereceu: tudo o que era permitido e não permitido em política foi posto na mesa. Numa dessas vezes, sentou-se ao lado do presidente e amargou quatro horas de culto na igreja central da capital, onde a conversa se desenrolou em meio a cochichos entrecortados e sinais de mão. O governante máximo do Estado até fez uma das leituras do dia, quando o pastor presidente, em sua pregação, falou da morte do rei Acab e da rainha Jezabel, devorada pelos cães do campo por causa da idolatria; os olhares recaíam com constância sobre o banco onde o governador se situava. Mas nada parecia ser suficiente. Havia algo que o presidente queria, e queria muito, mas que o governador não podia dar. Ele só não sabia o que era.

O governo também ficara menor. Secretário um, dois e três pediram demissão de seus cargos, reassumindo seus mandatos na Câmara federal e na Assembleia, engrossando a oposição. Nem forças para visitar o apartamento perfumado o governador tinha mais.

Nesse tempo todo, Marcos, o ainda líder da base do governo, permanecera sumido. Pelo que se sabia, ainda estava vivo (não que fizesse diferença), mas recusava qualquer tipo de contato direto com o governador ou seus aliados. Poucas semanas mais tarde, quando os agentes de endemias ganhavam seu primeiro aumento salarial em três anos e Brasília já começava a olhar com preocupação para as finanças do Estado, os jornais amanheceram com uma manchete bombástica.

“Líder do governo é preso na operação gol contra’’.

O governador leu novamente para certificar-se de que aquilo não era uma piada. Gol contra em quem?

***

Quem esperou pratos voando, ataques de ódio e telefonemas ensandecidos por parte do governador diante da bombástica notícia se enganou. Trancado em seu quarto, ao som de Bob Dylan, o homem mais poderoso do Estado desligou seu celular e abriu uma caixinha com um fundo falso. De lá, retirou um saquinho com um pó suspeito.


Foram apenas alguns minutos para que até o colchão de penas de ganso onde se deitara ficasse distante. Cada acorde, cada palavra, cada letra daquela voz que embalara sua juventude demorava uma eternidade para ser executado; suas veias eram percorridas por algo levemente ardente, ao invés de sangue. Seus pensamentos mergulharam em um poço cujo fundo era o espaço sideral, cujas luzes dos bilhões de estrelas saudaram para o viajante espacial como velhas amigas que reencontram alguém que estivera longe por muito tempo.

Quando Dylan deu lugar a Bowie, as estrelas começaram a se distorcer como se o governador entrasse na velocidade da luz; um tremor percorreu seu corpo, revelando o júbilo de sentir como se mil mãos e dedos voluptuosos tocassem todos os pontos do seu corpo.

Até mesmo tambores africanos começaram a retumbar, levando o viajante à uma estranha mistura entre céu e terra. À medida em que ficavam mais fortes, um estranho estrondo, como se fosse um trovão, fez as estrelas caírem do céu para o quarto, onde suas luzes iam se apagando enquanto uma silhueta feminina encarava, da porta, o homem deitado na cama, envolto em uma leve fumaça.

A voz dela parecia distante, mas quando as últimas estrelas se dissolveram, foi ficando cada vez mais aguda, irritante, como se gritasse contra ele. O governador apenas a contemplava, enquanto ela se retirava e o deixava novamente só. Já preparava outra carreira, quando o que pareceu ser uma onda do mar o atingiu, trazendo abruptamente seus sentidos de volta à realidade.

Olhando perturbado ao redor, o homem finalmente tinha um vislumbre do que aconteceu. A porta do seu quarto pendia arrombada, enquanto a mulher segurava um balde e não cessavam seus gritos. Os tapas e unhadas vieram em seguida, com o governador conseguindo correr e se refugiar no banheiro. Suas faces pegavam fogo, não conseguia focar o olhar em nada por muito tempo, um martelo esmagava sua cabeça toda vez que ouvia novos gritos e não conseguia imaginar que tipo de homem aguentaria aquilo por tanto tempo.

Por que aquela era a sua mulher. Era, eis o verbo mais representativo da realidade! Nos últimos dias, fora deixado completamente só no enfrentamento de tantas crises. Mal se lembrara que era casado, já que a aliança no anelar esquerdo já parecia fazer parte do dedo.

Na última eleição, quando o governador lançou sua candidatura com o apoio de seu bem-feitor e então governador, já viva separado, de fato, da esposa. Nunca haviam sido “felizes’’ depois da famosa crise dos sete anos, que, depois de outro septênio, levara cada um para o seu lado. Mas, por exigência do marketing político, convenceu a quase ex-esposa a aceitar fazer o papel de mulher dedicada e mãe de família que era praticamente um requisito para compor a imagem de qualquer um que se dispusesse a tentar governar o tradicional Estado de Pernambuco.

No começo ela resistiu. Mas a pressão dos familiares e até dos colegas de trabalho a fizeram tomar gosto por todo o glamour que cerca o “cargo’’ de primeira-dama. Logo, até mesmo o governador achara que realmente haviam reatado; mesmo na vida privada, a esposa parecia ser tão esposa quanto antes da fatídica crise dos sete anos. Seu bem-feitor, quando ciente dessa reaproximação, lançou mais um de seus sábios conselhos para o pupilo:

- Nada é mais real que um teatro que engana os próprios atores.

Mas, "quer saber?'' pensou o então candidato: até mesmo havia conseguido voltar a passar as noites com ela. Mesmo com o cansaço da campanha, os inúmeros momentos de tensão e a rotina corrida, os deveres do casamento voltaram a ter algum toque de satisfação. Ah, e quando sagrou-se vitorioso? Foram dias seguidos de prazer. Até pensou que essa história de “recaída’’ era realmente verdade.

Feliz, chegou a comentar com seu bem-feitor o sucesso na retomada do casamento. Preocupado, seu bom mestre fez um alerta lúcido.

- Quando se desmonta o palco, os atores que faziam o papel de apaixonados rapidamente se cansam um do outro.

A profecia se mostrou verdade. Foram apenas alguns meses para que, como um par romântico de qualquer filme hollywoodiano que estendera o romance fictício para a vida real, o escândalo viesse a abalar o casamento do governador.

Fora na semana santa, quando o primeiro homem do Estado viajou com a família para Fernando de Noronha, onde tradicionalmente os governadores passam datas festivas em uma base naval, com tudo do “bom e do melhor’’. Como era de praxe, levou junto alguns amigos próximos e suas famílias, de modo que a pequena base à beira-mar, numa das paisagens mais belas do mundo, estivesse atulhada de gente, que acordavam ao som do tecnoforró para secar os litros de whisky e cerveja importada bancados pelo nobre anfitrião.

Numa dessas bebedeiras, o pai de sua esposa, um nobre usineiro com o sobrenome também nobre, desmaiou na porta do banheiro e deu azo a um enorme esforço de quatro homens para carregá-lo a um dos quartos. Preocupada com seu genitor, a primeira-dama resolvera passar o dia ao seu lado, principalmente quando o velho passara a ter febres e enjoos, como se estivesse adoentado. Pelo menos sobrou mais whisky. 

Quando voltou à praia, o governador viu seu filho adolescente dançando com uma das moças – a filha de algum primo, talvez? Não lembrava bem dela – ao som de uma música que narrava a história um rapaz que aproveitava a ida da namorada ao banheiro para dar uma fugidinha. Aquele moleque não se dava bem com o pai. Era meio rebelde, vivia curtindo e compartilhando as postagens da oposição nas redes sociais e já havia sido pego com drogas duas vezes pelo diretor do colégio onde estudava que, discreto, informou tais fatos ao pai furioso e abafou comentários sobre o comportamento delinquente do rapaz. Depois da surra que lhe dera nesse dia, ele nunca mais lhe dirigira a palavra.

Quando a música acabou, o rapaz, visivelmente embriagado, tentou enlaçar a moça para lhe dar um beijo, pelo que ela se desenrolou e se afastou, com uma expressão de desagrado. Em uma das mesas, Isaac, amigo do governador desde o colégio, lançou uma piadinha sobre “tal pai, tal filho’’. Sentado ao seu lado e abrindo uma cerveja, o anfitrião perguntou, casualmente, quem era a menina que tivera tanta atitude contra alguém que, notoriamente, se valia da sua condição de “primeiro filho’’ para ter a mulher que quisesse.

- É a filha do Valadares  - disse Isaac – Lembra que eu te disse que ele não vinha, mas mandou os filhos? Pois bem. A filha é desse jeito, né? Uma paisagem. Agora o filho é que não fazia falta – comentou, gargalhando, enquanto outro amigo, Pedro Peteca, imitava uma voz fina, para indicar que o filho do amigo era homossexual .

O governador não tirava os olhos da moça, que se sentara com outras garotas, inclusive com a sua filha, para potocar sobre a investida falhada do primeiro filho. Por um ou dois momentos, os olhares se encontraram, e o homem mais poderoso do Estado percebeu que o motivo da rejeição de seu filho pela moça não fora por princípios, mas por uma questão de grau. Ela queria alguém “maior’’. A fêmea da selva queria o macho chefe do grupo, não os desmamados. 

A intensidade dos olhares da garota surpreendeu-o. Tudo bem que flertar com mulheres maduras – e até ir além – lhe era comum, mas com uma mocinha que tinha idade para ser sua filha? Parecia ser efeito da carência em demasia. Fazia um mês que o primeiro órgão do Estado não entrava em ação. 

Peteca captou o pensamento do amigo e segredou-lhe:

- Velho, mas ainda rápido e mortal no ataque.

Gargalhando, os amigos rememoraram as velhas histórias de faculdade. Mas nenhuma delas foi capaz de distrair os olhos do governador daquele belo corpo que, com o olhar, se oferecia para ele.

Mais tarde, quando o sol baixava e os convidados se retiravam, o anfitrião pediu licença aos amigos e foi caminhar na praia, sozinho, como era de seu costume. Era o seu momento de privacidade, que sabia que, quando voltasse à rotina, não teria até mesmo nos próximos feriados. O vermelho do pôr do sol tingia aquelas águas antes azul turquesa, enquanto a brisa soprava trazendo um delicioso cheiro de sal do mar e os pássaros deitavam voo ao poente. Paisagem perfeita, governo perfeito... só faltava, de perfeito, uma coisa.

Olhando para baixo e sentido a água banhar-lhe os pés, o governador perdera atenção do que estava ao seu redor, para se dar conta de que não estava mais sozinho naquela caminhada. Surpreso, mas alertado por algum instinto masculino de quem deveria ser sua companhia, se virou para contemplar a filha do Valadares.

- Tem o hábito de caminhar na praia também? – perguntou, olhando nos olhos da garota e neles divisando uma chama animal. Era o fogo de fêmea exalando sexualidade, maluca não por palavras e rodeios, mas por ação. Era o olhar capaz de deixar as tropas do governador prontas para o assalto instantaneamente.

A garota pareceu perceber que encontrou o que estava procurando, pois seu olhar se deitou entre as pernas do homem e lá ficou, voraz.

Sem rodeios, o homem experiente resolveu lhe ensinar uma bela lição. Ela devia respeitar os mais velhos.

Quando voltou à base, por outro caminho, o governador sentia suas pernas tremerem. Mal conseguia andar, enquanto ainda lembrava das loucuras que fizera nas areias daquela praia, se sentido como se tivesse vinte anos novamente – e mais cabelo.

Os dias foram se seguindo, até que, na volta para casa em um jatinho do governo estadual, o governador percebeu sua esposa estranhamente distante. Tinha ficado cuidando do pai todo aquele extenso feriado, talvez estivesse cansada.

Sossegado com aquela justificativa que encontrou para aquela estranheza, ajeitou uma almofada debaixo da cabeça e dormiu toda a viagem, até finalmente estar instalado em sua cama e dormir o sono dos lascivos.

No outro dia, recebera um arquivo de Isaac pelo celular. Parecia ser um vídeo de alguém numa praia, não se interessou por ver na hora. Só depois que chegou em casa naquela noite que percebeu que alguma coisa estava errada.
Como morava em um duplex, o governador notou que a parte de cima fora selada com uma porta nova, na qual ele não tinha a chave. Entrando no quarto dos filhos, encontrou-os vazios, como se tivesse havido uma mudança. Em seu próprio quarto, os pertences da mulher haviam sumido. E agora, que porra havia acontecido?

A empregada não quis falar. Apesar dos gritos e ameaças, a pobre mulher, que já trabalhava para a família do governador desde que este era apenas um adolescente, ficou calada, deixando cair as lágrimas em silêncio. Aquela cena fez o patrão sentir culpa. Coitada, a velha o havia criado feito se fosse um filho, lhe doara desde a juventude até a idade madura, e fazia o mesmo pelos seus filhos. Não vendo outra alternativa, tomou o elevador e foi bater a porta do andar de cima.

Pela sombra que se fez abaixo da porta, alguém olhou pelo olho mágico e o ignorou. Aquilo o deixou furioso, a esmurrar ainda mais a porta, quando finalmente seu filho abriu-lhe.

- O que houve? Que merda vocês fizeram?

- Só você fez merda aqui. Não vem mais aqui.

O estômago do governador, que já tinha seus problemas desde a juventude, voltou a ser castigado por uma tempestade de gelo e fogo.

- Deixa eu falar com sua mãe.

O rapaz tentou fechar a porta, mas o pai foi mais rápido e o empurrou com porta e tudo. Marchou para onde sabia ser o quarto principal e lá encontrou a mulher, com olhos vermelhos injetados e os cabelos desarrumados. Nas suas mãos, uma tesoura cortava as fotos dos dois, e uma pequena bacia com álcool em chamas era abastecida pelas tiras onde o governador estava representado. Sua filha ajudava a mãe nessa horrível tarefa.

O olhar de tristeza da esposa e a raiva dos filhos explicavam muito bem a situação. Não eram necessárias palavras para que o governador soubesse qual era a razão do fim do casamento e da sua própria família. Eram aqueles olhos de fêmea no cio na praia de Fernando de Noronha.

***

Acostumado aos acordos políticos, não foi difícil convencer a mulher a fazer parte de um teatrinho. Até o fim do mandato e a próxima reeleição, ficou acordado que ela continuaria a residir na parte de cima do duplex, mas separada de corpos do marido, e com sua própria vida privada. Como era caseira, imaginou o governador que a chance dela arranjar um amante eram remotas.

O problema mesmo eram os filhos. O rapaz o odiava, a moça o achava um traíra. Nem mesmo a intercessão de Paulo André, irmão da esposa e tio das crianças, de quem era muito próximo, mudou a situação.

- Tem calma, rapaz. As coisas se ajeitam - tentava consolar Paulo, que havia vindo tomar uma dose de whisky com o cunhado.

- Eu já te mostrei o vídeo? – perguntou, sem jeito, o governador.

O conteúdo da filmagem era desfocado e desfigurado, mas era possível reconhecer o governador pela cor da camisa que usava no dia, embora seu rosto não fosse mostrado. Paulo André mordeu os lábios enquanto contemplava o corpo a moça.

- Cara, qual o teu segredo? – perguntou o cunhado, gargalhando alto – A gente tem que marcar uma viagem só da gente e essas novinhas.

Maquinalmente, o governador seguira a lógica de seu bem-feitor. Certa vez, quando este ainda era governador, vazou para a imprensa um pré-projeto de lei que autorizava a privatização da empresa de abastecimento de água do Estado, que vinha enfrentando déficits crescentes. Ainda secretário, o atual governador aconselhava a desistência do projeto, ao que o bem-feitor soltou outra de suas tiradas:

- Se o negócio já está sujo, ninguém vai reparar se sujar um pouco mais.

E foi assim que não só a companhia de abastecimento, mas a de eletricidade e a companhia de apoio ao agricultor foram devidamente privatizadas, enchendo de dinheiro os cofres do governo e bancando, assim, a eleição do então secretário para governador.

Ninguém ia reparar se ele se sujasse um pouco mais.

Conseguir o telefone da moça foi muito fácil. O governador devia esse favor ao Peteca, cuja filha era amiga da “prometida’’. Daí em diante, o grande homem do Estado passou a usar o que tinha de melhor: a capacidade de prometer. Foi assim que a garota, no início relutante, cedeu a todos os seus desejos. Até mesmo um discreto apartamento foi alugado pelo seu chefe de gabinete para servir de palco aos encontros, cada vez mais quentes.

A vida dupla do governador era o motivo daquela atitude tão agressiva de sua esposa ao acordá-lo com um balde cheio de água e uma porta arrombada. Mas o que a levara ali não fora a infidelidade do marido, mas a de seus aliados.

***

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Recaída

Recaí.
Mas por que voltar?
mortos não podem ressuscitar
quanto mais a nós perturbar

Mas antes um túmulo fosse tua morada
antes só mais uma lápide semienterrada
coberta pelo pó carregado pelo vento
qual é teu intento?

Alma penada de assuntos pendentes
não ouse retomar brasas dantes exauridas
não farás de mim um carente

Misto de raiva e dor indiferenciadas
ciúme e remorso pelo que não foi
Recaí? Evoluí
A ti as águas do esquecimento profundas

E, agora, nem mais uma palavra
nem mais um segundo nesta lavra
descanse em paz,
recaia tu no jazigo das coisas inexistentes.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Diários de um (ex-)estudante de direito: a adaptação


Dando continuidade ao nosso pequeno diário (a falta de um nome melhor) sobre a vida, as opções e as angústias de um estudante de direito (bem, vamos desconsiderar aquela polêmica sobre "direito com D'' e "direito com d'', ok?), vamos falar sobre o que acontece depois que as o primeiro período acaba e mergulhamos, segundo vamos pensar, no mar tranquilo das férias...

Bem, nós estudantes de direito temos uma péssima concepção sobre as férias. Para nós, são um convite a não fazer nada e quebrar totalmente o ritmo de estudos a que nos acostumamos. Isso acontece por que, como nós deixamos toda a matéria acumulada para estudar "de véspera'', acabamos nos submetendo a um ritmo de estudos insuportável e desgastante, como um atleta destreinado que tem apenas uma semana (ou menos!) para se preparar para uma Olimpíada.

Então a primeira dica é: tenha férias produtivas. Não aguenta mais estudar? Pare por uma semana, mas pegue bons livros para ler. Você já deve ter escutado que muita gente indica ler, antes de iniciar o curso, clássicos da literatura que tem "a ver'' com Direito; bem, é hora de finalmente lê-los! Se delicie com "O processo'', "O Caso dos exploradores de cavernas'', "Crime e castigo'' e tantos outros. Não esqueça, também, uma regra primordial: faça, na maior parte do seu tempo, atividades produtivas. Sim, evite passar horas na internet, redes sociais ou catando besteiras por aí; se exercite, leia, se informe, estude, faça questões, tenha experiências que te agreguem em algo e não façam escoar o seu tempo precioso pelo ralo.


Mais uma das polêmicas classificações ou divisões do direito!

Mas, enfim, as aulas sempre voltam, e de imediato, ao entrar no segundo período e próximos, você nota que o jogo mudou. As cadeiras filosóficas vão escasseando até sumir de vez, e cada vez mais normas, leis, princípios e códigos vão fazendo parte da sua vida. Essa transição é apreciada por muitos, que finalmente vão estudar "coisas mais práticas'' em um curso que consideravam "muito abstrato''. Contudo, essas cadeiras jurídicas iniciais continuam com um pé em conteúdos "mais abstratos'', como os conceitos jurídicos básicos de cada ramo do direito, que, basicamente, podem se resumir em um "tripé'': o ramo jurídico do direito privado, onde lidamos com a personalidade civil, o conceito de obrigações, contratos, direitos reais e de sucessões, bem como a dinâmica empresarial; o ramo do direito público, com as concepções de constituição, poder constituinte, direitos fundamentais, direitos políticos e sociais, organização do Estado, Administração Pública e direito tributário, além do direito penal e do trabalho (há controvérsias sobre se direito trabalhista é de natureza pública ou não...) e, finalmente, o ramo processual, que se subdivide em processo civil e processo penal, além de ramificações como processo do trabalho.

É muita coisa, não é? Por isso que cada ramo desses e seus sub-ramos são divididos em cadeiras numeradas. Assim, possivelmente você terá que pagar de sete a oito cadeiras de Direito Civil, quatro de Direito Constitucional, cinco de empresarial e assim por diante!

Dito isto, vamos dar uma quebra na ordem cronológica e lançar pequenas notas explicativas:


Apesar do que dizem, evite "decorar''!


Ah, com certeza já te disseram que depois do segundo período, o curso se resume a "decorar'' leis e códigos. E se você acha um saco essa onda de decorar, parabéns! Por que um bom estudante de direito NUNCA vai se limitar a decorar qualquer "dispositivo legal''. Quem decora raramente é capaz de aplicar, e, diga-se de passagem, sua função, quando sair da Faculdade, será aplicar regrinhas que estão lá para qualquer um ler, mas que poucos conseguem interpretar, adaptar e aplicar a casos concretos complexos.

Então nunca se esqueça: tente ENTENDER e não DECORAR. Sabe, um dos primeiros conceitos que você vai aprender é o de personalidade jurídica, quando estiver iniciando os estudos em Direito Civil. Você pode se limitar ao que diz o art. 2º (ou será o 1º?) do Código Civil sobre a personalidade, ou então estudar os conceitos de Pontes de Miranda, as teorias natalistas e conceptistas e entender o que é, como começa e o que faz cessar a personalidade jurídica, e principalmente os efeitos disso tudo. Assim, se o código mudar (e nesse ano o código de processo civil de 1973 morreu e um novo veio à luz...) você vai ter os conceitos básicos bem delineados na cachola - e esse conhecimento, se bem fixado por um estudo responsável e organizado, vai te acompanhar pelo resto da vida. Na verdade, se você estudar mal esses conceitos iniciais, terá imensas dificuldades lá na frente...

É só assim que decorar funciona...

Não decore, mas não deixe de ler códigos e leis

Sim, o fato de não ter que decorar não te exime de ter que ler a legislação. Um dos grandes males do estudante de direito é que ele simplesmente não lê os diplomas legais que deve. Está estudando direitos fundamentais? Estude as gerações de direitos, a diferença entre direitos e garantias, os remédios constitucionais... e LEIA o art. 5º da Constituição Federal! Sabe, você não precisa decorar o que cada inciso ou parágrafo da lei diz, mas ao menos "saber onde está'' o dispositivo para o caso de precisar dele.

Um livro ruim vale por menos dois

Eis um tema espinhoso. Escolher um autor para estudar é algo muito pessoal; é como escolher um perfume ou um prato no restaurante. Mas convenhamos, ninguém quer comer aquele pastel da barraquinha na esquina da Faculdade, com aparência de ser mais antigo que a última vez que você fez uma compra maior que R$ 100... então existem livros e autores que você pode liminarmente descartar da sua lista de estudos!

Sim, um autor ruim não é aquele que tem linguagem difícil/confusa/ininteligível. É aquele que até pode parecer descolado e super fácil de entender, mas cuja leitura rasa e pouco complexa vai te fazer esquecer rapidamente o que supostamente aprendeu. São os tipos de livros chamados de "esquematizados'' ou "descomplicados'' que podem te dar uma ajuda e tanto em vésperas de provas - principalmente se você estuda para concursos - mas não fixam um conhecimento com raízes em você. "Personalidade jurídica'', assim, é uma "aptidão'' para exercer "direitos e deveres'', e só. Mas como assim, produção? O que raios é "aptidão''? O que é um "direito''? E se eu só tiver deveres (supostamente), tenho personalidade também?

Escolha bem suas fontes de estudo. Eu recomendo que você sempre ande em duas frentes: pegue um livro de um autor clássico e de um novo autor. Por exemplo, em Direito civil, pegue Caio Mário ou Orlando Gomes e algum autor da nova geração (como Carlos Roberto Gonçalves - mas os livros pra valer, não o esquematizado!). Mas não se prenda. Experimente sempre novos autores, e se achar que um autor bom em um assunto (como Caio Mário em "Obrigações'') é ruim em outro tema (Sílvio Venosa, em direitos personalidade, obrigações e algumas cositas más...), não tenha medo de fazer uma substituição.


Sim, mas e as aulas?

Anote o que vou lhe dizer: pelo menos a metade (talvez mais!) das aulas que você assistirá na faculdade serão pouco produtivas. Tudo bem, sempre é bom sentar na frente e prestar atenção no que o professor diz, mas a cada dia esse exercício vai ficando mais hercúleo. É quase uma tortura sentar em uma cadeira por quatro horas, as vezes mais, enquanto os professores se revesam em passar slides monocromáticos com trechos de código copiados, recitados quase como se estivéssemos em um culto religioso. É, você deve ter percebido que esse tipo de aula te agrega muito pouco em conhecimento.

Bem, esse tipo de coisa acontece por que, nos mestrados e doutorados de direito, simplesmente não se tem qualquer noção de pedagogia ou prática pedagógica, que muitas vezes se resume a uma ou duas aulas sob supervisão do professor orientador - sempre se seguindo a lógica "slideira''. Assim, os professores formados vão para as salas de aula sem saber como dar aula - e acabam reproduzindo as aulas que assistiram na faculdade. Aulas que vão te fazer sentir perder tempo com elas!

Esse tipo de professor - "mas ele só sabe ler o código!'' - é o tipo dominante. Então, como lidar? Só tem um jeito de tentar tornar esse tipo de aula produtivo: é estudando sozinho(a). Pegue o conteúdo da cadeira, pesquise bons livros e mãos à obra. Claro, uma conversa de fim de aula com o professor (perguntando indicações de livros, esclarecendo dúvidas etc.) também pode ajudar e, se tem uma coisa que você precisa aprender desde já, é que nenhum professor é tão ruim que não tenha nada a te ensinar. Se mostre sempre interessado e, principalmente, tenha respeito com o professor dentro da sala de aula, não saindo quando ele entra e só voltando para a chamada, ou conversando durante a aula, ou navegando na internet. Se você acha a aula do professor um saco, faça o que está ali para fazer - abra um livro e estude!


Não arranje encrenca - a vaidade é o ponto G dos acadêmicos do direito!


Não, não é a parte sexológica desse artigo (mas ela virá, aguardem!). Sabe, você pode estudar, estudar e estudar e vai que você tem sorte e se torna um Einstein (ou um Kelsen, ou um Pontes de Miranda...) do direito. Você acha que as portas vão se abrir e você vai ficar famoso? Claro que não!

Não adianta ser um gênio ou um cara esforçado se você não tem bons contatos, nem os cultiva enquanto ainda está na faculdade. Portanto, evite brigas, estresses e problemas, principalmente com os professores. Isso não quer dizer que não se deva combater injustiças (sabe, o fato do direito não ser uma ciência "exata - e quem disse que é uma ciência? - traz muitos problemas na hora de corrigir as provas...), mas sempre tente a via diplomática, visando à conciliação e o acordo - que, por sinal, é a tendência do futuro do direito. Respeite docentes e colegas, se abstenha de piadinhas e de qualquer forma de desrespeito. Rolou algum estresse? Conversando a gente se entende.

Por isso que, toda vez que você discute com algum(a) professor(a) - principalmente sobre "notas''- cuidado para não atingir a vaidade dele(a). Apesar de parecer muito calculista, a máxima "cuidado como você trata as pessoas hoje, por que pode precisar delas no futuro'' é uma infeliz verdade no direito: um dia, quando você for advogado, vai desejar que seu professor juiz te receba com festa na vara para despachar aquele processo que você precisa tanto, do que mandar dizer ao servidor pra te barrar a entrada dizendo que "o juiz não se encontra''!

Tudo tem limites, no entanto. Se a injustiça que você ou alguém sofreu é do tipo irremediável, ou o professor se mostra irredutível, não tenha medo em ir até o fim para sanar o erro. Lembre que seu dever como estudante e futuro profissional é defender ou aplicar direitos, e a omissão não pode ser confundida com diplomacia!

Entendi... mas é só isso? E as festas? 

Direito tem fama de ser o curso que mais reúne gente baladeira por metro quadrado do ensino superior brasileiro. E não é pra menos. Todo mês advogados, juízes e promotores inventam solenidades regadas a muito whisky, "coff break'' ou, nos eventos mais simplórios, à velha dupla dinâmica bolacha cream cracker/cafezinho. Na faculdade, a raiz de tantas confraternizações futuras serão as calouradas, noitadas, carnavais, festas de prédio - ou tudo isso misturado.

Toda essa badalação tem razão de ser. Direito é um curso social, ora pois! E o homem é um animal social. Precisa estar entre seus semelhantes para que seu destino flua, e no direito isso atinge o ponto máximo. São nessas festas que os futuros sócios formam os vínculos que sustentarão uma exitosa parceria profissional, onde casais se conhecem, onde se joga conversa a fora, onde se conhece pessoas de uma maneira mais impessoal.

O fato dessas festas serem legais pra se conhecer gente nova e fortalecer futuros contatos profissionais não as tornam, contudo, indispensáveis. Você pode muito bem fazer tudo isso na calma do seu lar ou na tranquilidade da sala de aula - conversas no espaço entre uma aula e outra relaxam e fazem as vezes de point pra você que não gosta de sair.
Mas, convenhamos... se você é jovem, tente aproveitar esse aspecto da faculdade. Você pode ter sucesso e tal lá na frente sacrificando tudo isso, mas em algum momento vai sentir falta de nunca ter feito nada disso. Sério, não mata ninguém (pelo contrário). Saia, se divirta, seja jovem!

Eu sou acostumado com notaço no meu boletim. Se tirar nota baixa, o que faço?

Lembra quando eu falei de vaidade? Muita gente, em Direito, acredita que notas altas são como carícias sensuais. Outras pensam que as provas e seus resultados são como competições esportivas, onde se selecionam "os melhores''. De outra banda, há um fenômeno preocupante, entre os futuros juristas, de surtos de depressão e melancolia justamente por causa das notas - eu diria que até mesmo uma "epidemia'', causada tanto pela cobrança dos próprios estudantes sobre si mesmos, a intensa competição que marca os profissionais do direito e o sentimento de baixa auto-estima logicamente subproduto de um curso onde se cultua, acima de tudo, a vaidade. 

Então, aqui vai um alerta: poucas vezes, no futuro, as pessoas vão sequer lembrar das suas notas, ou elas serão necessárias para alguma coisa. Além de algumas oportunidades de intercâmbio, uns poucos cursos de mestrado (para quem as notas são apenas quesitos classificatórios, diga-se) e algumas vagas de monitoria, ninguém, além de você mesmo, vai te cobrar boas notas. Na verdade, como os métodos avaliativos em direito são absolutamente falhos (geralmente, questões fechadas copiadas de concurso, questões abertas inventadas de última hora ou curiosos sincretismos que confundem até mesmo o professor) ter notas altas ou baixas é quase irrelevante e muito pouco útil para mensurar a sua capacidade.

Então, pode doer, mas lá vai: notas altas ou baixas vão dizer muito pouco sobre seu aprendizado. Dedique-se em um esforço maior nos primeiros períodos do curso, e, depois do quarto ou quinto período, vai ser relativamente fácil "manjar'' das técnicas para aprender assuntos em pouco tempo e fazer provas com tranquilidade. Portanto, não se inquiete: você vai pegar a manha das provas na prática. Dê mais valor ao estudo do que a prova em si, mas consulta às provas anteriores, resuminhos camaradas e gravar a aula do professor para revisão posterior bem que ajudam.

Sobre "fila'': cuidado. Conheço colegas que levaram a faculdade assim, do início ao fim, e hoje precisam estudar o que deviam ter estudado em cinco anos em um. E não é brincadeira! Tente jamais ser o receptador da fila (se você for o cara ou a garota que resolve tudo para depois passar as respostas, o questionamento é mais ético mesmo). Faça sua prova e encare a nota que vier, já que o importante é o aprendizado. As vezes uma nota baixa nos ensina e gera mais benefício do que o mais cristalino "10''!

Trabalhando em grupo: como sobreviver

É muito comum que seus professores, com preguiça ou visando "dinamizar'' a aula, façam uma prova e complementem com um trabalhinho, geralmente individual (favor, evitar copiar e colar da internet! Hoje existem aplicativos que indicam facilmente o plágio, e sua nota pode zerar facilmente...) mas também em grupo. E aí começa a bronca, por que os trabalhos de faculdade não são como no colégio.


De início: universitários são, em regra, irresponsáveis. Então não se surpreenda se, faltando poucas horas para a entrega do trabalho, ninguém se movimentou - e até vai ter gente que esqueceu. O que fazer? Simplesmente assuma o comando. Reúna os coleguinhas, divida o tema do trabalho em tópicos para eles, sobre resultados e organize a versão final para ser entregue - também divida as falas e controle o tempo das apresentações de cada um. Com alguém organizando, o trabalho "anda'' e termina bem-feito com relativo pouco esforço por parte de cada um.

A bronca mesmo é quando lidamos com o choque de fazer um trabalho de nível acadêmico, em grande contraste com os trabalhinhos feitos no ensino médio. Bem, a diferença inicial é que produções de nível universitário são mais específicas, ou seja, você raramente irá falar sobre coisas como "Idade média'' ou "Proteínas''. Para efeitos comparativos, no máximo, seu âmbito de estudo será sobre coisas como "Efeitos e causas do feudalismo italiano do século XV sobre o comércio de artes sacras'' ou "Potenciais usos do líquen panamenho para doenças degenerativas''. Ou seja, se prepare para raramente falar sobre "direito civil'', mas sim sobre "direitos da personalidade no caso X''. 

A outra diferença, esta sim essencial, é  método que se cobra de você nesses trabalhos. O professor vai exigir não só o uso correto das famosas regras da ABNT (o tipo de fonte a ser usada, espaçamento, forma de referenciação, uso de citações, estrutura do trabalho em capa, contracapa, sumário etc.) mas também o desenvolvimento de um método de análise ou síntese do tema trabalhado. Em essência, você começava introduzindo o tema, bem como exaltando a importância social do seu trabalho, suas repercussões e o método físico (pesquisas de opinião, consulta bibliográfica - de longe o mais comum - fórmulas estatísticas etc.) que você usou para chegar às conclusões - que, saliente-se, você NÃO deve enuncia na introdução! Por isso, geralmente deixamos a introdução a ser feita por último, depois de toda a pesquisa, como uma espécie de "apresentação'' do trabalho. Sabe aqueles resumos nos versos das capas de DVDs? Pois bem, a introdução é um pouco como eles.

O passo seguinte é o desenvolvimento. Aqui, você tem uma certa liberdade, maior que no colégio, para discorrer sobre o tema usando as ideias que você quiser. Mas cuidado: ideias que não são suas devem ser referenciadas adequadamente (chamados de "citações'', onde, no rodapé ou ao lado da citação, você indica o nome do autor citado, sua obra e página específica) sob pena de serem vistas como plágio. Em direito, é muito comum que se inicie trabalhos com a apresentação de um caso concreto, por onde você vai analisando as repercussões jurídicas até chegar à formação de conclusões, sejam elas abstratas ou mais genéricas. Você também pode começar explicando quais são os principais conceitos envolvidos no tema, para enfim chegar à uma síntese final. Aristóteles chamava o primeiro método de "indução'' e o segundo de "dedução''. O legal mesmo é intercalar esses dois, mostrando como situações concretas podem gerar conclusões abstratas ou concretas, e situações ideais, o inverso. Exemplo: se seu trabalho é sobre impostos sobre o consumo (como o ICMS, ISS etc.) você pode começar falando dos famosos casos de guerra fiscal entre os Estados (que baixam o ICMS indiscriminadamente para atrair indústrias e investimentos) e a partir daí conceituar os referidos impostos, e até mesmo dar sua opinião sobre os limites da discricionariedade dos Estados em aumentar ou reduzir esses impostos. 

O diferencial está justamente na sua "opinião'', seguindo o conselho do seu professor de ensino médio: na conclusão, você deve dar sua "opinião''. Ora, não é uma simples "opinião'', mas uma posição, na qual, depois de toda a análise feita, e embasado em tais e tais doutrinas, você defende um ponto de vista - ou até cria um. Por exemplo, a partir da análise do confronto entre a Constituição e Tratados internacionais assinados pelo Brasil sobre a pena de morte (admitida, entre nós, em tempo de guerra, e rejeitada pelos demais países), você pode simplesmente defender um ou outro, ou admitir uma posição totalmente nova. Mas a simples tomada de posição é essencial. Sem ela, sua atividade futura como jurista - que é assumir uma posição, seja como juiz, promotor ou advogado - fica seriamente comprometida. Os trabalhos serão seus primeiros "treinamentos'' para fazer futuras petições e pareceres: aproveite-os!

E, enfim... a crise do meio do curso (ou antes!)

Respire. Se você passou os olhos por esse texto e parou aqui, então senta, toma um chá e vamos conversar, de (ex-)estudante para estudante. 

Você sente que não deveria ter escolhido esse curso?
Você escolheu o curso por que "foi o que deu'' ou "foi o melhor que consegui''?
Você não tem ânimo de assistir às aulas, ou mesmo de segurar um livro?
Você sente uma atração muito maior por outros cursos?
Você não consegue se imaginar como advogado(a), juiz(a) ou qualquer outra profissão jurídica?
Você ODEIA o direito?

Parabéns, você não está só! Na verdade, pouquíssimos estudantes de direito, advogados ou juízes de sucesso teriam respondido "não'' a todas essas perguntas. Quase todo mundo já se fez esses questionamentos, e ter mais de três deles desperta atenção e liga o sinal amarelo. Mas como passar por isso?

Veja, possivelmente você é jovem (deve ter menos de 20 anos, ou pouco mais que isso). Sua personalidade, ainda que duvide, ainda está formando seus últimos pedaços, bem como suas aptidões e preferências. Você pode começar odiando direito, e depois pode amá-lo. O inverso também. Mas, de todo jeito, só tem uma coisa a fazer: já que você entrou no curso, passou do primeiro período e do segundo, tenha paciência para dobrar o quinto período ao menos. É a partir dele, e dos estágios da vida, que você verá como o direito é de verdade, longe da TV e das "presunções'' que você fizer!

Ou seja, continue estudando e busque sempre saber como as regrinhas que você analisa se concretizam. Vá aos fóruns, veja audiências, assista a um júri (até se você odeia direito vai se impressionar), assista à uma sessão da câmara de vereadores ou assembleia legislativa. Mas nunca, nunca, tome uma decisão precipitada de abandonar o curso ante ao primeiro sinal de crise. O apoio das pessoas próximas também é essencial, portanto não tente "levar tudo sozinho'' e busque apoio quando precisar. 

Lembre-se que o direito te oferece um leque tão grande de caminhos a seguir que, mesmo que você goste de ciências exatas (o extremo oposto da "ciência jurídica'') você pode achar um ramo do direito que te sirva (já ouviu falar em direito financeiro? E tributário?). Gosta de ser professor? Por que não de direito? Se amarra em história? Que tal se especializar em história do direito?

Nos últimos tempos, como geralmente entramos no curso cheio de expectativas e sonhos de sucesso, podemos ter algum grau de decepção com as pessoas, com o direito, com os professores. Mas não desista, dê a volta por cima, professores ruins vão ficar para trás, inimizades também, e com um pouco de calma e planejamento você pode conseguir o que quiser.

Então o caminho é ter paciência e ir descobrindo o direito do dia-a-dia. Mas se não der mesmo para você, se aquilo for realmente insuportável, não tenha medo em pular fora, depois de uma decisão paciente e bem tomada. Não pense no dinheiro, mas em realizar um sonho. Afinal, não tem nada pior do que ter que fazer algo que você detesta pelo resto da vida!



Bem amigos, aqui encerramos a "segunda fase'' do curso de direito. Se tudo der certo, você vai estar adaptado ao curso até o quinto ou sexto período, depois de vencer a crise do meio do curso (ou em alguns casos crise do terceiro período!), familiarizado com os amigos, professores e o próprio "ritual'' de ir à aula todo dia. Muitas coisas ainda vão ocorrer, mas depois do meio do curso, temos que nos preparar para deixar a faculdade! Afinal, é apenas um treinamento para a vida jurídica... depois de vencer os desafios iniciais, você precisa correr para planejar sua vida fora da zona de conforto da Academia. Na próxima, vamos falar de quando saímos ao "mundo'' do direito pela primeira vez: o primeiro estágio, congressos, preparação para a OAB, produção da "monografia'' e, claro, o tão temido futuro!!

Feliz ano novo!