Carros alegóricos, mulheres desfilando corpos quase divinos, multidões a dançar, pular e consumir excessivas quantidades de alcool, num furacão de alegria, luxúria, gula e, acima de tudo, excessos morais não permitidos em tempos de "normalidade''. Trata-se do momento de glória anual onde o Brasil, um dos países mais desiguais e violentos do mundo esquece seus problemas e vive a celebração que corporifica sua mistura étnica e cultural: negros, brancos, pardos e demais giram seus corpos ao som do samba, do frevo e de outros ritmos musicais originários na fusão entre entre músicas europeis e africanas.
Contraditoriamente, o carnaval brasileiro é um resquício da tradição católica, de cunho moralista, que permitia aos fieis, antes dos 40 dias de jejum de carne, uma semana de festejos e consumo do cobiçado alimento: daí o nome "carnis'', acrescido da palavra "valles'', que quer dizer "prazer''. O carnaval é a festa da carne e do prazer. Dos excessos; uma forma da Igreja liberar os impulsos reprimidos dos súditos de Cristo, afim de lhes permitir suportar os rigores das penitências quaresmais. Por outro lado, alguns historiadores dizem ser o carnaval uma festa pagã greco-romana, exaltadora das deusas da fertilidade, no que consiste um equívoco. Eram comuns o tipo de festividade no qual os padrões morais eram relaxados, os escravos eram libertos e os prazeres, liberados, mas nenhuma delas dava-se na data carnavalesca - comparando-se o calendário grego, romano e o nosso-, nem com a finalidade que o carnaval cristão possuia.
O Carnaval recebeu nova conotação com o advento do luxo caracteristico do renascimento, e daí surgem as tradições das máscaras e desfiles com carros ornamentados em vias públicas. Paris e Veneza se tornaram as grandes capitais dos carnavais da nobreza, que, talvez com certa inveja da alegria genuina do carnaval popular da qual gozavam servos e pequenos burgueses, travestiu as festividades do luxo e requinte da aristocracia. Enquanto o povo divertia-se nas ruas, a nobreza embriagava-se nos castelos e salões dos palácios, ornamentada de ricas máscaras; a moralista nobreza, geralmente, terminava propiciando verdadeiros bacanais e orgias... contudo, em alguns países, notadamente Veneza, os ricos e os pobres misturavam-se nas festas; daí o uso de máscaras que, ocultando a posição social das pessoas, permitia que todas fossem iguais nem que fosse por uma noite. E, além disso, ninguém seria identificado pelos eventuais execessos que praticasse...
O crescimento do protestantismo inibiu a farra dos prazeres carnavalesca e, como se tratava de uma festividade católica, foi sendo paulatinamente abolida ou sufocada nos países protestantes. Ingleses, suiços, alemães (do norte) e escandinávios são apontados, ainda hoje, como povos "frios'' e austeros não pelo clima de seus países, mas pela repressão moralista empreendida pelo protestantismo. Quem sabe se, gozando das mesmas liberalidades do carnaval que as nações católicas, não seriam hoje mais afetuosos, repeceptivos e calorosos?
O fato é que, mesmo com tal moralismo, o carnaval ganhou força e, na bellé époque, era uma das festividades tradicionais das elites europeias. A tradição, entre elas, era de viajar a Veneza e participar do baile de máscaras, onde homossexuais, libertinos, adulteros e afins liberavam seus desejos.
O Brasil começou seus primeiros desfiles no século XIX, e, posteriormente, a tradição se expandiu para todo o país. Curiosamente, a prática era mais comum nas pequenas localidades do interior e, só depois, surgiram as grandes festividades de massa; infelizmente, o meio que possibilitou tal transformação não foi nada lícito: tratavam-se das escolas de samba, que nasceram sob o império do jogo do bicho. Os bicheiros, com financiamento da máfia italiana, concentraram poder econômico suficiente para serem os grandes financiadores das festas de carnaval, onde podiam manipular a massa popular, "divulgar'' seus serviços e mostrar todo seu poder. Por outro lado, manifestações carnavalescas nordestinas tiveram um forte impulso popular e, paulatinamente, transformaram-se de pequenas festividades populares em eventos de massa. O Estado getulista, com sua ideologia nacionalista, incentivou os desfiles, que adotaram temas relativos à história do país.
Mas eis que a elite brasileira "descobriu'' as belezas do carnaval por essa época, por volta dos anos 50-60. E começou o fenômeno que vemos hoje: mesmo nas festas de rua, vários camarotes, caríssimos, separam os mais "aptos'' financeiramente da multidão. O desfile das escolas de samba, sempre com suas relações promíscuas com os poderosos bicheiros, foi transformado em um show pirotécnico, dando-se em uma "avenida'' especial, que mantinha o povo afastado e os que pudessem pagar por ingressos fora da festa. Anunciantes de bebidas, alimentos e demais produtos começaram a financiar, também, os desfiles, principalmente sua transmissão via Tv. As roupas encurtaram e a nudez passou a ser a regra.
Fora desse "carnaval privatizado'', o povo continuou a viver as festas de rua, cada vez maiores, mais regadas a alcool e sexualidade desordenada do que nunca. Não é a toa que, nos tempos de carnaval, os acidentes automobilísticos, as rixas e mortes delas decorrentes, o índice de gravidez indesejada e a entrada nos hospitais (problemas de coma alcoolico, overdose etc...) ascendem a níveis astronômicos. A animalidade é posta a fora.
Com regulação por parte do Estado, como está acontecendo paulatinamente, além da sua repressão aos excessos dos foliões, não se vê muito problema nas liberalidades carnavalescas. As camisinhas, o policiamento ostensivo, a ordenação do trânsito, eis as medidas tomadas pelo Leviatã. O problema real, ao qual quis chegar desde que iniciei esta pequena reflexão, é outro. O carnaval foi engendrado para ser uma válcula de escape para a efetivação dos naturais desejos pelo prazer da condição humana, geralmente reprimidos em nome da ordem e estabilidade sociais, da mesma forma que o super-ego, as normais sociais captadas pelo indivíduo, reprime o inconsciente e o ego das pessoas. Em suma, o carnaval é uma exceção à normalidade, o enfraquecimento momentâneo do super-ego que permite ao ego realizar seus desejos, sem os quais o ser humano se tornaria deprimido, frustrado e mais sujeito a rebeldia contra a ordem social (afinal, com uma semana de alegrias, prazeres e liberalidades, é possível suportar o resto do ano de trabalho pesado, com uma das maiores cargas horárias do mundo, bem como partindo das piores remunerações da américa latina!). Afinal, uma sociedade de pura repressão moral faz acumular a tensão sexual que, um dia, explode.
O Brasil, contudo, transformou a regra em exceção. Operou-se uma carnavalização da sociedade, onde todos os limites morais vem sendo postos a baixo. Na política, onde a corrupção e o enriquecimento a base dos bens públicos era exceção, tornou-se regra senadores, deputados e governadores notoriamente corruptos, as viagens aos paraísos fiscais; na economia, a norma de hoje é a favorecimento de verdadeiras orgias ao setor bancário, agronegocial e industrial; na cultura, predomina a produção musical, literária e televisiva de baixa qualidade, apelativa, promíscua e massificada. O pior disso é a disseminação das festividades, baladas, shows de rua, quase diários, por todo o ano, nas grandes cidades, onde o sexo e as drogas são os símbolos da ausência de limites. Cada vez mais, o brasileiro vive em carnavais politicos, econômicos, culturais e mesmo diários, em festas sem fim. A carnavalização objetiva apenas ao prazer, a ausência de limites, à dança desenfreada, enquanto a sociedade e suas demandas e necessidades são deixadas ao léu. Nada mais merece seriedade, afinal, estamos continuamente em carnaval! O circo continua, em tempo permanente.
Os antológicos desfiles das escolas de samba são a grande representação da sociedade brasileira. O povo, geralmente favelados na periferia carioca, desfilam com fantasias padronizadas, em massa e em fileiras, sob as ordens dos organizadores. E, nos carros alegóricos, os ricos e famosos são expostos em escala piramidal, onde, no topo, estão aqueles considerados os estereótipos de beleza, fama e glória: as musas, Silvio Santos, Lula, atrizes, artistas diversos, cantores famosos. São carregados e pairam deificamente acima das pessoas comuns, exibindo sua beleza e poder; são o que todos são ensinados a querer ser, verdadeiros deuses e deusas gregas. Somos desiguais até nas festividades... e em lembrar que o carnaval original da idade média misturava ricos e pobres, unidos em torno da alegria, sem distinções
ou discriminações!
É como se estivessemos todos em um navio, mas, em vez de operá-lo, não parássemos de nos embriagar, copular e cantar. No leme, não há ninguém, nem mesmo os políticos; o barco vai onde o vento leva, enquanto todos buscam seus prazeres: o povo embriaga-se, os bancos lucram, o latifúndio exporta, a indústria impõe goela abaixo seus produtos ao povo e os políticos fazem acordos secretos e enriquecem da noite para o dia. E buscar o prazer é buscar um interesse pessoal, pondo-os acima dos da coletividade. É, em suma, o fim da cidadania. É a carnavalização da sociedade, onde cada um busca "o seu'', e todos os outros fazem a mesma coisa. É uma eterna festa, para o governo, povo e elites. O navio chamado Brasil? Ninguém se importa.
A festa é, contudo, seletiva. Afinal, alguém tem de trabalhar, o povo, que, só nos fins de semana e nas festanças mensais, pode almejar a dança das feras carnavalescas. O governo também tem de ter o mínimo de seriedade. Mas os cinco mil indivíduos que controlam metade do PIB do país estão em festa! Para que essa ideia de carnavalização não seja forçada, pense-se que ela constitui muito mais um ânimo, uma vontade, do que uma realidade: todos querem festejar sem parar, mas nem sempre o podem. É como o céu nublado, que ameaça sempre chover, por vários dias, mas não cai uma só gota; em compensação, quando a chuva desaba, o desastre é grande. Essa intenção, vontade, ânimo, em viver em eterno carnaval se faz transparecer em vários aspectos da sociedade. Mulheres nuas nas praias, novelas que tratam da liberação sexual, músicas que incitam o sexo e as drogas, o desejo por viagens, praias, sol, agitação. Em toda parte manifestamos nosso desejo, por todo o ano, em cair na folia e esquecer dos limites. O enfraquecimento da moral tradicional e o advento do relativismo pós-moderno só dão combustível a esses desejos.
Assim, a exceção tornou-se regra, e, no fim, trabalhamos e mantemos a ordem social apenas para que nos deem meios de cair nas festas do prazer. Tudo de forma bem hedonista e egoística. Longe de mim afirmar que isso é a causa de nossos problemas nacionais, mas ao menos, por triturar o sentimento de coletividade, impedem a necessária união para que sejam solvidas tais dificuldades, não?
O carnaval já foi a época onde aqueles que choravam o ano todo podiam sorrir, como bem o disse D. Helder Câmara. Mas hoje, esse sorriso se transformou em gargalhadas sinistras, que só ocultam uma sociedade podre, institucionalizam a indiferença para com o país e permite à mídia uma gorda fonte de lucros. O Brasil precisa compreender as festas devem ter um fim e que assuntos mais sérios, como a educação, precisam ser postos em pauta acima da busca pelo prazer. A belíssima tradição popular do carnaval precisa ser relembrada: a época onde as diferenças eram esquecidas, onde nobres e plebeus dançaram juntos e sem preocupação, fortalecendo os vínculos sociais, mas sem nunca esquecer de seus deveres para com suas famílias e valores: e é justamente esta mistura que ainda transparece no carnaval de hoje. Negros, brancos, indígenas, elementos de todas as etnias que formaram o país ali se encontram e, potencialmente, podem fundar a base cultural pela qual finalmente não nos dividiremos mais em ricos e pobres, mas nos uniremos sob o epíteto de "brasileiros''. A mistura pode fundar a unidade, sendo seu símbolo. A extravasão que não eclipsava a consciência de que, finda aquela semana, a vida voltava ao normal. E normal é tudo que o nosso carnaval eterno não é.
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