terça-feira, 25 de setembro de 2018

O CORONEL CONTRA O LOBISOMEM: CIRO GOMES E O DRAGÃO DA MALDADE


Definir um voto vem sendo cada vez mais difícil. Mas, diante de tudo o que estamos passando hoje, vou me socorrer na história, a quem atribuo algum sentido: nos últimos 30 anos, reconquistamos nossa redemocratização, vivemos a estabilização econômica, festejamos a redução da pobreza e, por fim, caímos em um precipício onde todas essas conquistas estão ameaçadas. É o momento em que ou passamos para a fase de desenvolvimento seguinte ou vamos ter que iniciar tudo de novo, se é que me entendem.

Por isso, é fundamental o voto em alguém (ou em um “projeto’’) que se comprometa a conservar tudo o que foi realizado. Isso exclui o apoio a quaisquer aventuras antidemocráticas que, sob uma falsa promessa do retorno de uma época onde o “parecer’’ ser honesto, limpo e organizado era mais importante do sê-los de fato, atiçam o que há de pior na alma humana, como o velho desejo de que poucos devem comandar muitos e, o que é pior, de que algumas categorias de seres humanos são naturalmente “degenerados’’, verdadeiros cidadãos de segunda classe; por isso, merecem ganhar menos dinheiro, merecem sofrer com a pobreza da qual não são culpados, merecem ser surrados por sua orientação sexual, merecem a mordaça cultural, social e existencial. 

Tal discurso, apesar de usar a máscara da disputa eleitoral, já declaradamente proclamou a possibilidade de destruir a democracia e pôs em cheque o processo eleitoral – mas somente se perder nas urnas. É a fera que chega à meia-noite, meio homem, meio besta. 

Esse mesmo projeto autoritário busca aumentar os impostos sobre os mais pobres e a classe média, aliviando os mais ricos, onde a taxa de poupança é maior, acabando com o motor do crescimento nacional, que é o consumo das famílias; tenta realizar uma abertura indiscriminada da nossa economia, por puro fanatismo ideológico; almeja, por uma mistificação de uma suposta superioridade do setor privado sobre o público, privatizar o patrimônio nacional com uma voracidade que deixaria o príncipe das privatarias tucanas corado de vergonha – e aqueles que andam, há décadas, de olho nas riquezas do Brasil, finalmente satisfeitos.

Trata-se do projeto que, além de assumir seu compromisso com a concentração de renda e a desigualdade social, arrisca destruir, em poucos meses, quase que a totalidade da estrutura produtiva brasileira – ou alguém acha que o agronegócio brasileiro, que incrivelmente apoia essa proposta suicida, vai resistir quantos meses contra o agronegócio subsidiado norte-americano, se perder os subsídios que o governo brasileiro lhe concede?

Por isso, meu voto é destinado ao único candidato que tem o compromisso de preservar o estado de direito e, ao mesmo tempo, combater a loucura do elitismo econômico no Brasil. Tudo isso realizando um necessário ajuste nas finanças do país, detendo a escalada da dívida pública mudando a natureza da mesma para títulos com maior prazo de resgate e menores juros; isso se fará aumentando receitas, tributando quem nunca foi tributado no Brasil (lucros e dividendos das grandes empresas, e heranças multimilionárias, hoje subtaxadas) e reduzindo desonerações tributárias insanas, que custam mais de R$ 300 bilhões ao ano, permitindo espaço para revogar a insana “emenda’’ que congela os gatos públicos por 20 anos. Com isso, temos nossa “normalidade’’ fiscal de volta. E assim será possível os “capitalistas’’ voltarem a ver algum futuro no Brasil.

E país que acena ter um bom futuro é país onde as taxas de emprego e consumo sobem. Não é a toa que uma puxa a outra, e não é insanidade alguma lançar um programa que permita a 63 milhões de endividados voltarem a serem inseridos na roda da economia, consumindo como antes, gerando demanda e emprego, restaurando o patamar produtivo pré-crise, só que dessa vez beneficiado por uma desregulamentação maior do setor bancário, permitindo que as cooperativas de crédito possam competir com os grandes bancos para oferecer o crédito necessário ao crescimento do país. Um programa emergencial de empregos, reativando pequenas obras públicas, ajuda a dar o gatilho.

Nada disso é possível sem um governo que tenha algum planejamento econômico.

Nenhum país dos nossos tempos deixa de influenciar em setores estratégicos para a economia nacional, e não seremos nós a sermos os diferentes: a riqueza em petróleo, o potencial na área de defesa, o antigo título de maior produtor de biocombustíveis do mundo e a necessidade de redução da dependência do setor fármaco-médico são de atuação vital para a sobrevivência do país.

Tudo isso possibilita uma necessária reforma tributária, finalmente instituindo o IVA (imposto sobre valor agregado), substituindo quase uma dezena de outros impostos e reduzindo a burocracia, consequentemente, aumenta a arrecadação da Previdência e, assim, possibilita uma reforma do atual e insustentável modelo para o regime de capitalização misto para os futuros segurados – onde você só tira, quando se aposentar, o que poupou, mas o governo banca os desassistidos não mais com o dinheiro que o trabalhador entrega à Previdência, mas com seu próprio orçamento.

E, claro, ao lado da reforma trabalhista (revogando-se a atual e propondo uma nova, onde o poder de negociação individual entre empregado e empregador não frature direitos trabalhistas básicos) e de uma nova forma de atuação do Banco Central, com a implantação, paralela à meta de inflação, de uma meta de redução do desemprego (como o BC norte-americano faz), temos a receita de uma recuperação econômica racional e possível – e que se assemelha à receita econômica aplicada por Getúlio Vargas para superar, em três anos, a maior crise da história do capitalismo brasileiro, a de 1929.

Veja, nós tentamos a saída ortodoxa, com corte de gastos sociais, limitação de gastos públicos, elevação dos juros e aprovação de uma “reforma trabalhista’’ que deu em menos 900 mil empregos... e tentar fingir que é possível voltar à fase do crescimento dos anos 2000 usando as mesmas ferramentas – ignorando que o partido que as utilizou sujou-se na lama da corrupção, mesmo que não tenha criado o “mecanismo’’, e insistiu em políticas econômicas alucinadas, como controle de preços a la Sarney, que levaram à crise – é mero fanatismo partidário.

Um país entra em suas crises pelo fato do projeto anterior de país ter se esgotado; e não sai de sua pior crise por saudosismo, mas com um novo projeto de nação. Fingir que o relógio vai voltar dez anos no tempo é um estelionato eleitoral tão grave quanto o que foi aplicado na última eleição; fingir que o controle de preços e, após as eleições, o ajuste fiscal insano não quebrou o país é maldizer a inteligência do eleitor; fingir que é pura vítima de um golpe e ao mesmo tempo se aliar e confraternizar com os golpistas é fazer o país dançar à beira de uma nova mentira – nem todas as soluções passam pela máxima de Fernando Henrique Cardoso, “mais quatro anos’’.

Sobre o PT, por falar em "quatro anos'', basta um olhar para o último quadriênio. Venceram uma eleição prometendo manter o status quo, mas aplicaram uma receita de governo própria da coligação derrota, cortando gastos sociais e fortalecendo a crise que se esforçaram para esconder; não satisfeitos em levar à cabo um estelionato eleitoral contra o povo, ainda quedaram-se mudos diante das revelações da lava-jato. Sejamos sensatos: apesar de não ter montado o "maior esquema de corrupção do mundo'', os companheiros dele se beneficiaram. Pior: não fizeram qualquer tipo de autocrítica nem pelas propinas e "doações'' via caixa dois, nem pelas pérfidas alianças com quadrilhas políticas. Pior ainda: já estão aliados a eles de novo, depois do "golpe''!

Solução perfeita, no entanto, não há. A história nos leva a ver em um político proveniente de uma família tradicional, com trejeitos mais broncos e as vezes deselegantes (embora saiba ser humildade para reconhecer seus erros), como o único capacitado a levar o Brasil à sua quarta fase de desenvolvimento: a do alicerçamento do crescimento econômico condizente com nossas potencialidades mediante algo que não mencionei antes e que deixei por último por sua importância. A educação. Dela, ele entende: o Estado que já foi por ele governado é o campeão nacional nesse quesito. Professores não são sub-remunerados lá, nem espancados ou vítimas de deboche. E ele é o único candidato que tem um projeto firme e geral para mudar a educação brasileira, apostando nela todas as suas fichas. É o "coronel'' que gosta de colocar o professor como prioridade de suas gestões.

Não é preciso citar, também, a longa experiência política imune a processos de corrupção, os êxitos como prefeito, governador e duas vezes ministro de Estado.


Chegou a hora e a vez de Ciro Gomes, porque, como disse um conterrâneo seu, autor de "O guarani'': "o poder nasce do querer. Sempre que o homem aplicar a veemência e perseverante energia de sua alma a um fim, vencerá os obstáculos, e, se não atingir o alvo fará, pelo menos, coisas admiráveis.“ Temos diante de nós o "dragão da maldade'' suspirando por uma chance de devorar nossa democracia.

Chegou a hora de fazer o admirável pelo Brasil. Meu voto é seu!

Catilina à brasileira



Lúcio nunca foi levado a sério. Em muitos anos como político, não fez nada demais a não ser acumular patrimônio. Até que, oportunista como era, viu seu país entrar na pior crise da sua história, com antigos líderes presos e uma polarização cada vez maior entre ricos e pobres, “gente do campo’’ e “gente da cidade’’, “partido popular’’ e “partido aristocrático’’. Chegara a sua hora, pensou: defendendo a morte dos corruptos, “mudando tudo o que está aí’’, “ cobrando menos impostos para o cidadão’’ e erguendo a bandeira da “volta aos bons tempos em que o exército mandava’’, Lúcio, tendo como guru um antigo ditador, se lançou candidato ao maior posto político de seu país. E perdeu.

Mas não desistiu. Tentou por fogo (metaforicamente, espalhando notícias falsas e apocalípticas sobre os adversários; e literalmente, com muito óleo inflamável) na capital para, em meio ao caos, tomar o poder. Muitos dos que queriam “o retorno dos bons tempos’’ o apoiaram. E ele terminou morto na primeira das muitas guerras civis que dilaceraram Roma e a transformaram, afinal, numa ditadura imperial por quatro séculos.

Ao longo da história, muitos pretensos líderes tentaram reeditar a trajetória de Lúcio Sérgio Catilina. Quase todos ex-militares, cujo pensamento político variava da pura grosseria intelectual até sofisticadas construções teóricas. Nesses fluxos e refluxos da história, um padrão parece se repetir: um louco sempre “abre as alas’’ de uma fase política autoritária para um verdadeiro tirano, que se assenta no poder com base no rescaldo deixado pelo “homem-bomba’’.

Hoje, nós infelizes tetranetos tropicais dos romanos vivemos essa fase. Não é mais o nosso Catilina (cujo nome não me permito pronunciar) que é uma ameaça. É o incêndio que ele causou. O maior medo não é Catilina triunfar, já que seu próprio estilo tosco faz muita gente concordar com a velha denúncia de Cícero (“até quando abusarás da nossa paciência?’’).

É que, 20 anos depois das loucuras catilinárias, veio César e acabou com a democracia romana. Sempre existe coisa pior esperando no futuro, depois que os arautos do autoritarismo tem sucesso. 

Ó tempos, ó costumes!

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Ansiedade

"Hoje te trago sob ferros
e não mais serei pego por teus erros
aquele amar sôfrego de náufrago
deixei na ilha onde te fiz de afago

deusa do amor mau
onde estais, senhora do presságio ruim?
agora, que tuas lições morreram
e descestes ao último degrau?

Ânsia faminta, encontrastes tua cura
um toque de infanta, um olhar de moça pura
para sempre te esconjurou
e ao meu mundo mudou.''

A cura de Aurora

"Semente de Carlos
Cheia de encantos
de serpente nada tens
mas a chuva é o sinal de que vens

como pode tanta graça
oculta ter dançado
sob os olhos de um cego de nascença
que agora regozija com teus traçados?

Um rosto incomum, como uma nuvem no céu
pois no jardim das flores do mundo
não existe perfume mais puro
a me fazer sonhar: a eterna noite se encerrou.''

segunda-feira, 2 de julho de 2018

O "ser'' descartável

No meio das sombras que crescem atualmente do ponto de vista ideológico, espiritual e político, um tipo particular de patologia psicossocial vem crescendo, contaminando um sem-número de vítimas numa onda de pseudo-racionalidade, falsa auto-ajuda egocêntrica e obsessão com a quebra de regras por meio de um apelativo chamado à "liberdade'' a custo zero. 

Não gostaria de iniciar falando sobre as consequências nefastas que pensadores niilistas, existencialistas e pós-existencialistas tiveram sobre, principalmente, as juventudes dos últimos 50 anos. Basta dizer que a "condenação à liberdade'' e a radical redução da realidade/moral/consciência ao indivíduo e seus vícios e desejos foi o rompimento do ovo da serpente dessa "onda''. 

"Onda'' multicolorida, obviamente líquida e de baixa densidade. Multicolorida, porque mistura um pouquinho de tudo o que é "moderno, pós-moderno, transgressor''; líquida, porque se adapta a qualquer loucura que o indivíduo defenda e a transforma em bandeira inatacável; de baixa densidade, porque se baseia em aforismos, enunciados prontos do senso comum progressista e frases e ideias de golpe feito, com o fim de impressionar e doutrinar pela enxurrada de compartilhamentos a la modinha. 

Nesse cenário, pessoas tristes e desiludidas são facilmente atraídas pelo discurso do egoísmo libertário. Se você não teve uma infância boa, como as crianças da TV tiveram, a válvula de escape perfeita é rejeitar tudo o que te ensinaram, bem como noções básicas de moralidade e comprometimento, para ligar o botão do "foda-se'' para tudo e para todos. Afinal, você é uma criatura "em evolução'' e as coisas, valores e até pessoas que não acompanharem sua evolução (a satisfação dos seus desejos) estão prontamente disponíveis para serem atiradas na lata de lixo mais próxima.

É, você não pode sofrer por ninguém que seja obstáculo ao seu "autoconhecimento'' e a sua busca por iluminação no lugar mais escuro de todos, dentro de si mesmo. Lá estão seus desejos inconscientes e conscientes, e aí de quem te disser "ei, vai com calma!''. Acima de tudo, o seu próprio nariz. 

O problema é que as pessoas que pensam assim, jogando tudo para o alto em busca de uma "evolução'' e de uma liberdade ilusórias, encontram de tudo, menos liberdade e, decididamente, evolução. 

Fugindo do lugar comum: você não caiu do céu! Para que você esteja aqui, hoje, lendo esse texto (ou não), centenas ou milhares de pessoas, desde seus ancestrais mais remotos aos mais recentes, bem como amigos ou simplesmente pessoas caridosas, trabalharam de alguma forma, se sacrificaram e sonharam com algo melhor para você. E elas fizeram isso acreditando em valores básicos como solidariedade, amor e sacrifício pelo próximo. 

Até mesmo os erros delas, as vezes, te ajudaram. Ter um pai alcoólatra me ensinou a importância de moderar os excessos e de não convir para que ninguém caia nesse vício abominável. O trauma não fez uma ferida, mas uma cicatriz que me deixou mais forte. E aí é que está a grande falha do "preciso evoluir de forma livre e desapegar de tudo'': é tudo uma grande desculpa para fugir dos desafios e problemas que a vida nos apresenta, manifestando imenso medo e covardia em enfrentar as barreiras que se apresentam.

Tem problemas? Todos tem. Tire o melhor deles. A fuga só vai te impedir de ser verdadeiramente grande.

Não gosta da sua mãe? Trabalhe, saia de casa e dê o dedo para ela, que te criou, te alimentou e cuidou de você nas suas doenças. Detesta seu trabalho? Chegue atrasado, "seja mais você'', deixe a carga de trabalho se acumular nos ombros dos seus colegas. Acha merece alguém "melhor'' no seu coração? Jogue fora quem te impede de ser livre para ser usado como um objeto por gente escrota, e parta dois corações, o seu e o de quem já te amou. Cara, deixa de ser covarde: jogue com as cartas que Deus te deu! Cuide das pessoas que Ele pôs na sua vida! Quer evoluir rápido ou evoluir da forma certa?

Eu entendo o vislumbre que a promessa de realização pessoal e independência total que a ideologia do "desapego-de-tudo-e-eu-sou-mais-eu'' provoca. Pessoas de baixa autoestima preferem se iludir com a falsa meta de que, ao jogar tudo para o alto e viveram para si mesmas, sem qualquer limite moral, ético ou qualquer responsabilidade com as pessoas próximas, finalmente se realizarão. Esse vai ser justamente o momento que vão perceber que falharam miseravelmente. 

Sem querer entrar em qualquer argumento religioso, mas uma metáfora, nesse sentido, cai bem: ninguém chega ao céu sozinho. Cada pessoa, cada valor, cada coisa que entra no seu caminho cumpre uma finalidade na sua verdadeira evolução, a única que importa: a de aprender que a felicidade está fora, e não dentro, de nós. São as pessoas, são as ideias, são os valores, que fazem a vida fazer sentido, que dão gosto às nossas ações, que dão um caráter finalístico à nossa existência. Sim, você não evolui por evoluir, nem evolui para si mesmo; você evolui para ser útil para alguém, poxa! Ao irradiar felicidade e amor, você recebe muito mais de volta!

Vem cá: tu consomes vários litros de água e vários quilos de comida por semana. Respiras dez mil litros de oxigênio por dia. Pra acender uma lâmpada, acionas uma indústria geradora enorme e complexa, que somente existe graças a séculos de trabalho de gênios como Galileu, Newton, Tesla e Edison. É sério que você acha que não deve cooperar, nem um pouquinho, com tudo o que te cerca? Não escolha agir como o reizinho do primeiro mundo visitado pelo Pequeno Príncipe. A única coisa que vai conseguir é, se conseguir algum sucesso, olhar para os lados e não ver nada além do vazio que existe dentro de você mesmo. 

Não fugir dos problemas é um primeiro passo. A maturidade, mais do que fazer suas próprias escolhas, é fazê-las de forma responsável. Esqueça a balela de autoconhecimento, iluminação, frases de Clarice Lispector ou de Osho (quem?); a paz interior não se alcança mandando o mundo se lascar e viver em um estado semi-sonâmbulo. Sair descartando "quem te incomoda'', rasgar valores e ideias que fazem sua consciência pesar (por que não mentir? Por que não trair? Por que não falar mal de um amigo para conseguir o emprego dele?), jogar tudo para o alto por que é mais confortável não vai fazer a dor passar. Enfrentar o problema e resolvê-lo sem machucar as pessoas ou rasgar noções elementares de ética e moral, sim. 

Não é fácil optar por respeitar o que herdamos nem a vida que temos. Isso não se significa, jamais, conformismo. Significa que você vai sim subir, mudar, se transformar, mas conservando um núcleo duro que realmente faz de você, você: a imensa e rica herança de valores, vivências, pessoas e sentimentos que você recebeu e viveu. Cultivar o sucesso a partir delas, como os grandes conquistadores e líderes do mundo fizeram, deve ser a sua meta - e não se livrar de tudo para viver uma vida alienada, iludida e desenfreada. 

Sabe de uma coisa? Escutar os outros e respeitar o que herdamos tem um sentido muito lógico. Dois acertam onde um erram, sabe? Trabalho coletivo vence um individual. Ninguém basta a si mesmo! Seus pais e avós te deixaram um "know-how'' (que tal um arquivo?) de experiências e valores. Eles viveram mais que você, acertaram e erraram mais. Calçai as sandálias da humildade, pegue a construção de onde eles pararam e, com as mesmas massa e tijolos, continue. O que você acha que te atrasa te fortalece: não seja um pequeno ditador para impor ao mundo seu tempo e suas crenças de momento. Você não vai fazer o mundo girar mais rápido. Ah, mas se souber como usar o tempo do mundo para navegar pelas correntes da vida... o quão longe pode ir! E, quer saber, quando chegar à uma linda praia de água cristalina, não vai estar sozinho lá. 

Enfim, liberdade é, dentre todos os caminhos, escolher o certo. O que define o caminho certo? Acredite, você vai saber. Na hora certa, as coisas vão se encaixar, sem que você precise atirar ninguém ou nada importante na lata do lixo; as cargas essenciais te tornam forte. Viva sem pressa. Pare de achar que precisa vencer para aparecer. Como liberdade é responder pelos próprios atos, vencer é chegar ao fim da vida tendo feito algo de útil para o mundo e para quem amamos e, assim, para nós mesmos. 

A luz vem de fora. 

sexta-feira, 15 de junho de 2018

A condução coercitiva sob as barbas do Supremo: estancando a sangria


Ver a Polícia Federal, de manhãzinha, "convidando'' alguns figurões a prestar depoimento (de forma forçada) vai deixar de ser uma rotina. Triste fim para fenômenos do partido justiceiro, como o "japonês'' e o "hipster'' da "federal'', que perderão, para sempre, seus 10 segundos de fama.

Nunca vi com bons olhos a "condução coercitiva'', principalmente a do acusado/investigado. Ora, se o sujeito não é obrigado a produzir provas contra ele mesmo, por que é obrigado a prestar depoimento, metido no xadrez de uma viatura como se fosse culpado? Razão jurídica (dentro de uma ótica democrática, garantista), mesmo, não há; na verdade, a "condução coercitiva'' dos tempos pós-lava jato não é a que está no Código de Processo Penal, mas uma "mutação'' que surgiu das necessidades práticas e fins da operação.

A primeira razão é uma exigência da operacionalidade policial. Em operações anteriores contra crimes envolvendo desvio de verbas públicas, os policiais geralmente acabavam sem provas, por que, assim que o inquérito (a investigação, em termos coloquiais) era aberto, os investigados corriam para destruir todas as provas e combinar versões - as que sobravam era oriundas de algum meio ilegal (como alguma escuta obtida sem autorização judicial).

A equipe da PF de Curitiba, depois de uns minicursos nos states, inventiu uma espécie de "blietzkrieg''' policial: a abertura do inquérito coincidia com a detenção dos principais alvos para serem ouvidos, de maneira forçada, ao mesmo tempo em que se realizavam buscas e apreensões em casas, apartamentos e empresas.
Daí, muitos contratempos eram vencidos: as provas não eram destruídas, os investigados eram pegos de surpresa e acabavam "soltando'' algo ou entrando em contradição, os investigados não tinham como saber o que cada um dizia (antes, bastava combinar as versões; mas, e se todo mundo fosse ouvido ao mesmo tempo, de surpresa? Será que o parceiro de lavagem de dinheiro não iria te entregar primeiro?).

Além da razão operacional, vinha a estratégica. Ninguém se engane em acreditar que as autoridades policiais formam suas convicções depois de investigar tudo; na prática, as conclusões vem antes (os policiais sabem - ou pelo menos teorizam - quem está roubando e onde se está roubando, quem poderiam ser os chefes etc., e partem em busca de provas pra comprovar a "tese''). Como as peças de um tabuleiro jogado em conjunto com juízes e procuradores, cada "fase'' operacional, cada condução coercitiva, era desenhada para atacar os flancos abertos do "inimigo'' - o "mecanismo''.

Escolher quem constranger e quem ameaçar com prisão é fundamental para a maior sacada da lava-jato: tentar destruir o "sistema'' da corrupção por dentro, de forma autofágica, de baixo para cima e de cima para baixo, fazendo seus componentes se destruírem - vendo o parceiro conduzido coercitivamente, os possíveis alvos de operações futuras, superiores ou não na hierarquia das organizações criminosas combatidas, já partem em busca da delação, enquanto que o ritmo de conduzidos é tão frenético que não permite que se tome qualquer reação...

A razão psicológica era quase tão importante quanto a operacional e a estratégica. O investigado conduzido era quase tratado como um preso - ou, no mínimo, um muito provável candidato à uma futura prisão. O despreparo no depoimento (quem consegue raciocinar bem depois de ser tirado da cama às 6 da matina?), o medo de falar alguma porcaria, a insegurança por uma futura prisão, o receio de ter a cabeça entregue pelo parceiro conduzido na sala ao lado ou mesmo de ser entregue pelos próprios chefes deixa qualquer um em estado de desespero. E assim nasce um delator.
Apesar de tudo isso, há, juridicamente, outra razão para o sucesso das coercitivas: nosso ordenamento jurídico simplesmente não tinha nenhum expediente que pudesse ser usado em tais fins, nas investigações policiais. Veda-se a "prisão para averiguações'' e, em que pese se autorize a prisão temporária (geralmente para o réu não destruir provas), seu prazo é muito curto, não contempla necessariamente a ouvida do preso e suas hipóteses são muito específicas, geralmente quando já existem elementos probatórios fortes contra o investigado; imprópria, portanto, quando não se tem, justamente, provas...

A coercitiva, assim, sofreu uma mutação. A necessidade de recusa à uma intimação anterior foi discretamente riscada do código de processo penal - na verdade, já vi (não pela TV, mas na minha prática penal) delegados "autorizarem'' a coercitiva do investigado por telefone, sem intimação anterior... - e, como todo abuso jurídico, foi justificada como "opção menos lesiva ao réu'': ora, é melhor (para o "réu'', que ainda não o é por ainda não existir nem denúncia) obrigar o sujeito a ir depor do que prendê-lo temporariamente para isso. Dos dois abusos, o menos ruim, pelo menos.

Na verdade, se transformou a condução coercitiva em meio de detenção cautelar, uma verdadeira "prisão para averiguações'', no que se chega à grande motivação das coercitivas: a política. Mostrar na TV que o dono da Odebrecht, o presidente de algum grande partido ou outro poderoso foram enfiados dentro de uma viatura e constrangidos a depor, enquanto policiais recolhiam malotes e mais malotes de "provas'', foi a principal peça publicitária que garantiu que a conquista e manutenção da hegemonia na opinião pública por parte da operação policial. São quase peças de propaganda em tempo real, que caíram no gosto do povo, para difundir o que eu sempre disse ser um projeto de poder.

Mas não se enganem com a expressão. Não quero dizer que policiais, juízes e procuradores querem "tomar'' o poder ou o governo, mas sim que essas corporações possuem uma "agenda política'' para o país e para si próprias. Ela passa sim pelo combate à corrupção, mas também deixa clara suas marcas ideológicas made in EUA e abarca, na visão de alguns grupos, até mesmo interesses meramente classistas (procuradores e juízes lutam com unhas e dentes por reajustes salariais, manutenção de auxílios inconstitucionais e uma ou outra regalia). Nada disso é claro como se fosse uma "cartilha'' - esses interesses, inspirações e objetivos partem de grupos diferentes dentro desses grupos, se misturam, se conflitam ou se fundem.

Independente do fato de agredir ou não a ordem jurídica (sempre acreditei que sim), o fim das conduções coercitivas deixa as operações policiais em andamento pernetas. Vão ter que se virar com o que já possuem (que não é pouca coisa). Ao lado do desmonte das equipes policiais, restrições orçamentárias e cansaço da opinião pública, estamos perto de ver o fim da lava jato.

Esquisito é, só agora e depois de várias vezes confrontado com a (i)legalidade das conduções (os ministros, inclusive muitos dos que votaram pela inconstitucionalidade do instituto, costumavam chancelar tudo que os policiais faziam nessa seara) o STF tenha riscado o instituto do mapa jurídico. É hora de voltar à "normalidade''.

Será o tal do "grande acordo nacional''?

segunda-feira, 11 de junho de 2018

A abelha que se foi num bater de asas




Das colinas de Efraim
Uma flor surgiu para mim
Entre Ramá e Betel
Tuas palavras deliciavam como mel

Senhora de simples juízos
Tão prática nas suas certezas
Viajante de sonhos, para onde vai tua estrada?
Eu estarei lá, no fim da tua volta ao mundo

Santa sabedoria, prudente amiga
Dize-a que o mais complexo é uma linha reta
Apontando do meu para o seio dessa augusta
E nem Sísero nos vencerá nessa briga

Abelhas trazem a vida
E o teu sorriso, ressureição
Mas o conselho do meu coração
É, para sempre, lamentar tua despedida.

domingo, 8 de abril de 2018

As quatro nulidades no mandado de prisão do ex-presidente Lula



Desde a última quinta, o mundo político brasileiro entrou em choque em a expedição, em tempo recorde, do mandado de prisão destinado ao ex-presidente Lula. Mesmo sem saber do que se tratava, muitos se aventuraram a dar pitaco de juristas - inclusive "juristas'' que no máximo leram algum resumão de internet sobre direito processual penal - e a bater palmas para a celeridade no combate à "impunidade''. 

Todavia, a impunidade - ou a sensação geral de - não justifica o atropelo às formalidades legais que um mandado de prisão deve possuir. Aqui, tentarei, de forma mais ou menos coloquial, demonstrar quatro nulidades presentes na "ordem de prisão'' de Luiz Inácio Lula da Silva, traduzindo, na medida do possível, toda a teoria e o rigor técnico-dogmático que a matéria exige. 

I - Pequena introdução.

O modelo de privação da liberdade brasileiro é centrado no Judiciário. Com exceção dos crimes militares, o cometimento de crimes civis enseja a prisão em flagrante, caso o delito ocorra às vistas do condutor (aquele que prende o mal-feitor) ou tenha acabado de ocorrer; a prisão temporária, modalidade curta de privação da liberdade que almeja evitar que o suspeito destrua provas, enquanto e interrogado; a prisão preventiva, baseada no risco que o suspeito oferece para a ordem pública, pela sua capacidade de continuar a cometer crimes, bem como pelo perigo que sua ação livre representa para a apuração das provas que instruirão o futuro processo penal, além do risco de fuga; e, por fim, a execução da sentença penal condenatória, onde, ao contrário das demais modalidades, não se fala em provisoriedade, mas em prisão definitiva, pelo tempo da condenação. 

Em todas estas, o Judiciário se faz presente. Sem a ordem fundamentada (na lei, entendendo-se esta em sentido estrito, considerando-se o conjunto piramidal formado pela Constituição e pelas leis como um verdadeiro "bloco de legalidade'') de um juiz, qualquer prisão é absolutamente ilegal. As ilegalidades podem se dar desde a incompetência (a falta de poder jurídico da autoridade que decretou a prisão) do juiz, ausência de formalidades essenciais no mandado (como a escrita errônea do nome e localização do detento) ou mácula a direitos e garantias fundamentais. O mandado de prisão expedido pelo EXMO Juiz Sérgio Moro se enquadra na segunda e na terceira hipóteses.

II - Da ilegalidade por ausência de comunicação processual entre instâncias.

É interessante notar que, prevendo a iminente prisão quando do julgamento dos embargos de declaração por parte do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a defesa do ex-presidente tenha interposto um habeas corpus preventivo (um remédio que impede a prisão ilegal iminente do paciente, a vítima do ato ilegal), no Superior Tribunal de Justiça (o órgão competente para conhecer de coações ilegais por parte de ato de desembargadores federais), que, negado, ensejou a interposição de outro habeas corpus, perante o Supremo Tribunal Federal.

Conforme é de conhecimento geral, o STF denegou a ordem (o pedido de proteção ante à coação ilegal levantada pela defesa; significa, basicamente, que o STF entendeu que não é contrário à Constituição a execução da pena após o julgamento em segunda instância), em um julgamento acompanhado pelo país inteiro. Ocorre que o resultado do julgamento não foi comunicado, formalmente, ao TRF da 4ª Região.

Mais que uma firula processual, a ausência de comunicação das decisões entre as instâncias (no caso, da maior instância judicial do país, o STF, ao TRF 4) é um atentato direto à eficácia dos atos processuais praticados, visto que, para produzir efeitos, uma decisão judicial, tal como um ato administrativo, precisa ou ser publicada ou comunicada ao destinatário. 

No caso, a autoridade coatora (o desembargador-relator do processo contra Lula no TRF 4 ou o presidente do órgão) deveria ter sido notificado da decisão do STF denegando o HC; ora, não se trata de mera formalidade. Não há a produção de efeitos antes de tal notificação - um mero documento, em formato PDF, digitalizado e com um "recebido'' por parte do destinatário. Sem isso, chega-se a um nível tal de baixaria processual que não é mais necessário a um tribunal superior notificar o inferior, via malote digital, carta rogatória ou qualquer outro meio de notificação oficial; basta apenas que os membros do tribunal inferior liguem a TV ou consultem os sites de notícia para terem conhecimento das decisões dos tribunais superiores e, assim, tomem as medidas cabíveis... 

Assim sendo, houve flagrante descumprimento de formalidade legal, visto que as comunicações entre juízes e tribunais devem se dar de acordo com o formato prescrito pelo Código de Processo Penal (via cartas precatórias, quando um juiz se comunica com outro de igual hierarquia; carta rogatória, quando um Tribunal se comunica com um juiz inferior; carta de ordem, quando um tribunal ou juiz se comunica com uma autoridade judiciária estrangeira; ou uma simples notificação genérica, utilizada para todos os demais casos), fazendo incidir o art. 564, IV, do CPP, que diz haver nulidade quando ocorre a omissão de formalidade essencial ao ato - quer mais essencial a uma decisão judicial o ato da notificação entre um tribunal e outro, sem a qual a decisão não possui eficácia?

A ausência de notificação oficial vicia, na origem, o ato do TRF 4 que ordenou ao Juiz Moro expedir o mandado de prisão; e, como se há de ver, foi a senha para o cometimento da próxima nulidade.

II - Da quebra de isonomia.

Em que pese mais polêmica, é impossível deixar de notar uma patente quebra do tratamento igualitário devido ao Tribunal ante a seus condenados. Não se pode negar que, além do próprio processo criminal em si ter tramitado com uma velocidade avassaladora, a expedição de uma ordem de prisão com menos de 24 h do julgamento de um HC no STF, do qual não houve notificação formal, superou todos os demais casos já tratados pelo TRF 4, que não aguardou a notificação do STF para emitir o mandado, como o fez em outros casos.

Assim, ao adotar uma postura diferenciada para o caso do ex-presidente, determinando o início do cumprimento da pena de forma tão rápida (seguindo-se à expedição de mandado de prisão contra o ex-presidente pela 13ª Vara Federal de Curitiba em singelos 22 minutos após receber, corretamente, a notificação do TRF 4 nesse sentido) o TRF 4 e o juiz de primeira instância adotaram uma celeridade incomum e prejudicial ao acusado, coisa que não fizeram com outros acusados em outros processos. 

Isso não quer dizer que o ex-presidente tinha "direito ao atraso'', mas sim que, em se verificando um certo ritmo de trabalho comum no TRF 4 e na vara de primeira instância que deixam o tempo de expedição de um mandado de prisão em X dias, adotar X/2 dias para um condenado específico evidencia uma predisposição especial em executar a pena de tal sentenciado mais rápido que os demais, o que, de forma clara, configura mácula à imparcialidade dos julgadores do TRF 4 e da Vara Federal de Curitiba. 

Para ficar claro: se um juiz trata de "agilizar'' a execução da pena de um condenado, destoando do tempo de execução normal para os demais sentenciados, demonstra claramente estar contaminado por paixões e convicções pessoais e, ao representar o Estado-juiz, fere de morte o direito à igualdade do condenado, que passa a ser tutelado por uma autoridade judiciária que não é imparcial, mas tem um especial interesse em sua prisão, a ponto de diferenciá-lo, de forma negativa, dos demais condenados. Trata-se da aplicação de rigor excessivo contra um indivíduo, aplicando a lei de forma diferenciada, fora do tempo de espera normal, agravado pela provável "coordenação'' entre a primeira instância (vara federal) e a segunda instância (TRF 4), onde essa última ordenou a execução da pena sem ter sido notificada pelo STF para tal, e a primeira emitiu o mandado de prisão em tempo recorde. 

Aqui, se trata de mácula ao direito fundamental da igualdade.

III - Da ausência do esgotamento recursal em segunda instância. 

Como um jogo de dominó cujas peças derrubam umas às outras, uma nulidade acaba implicando em outra. O tratamento "especialmente mais rigoroso'' com o ex-presidente - para se usar de eufemismos - implicou, acima de tudo, na ordem para o início da execução da pena antes mesmo de encerrada a atuação do TRF 4 no processo criminal em questão. 

Em que pese o próprio Tribunal ter declarado, no acórdão que negou a apelação do ex-presidente que, in literis "tão logo decorridos os prazos para interposição os prazos para interposição de recursos dotados de efeito suspensivo, ou julgados estes, deve-se ser oficiado à origem para dar início à execução das penas'', confirmando que a pena só pode ser executada depois de ser julgado o último recurso possível a ser manejado pela defesa ainda perante o próprio TRF 4 (o que, no caso, consistiria em um embargos de declaração questionando os primeiros embargos de declaração interposto contra o Acórdão que julgou a apelação), o mesmo tribunal determinou a execução imediata da pena - sem ter sido notificado pelo STF da denegação do HC, sem adotar postura semelhante com outros condenados e, claro, sem se atentar para a existência de recursos possíveis de serem utilizados pela defesa ainda perante o próprio Tribunal. 

Explicando sumariamente, nesse sentido, a apelação de Lula foi julgada e, da decisão que a negou (e ainda aumentou a pena do ex-presidente), a defesa opôs um recurso (os embargos já falados), que interrompe o prazo de outros recursos e ainda suspende a eficácia da condenação. Ocorre que a lei diz categoricamente que qualquer decisão pode ser embargada e, inclusive, há entendimento pacífico que isso envolve a própria decisão que julga os embargos, desde que se alegue omissão (o tribunal não se pronunciou sobre determinada tese da defesa), obscuridade (o tribunal não foi claro em algum aspecto da sua decisão) ou ambiguidade (o tribunal adotou algum fundamento ou decisão de duplo sentido). 

Em suma, ainda havia o prazo de 2 (dois) dias para a defesa interpor novos embargos. Isso poderia gerar a contestação de que, assim, a defesa sempre poderia interpor novos embargos, impedindo o julgamento final em segunda instância; no entanto, o § 2º do art. 619 do CPP é claro em afirmar que o relator do processo no Tribunal pode indeferir, sozinho, os embargos que não preencherem os requisitos que acima listei, considerando-os meramente protelatórios. Tal possibilidade não escapou à argúcia do Juiz Sérgio Moro, que assim mencionou sua opinião sobre tal expediente: 

"Não cabem mais recursos com efeitos suspensivos junto ao Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Não houve divergência a ensejar infringentes. Hipotéticos embargos de declaração de embargos de declaração constituem apenas uma patologia protelatória e que deveria ser eliminada do mundo jurídico. De qualquer modo, embargos de declaração não alteram julgados, com o que as condenações não são passíveis de alteração na segunda instância.''

A argumentação de Moro é estranha. Basicamente, ele, o juiz de primeira instância, está a antecipar uma decisão - a de que novos embargos de declaração - que somente caberia ao TRF 4 e ao relator do caso perante tal órgão. Mais que isso: Moro usurpa a competência do TRF 4, de forma consentida com este, ao declarar que qualquer tipo de embargo oposto pela defesa seria protelatório. Não satisfeito, vai além e diz que o direito de interpor embargos ante o julgamento de outros embargos, assegurado pelo Código de Processo Penal, é uma "patologia'' que deveria "ser eliminada''. Fecha com chave de outro ao sentenciar que os embargos não ensejam alterações do julgado - esquecendo que os embargos de declaração podem sim, excepcionalmente, ter efeito infringente (ou seja, são capazes de alterar a decisão embargada) se assim o órgão competente entender. Basicamente, Moro diz que do acórdão prolatado pelo TRF 4 não cabe qualquer recurso, chegando ao ponto de invadir, em letras miúdas, a competência do tribunal ao qual ele mesmo está vinculado. 

Todavia, somente com a declaração do TRF 4 de que novos embargos interpostos são protelatórios de fato haveria o exaurimento de sua competência - não cabe a Moro esse tipo de decisão. 

Assim, se encerraria formalmente a jurisdição do TRF 4, permitindo-se o início execução da pena. Sem se aguardar esse prazo final, bem como o julgamento colegiado ou individual desse último embargo, não houve uso total das competências do órgão colegiado, pelo que não se pode executar, desde logo, a pena privativa de liberdade. 

IV - Da última nulidade. Da conclusão. 

O último ponto é o mais interessante de todos. Se resume, basicamente, ao comentário sobre uma curta frase, escrita em um livro muito especial, embora cada vez mais desprestigiado. 

Não me refiro à Bíblia, que embasa indevidamente jejuns políticos. 

Não me refiro a artigos jornalísticos, escritos por pretensos especialistas que fazem pesquisas no Google e posam de entendedores do assunto. 

Não me refiro aos artigos e entrevistas de juristas de aluguel ou partidários, que, em que pese gozarem de grande e notório saber jurídico, parecem ter esquecido as regras de interpretação textual básicas. 

Sim, o art. 5º, LVII, da Constituição Federal é de uma simplicidade que chega a evocar o antigo brocardo exegético de que "in claris cessat interpretatio'' (na clareza da lei, não há interpretação). Eu reformularia o ditado para "quando a lei é clara, descabem interpretações que distorcem-lhe o seu sentido salutar'': "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.''

Vamos por partes: "ninguém'' quer dizer que tal direito se estende a TODOS; "culpado'' quer dizer "condenado'' de forma definitiva; "trânsito em julgado'' nos lembra os verbos transitivos, que "transitam'' entre as palavras, pelo que podemos aludir que a sentença penal condenatória não mais transita - é, dessa forma, "imóvel'', ou seja, não será mais enviada para algum órgão superior reapreciá-la, se tornando inalterável. Essa junção de palavras quer dizer, simplesmente, que não se pode executar a pena de um condenado sem que este seja definitivamente condenado, sem que não mais caibam quaisquer recursos. Pense numa jarra de leite derramado. 

É um absurdo completo que a corte constitucional deste país ignore a singeleza de tal interpretação, para transformar "trânsito em julgado'' em "trânsito em julgado na segunda instância'' alegando que o "clamor social'' contra a "impunidade'', bem como que "o sistema anterior só beneficiava aos ricos'' e que "os recursos para cortes superiores só servem para protelar a pena''. 

Creio, sem nem pestanejar, que quando nem mesmo a mais alta corte do país respeita a Constituição que deve guardar, não se pode falar que, "se o STF chancelar, tá valendo''. Ora, se a Constituição proíbe o início da pena antes que a decisão condenatória se torne inalterável e impassível de ser reapreciada por outro órgão judiciário, estamos diante de não apenas uma nulidade, mas do esmagamento de um direito/garantia fundamental de presunção de inocência, que vicia, de forma insanável, qualquer decreto de prisão embasado em tal entendimento. 

Basicamente, o STF diz que o protelamento do início da pena é culpa dos acusados (que recorreriam demais), e não da sua própria desorganização e incapacidade e das do STJ. 

Tal atitude significa que a corte excelsa transfere a culpa pela demora no trâmite dos processos aos acusados, que somente estão exercendo o direito de terem suas condenações apreciadas perante o STJ e STF, direito garantido pela própria Constituição, da qual o STF se diz guardião. Esse direito basicamente some e nos deixa com o seguinte questionamento: imaginando que, depois de 4 anos da interposição de um Recurso extraordinário (esse, perante o STF), os ministros decidem que o recorrente foi condenado com base em uma lei que contraria a Constituição (ou que houve alguma nulidade que contrariou a CF) e libertam-no, como se pode justificar a esse cidadão o que foram esses quatro anos em que ficou detido "iniciando o cumprimento da pena''? Havia pena, e não há mais? Em resumo: como mandar iniciar o cumprimento da pena, se ainda existe chance de que a própria condenação seja extinta? O que fazer com os anos de pena cumpridos? Será que sumirão, como num passe de mágica, com as penadas imperiais dos ministros do STF? 

De toda forma, não se pode alegar um "problema prático'' para simplesmente reescrever, a bel prazer, a Constituição.

Especificamente, a Constituição está sendo "reescrita'', de forma especialmente prejudicial, para o ex-presidente Lula: mesmo que seu processo tenha tramitado em velocidade recorde perante Moro e perante o TRF 4, não havendo que se falar em "risco de impunidade''; mesmo que o TRF 4, instigado ou intimidado por Moro, negue-lhe os recursos a que ainda tinha direito (os embargos dos embargos), sem considerar que este não atrasariam em mais que uns poucos dias ou semanas o início da execução da pena; mesmo que o TRF 4 ordene a Moro que expeça o mandado de prisão de Lula, sem ter sido formalmente comunicado pelo STF da denegação da ordem (inaugurando a publicidade das decisões judiciais via Rede Globo); mesmo que (e aqui vai o mais grave) a maioria dos ministros do STF seja contra a execução da pena após o julgamento na segunda instância (no caso específico do julgamento do HC do ex-presidente, a ministra que decidiria a questão votou contra suas "próprias convicções'', denegando a proteção que ela mesma acredita que o paciente tem direito) - mesmo que tudo, absolutamente tudo, em seu caso escape aos motivos que levaram o STF a permitir a prisão após o julgamento em segunda instância, a seu caso foi aplicado tal entendimento.  

Essa extraordinária conjugação de fatores permitem uma triste, mas dura conclusão: o julgamento do ex-presidente Lula, pelo menos no que se refere à sua prisão antes do trânsito em julgado perante a segunda instância, foi absolutamente nulo, em diversas fases e aspectos. Foi um julgamento político, diferenciado, mas não para privilegiá-lo, mas para destacá-lo dos demais cidadãos e tratar seu caso com especial rigor.

Mais que simples nulidades, as ilegalidades cometidas em tais trâmites são perigosos precedentes que tem potencial para atingir a qualquer cidadão do país. Pois, oficialmente, qualquer um de nós pode simplesmente virar alvo de uma autoridade judicial e terminar sofrendo um "tratamento diferenciado'' com o bater de palmas geral de uma sociedade punitivista. 

"Eu sou você amanhã'' nunca foi um alerta mais lúcido. E digo que, quando os julgamentos fogem dos textos jurídicos (como a lei e a Constituição) para serem justificados e embasados segundo expectativas políticas ("anseio de punição dos corruptos''), todo e qualquer cidadão pode ser vítima de um tribunal de exceção. A violação de direitos fundamentais agride não só à "vítima'' específica, mas a todos os cidadãos do país, por extensão. 

Nunca antes a expressão "somos todos Lulas'' foi tão verdadeira. 

segunda-feira, 12 de março de 2018

Louco

Penso no que não digo
Digo, não penso, mas consigo
E do teu bater de asas faço brisa suave

Pedaços de espelho
Neste sopro, me dão falsos conceitos
Grande e pequena, nova e velho
Fatos mornos; ouço o rifar de um espectro

É uma imagem de açúcar banhada de chuva
Falha minha, do pensar sem pensar
Sumida, acanhada, de olhos a não mais amar

Não pensei e quebrei
Teu quadro retesei e rasguei
O sopro suave te levou do meu amar
Na caixa vazia, louco a querer a volta do meu pensar.

Exílio


Desterrado das serras agrestes
Desatino a carrear pelos prédios inférteis
Desalmado ser, numa ausência de querer

Meu passarinho bateu as asas
E, baixinho, cantou juras falsas
Adeus; e matou meu sonhar
Engolido pela terra, num engasgar

Neste vale estranho e sem vida
Teu canto te fez ninho e amada
Das pedras fostes, sozinha, a flor colhida

Pedras que não te atiro no ar
Vai, te põe a sonhar
Egresso ao beijo das folhas mortas
Eu, estrangeiro de caminhadas tortas.