sábado, 30 de junho de 2012
Agradecimentos: mil visualizações em 3 meses!
Parcos e bravos leitores, chegamos a 1000 visualizações de página!
Hoje, poucos Blogs conseguiram emplacar mais de 100 visualizações, segundo o Google.
Queremos agradecer a todos os leitores, colaboradores e críticos do Blog. Aguardem a continuação sobre o ciclo de Regime Militar, a postagem mais vista, até hoje, do Blog.
Estamos chegado lá!
Um abraço.
As eleições em Garanhuns- Pelo fim da política pornográfica
Como cidadão de Garanhuns, e que ama sua terra, resolvi me posicionar a respeito das eleições municipais, logo após a convenções que definiram as candidaturas.
Garanhuns já foi uma das maiores economias de Pernambuco e do Nordeste, onde foi líder, na década de 1920, na produção café, exportado para a França. Após a crise de café, a cidade renasceu durante o auge do desenvolvimentismo no Brasil, com o governo de Souto Dourado, no início da década de 1960; indústrias se instalaram na região, onde grandes empreendimentos foram realizados, tendo por base uma sólida parceria com o governo estadual e federal. A Coca-Cola, a Parmalat e outras empresas ajudaram a dar um brilho especial à cidade, que chegou a ser um dos dez melhores municípios para se viver nos anos 1960, além do apresentar, também, um dos maiores índices de crescimento econômico. Mas os giros da política nacional e a ineficiência dos governos, nos últimos 20 anos, sepultaram as potencialidades da cidade e, ao fim, restaram à cidade poucas indústrias, um enorme índice de desemprego (mais de 25%), pobreza (que atingia 44% dos garanhuenses) e um crescimento econômico doente, sustentado pelo aumento dos gastos da prefeitura e pela especulação imobiliária.
Partindo desse cenário, as eleições municipais de Garanhuns são discutidas desde
2010. De lá para cá, dezenas de possibilidades foram discutidas, e até mesmo o
nome do deputado federal Fernando Ferro foi especulado. Mas, infelizmente,
depois de tanta discussão, o resultado foi bastante previsível: Izaias Régis
(PTB), tendo como sustentáculo políticos o PT e o PSB, é o candidato do
governador e, desde antes, já mostrou sua debilidade em construir alianças
políticas com este, já que, mesmo sendo deputado estadual por dois mandatos, foi
preterido, inicialmente, pela Frente Popular, que optou pelo nome de Antônio
João Dourado, numa das consequências oriundas do afastamento entre Armando
Monteiro e Eduardo Campos; Silvino Duarte, que driblou os impedimentos legais
que obstavam sua candidatura, optou por aproximar-se de seu velho afilhado, o
prefeito Luiz Carlos, e conta com o apoio do grosso dos vereadores, o que, por
sua vez, significa a continuidade do projeto político atualmente no poder. Por fim, Zé da Luz, que, sem recursos ou aliados, aparenta disputar a
prefeitura apenas com o intuito de pavimentar sua candidatura a deputado
estadual, em 2014.
Sob esse ponto de vista, caminhamos para uma situação
deplorável. O que se vê é uma ausência completa de projetos de governo e a
presença de frágeis alianças partidárias com os níveis estadual e federal de
governo. A maior prova deu-se durante a imposição da pré-candidatura de Antônio
Dourado.
As necessidades e demandas do povo de Garanhuns foram os
assuntos menos falados- antes, ignorados- no processo de formação das
candidaturas, onde os conchavos políticos visaram, tão somente, de um lado, a permanência de
uma casta política no poder (funcionários públicos, certos comerciantes e
ruralistas) e, do outro, a subordinação da cidade aos planos presidenciais da
Frente Popular (pelos quais até mesmo Jarbas Vasconcelos foi envolvido), de
maneira totalmente auto-referente e desconectada da vida diária de Garanhuns.
Em suma, a política garanhuense é a mera transposição de interesses pessoais
para a esfera pública, numa verdadeira colonização do espaço de discussão
política, que deveria tratar das necessidades coletivas, pela distribuição do
"bolo'' de receitas gerado pelo esforço da sociedade. É, por isso, uma
política pobre, miúda, criticada há mais de cem anos como "medieval'' por
Joaquim Nabuco, e que, em um artigo veiculado na UPE, em 2010, denominei "política pornográfica''. Pornográfica, por que se assenta em relações promíscuas e condenáveis, onde o eleitor vende seu voto por quem lhe oferecer as maiores vantagens; mas há uma dupla prostituição, já que o candidato também "vende'' favores- algo semelhante ao famoso "tráfico de influência''-, tanto às empresas que financiam suas campanhas- as empreiteiras e concessionárias de sempre, em Garanhuns- e, também, comercializa sua imagem. Por outro lado, o mesmo político vende seu apoio a outros da mesma classe (ou seria casta?) em troca de benesses...
Essa relação social entre eleitor-eleito, assim, acaba solidificando-se a base das meras aparências, onde desejos materiais, individuais e imediatistas, de ambos são satisfeitos, remetendo ao significado original de porneé, que, em grego, referia-se às prostitutas baratas da Grécia Antiga, e graficus, que quer dizer "imagem, aparência'': imagens de prostituas baratas, possuídas por qualquer um, e altamente apelativas. Não há valores ou regras, apenas o fato de que quem tem mais, leva, mas sem toque, sem conjunção carnal; o que se vendem são imagens políticas, sem nenhuma substância, que são meras ilusões de possessão (o mesmo efeito da pornografia), que vislumbram e distraem quem as vê, proporcionando-lhes um rápido prazer. Nesse sentido, a política pornográfica, baseada em imagens (que é o que são as vantagens cedidas pelos políticos aos "eleitores'') promíscuas e apelativas, tem o condão de domesticar o eleitor (lembra do pannis et circenses?), que satisfaz seus desejos individuais, criando uma relação de dependência entre aquele que se exibe e vende sua imagem (o político) e aquele que dela se beneficia (o eleitor). Assim também são construídas as alianças políticas em Garanhuns, negociadas às alcovas, que utilizam como moeda de pagamento- e isso é o que é mais grave- a distribuição dos recursos e cargos públicos!!
A partir daí, das candidaturas apresentadas, a que mais causa incômodo é a
de Silvino Duarte (ao lado, a casa dos horrores, formalmente chamada de "Câmara de Vereadores'', de Garanhuns). Apesar de seus tão propalados prêmios passados, onde foi
apontado como um dos grandes gestores públicos do país, Silvino foi o
articulador do modelo de governabilidade que vige em Garanhuns: amplas maiorias
na Câmara, sustentada com o loteamento da máquina pública por pessoas da
confiança dos vereadores ou de pessoas ligadas ao prefeito; condução de tímidas
obras públicas, "para o povo ver'', desintegradas de qualquer projeto
maior de desenvolvimento para a cidade; inatividade e quase total falta de
integração com as outras esferas de governo, com o isolamento político da
cidade; prosseguimento com a notória falta de investimento na educação e na
saúde, sucateadas e duramente mantidas com parcos recursos, acompanhadas pelo
corte severo de gastos sociais e, paradoxalmente, pelo aumento do custeio da
máquina pública, a segunda maior empregadora do município, após o setor do
comércio. O resultado desse modelo de gestão foi a estagnação da economia
garanhuense em um período pré-Lula, onde a cidade assistiu ao Brasil e ao resto
de Pernambuco, notadamente Caruaru, Arcoverde e Petrolina, darem um salto
econômico qualitativo e quantitativo.
Assim, as parcas vantagens oriundas dos serviços públicos são reservadas ao compadrio dos políticos, numa relação clientelista, por meio da qual se articulam bases eleitorais sólidas, mas totalmente anti-democráticas e excludentes; basta dizer que os pequenos favores, como marcação de consultas, doação de remédios, alimentos e mesmo de empregos (...) pelos políticos à segmentos reduzidos da população criaram um subsistema que drena os recursos públicos e, por outro lado, impede qualquer pressão popular por um governo desenvolvimentista. Quem não possui os contatos pessoais com os vereadores ou seus cabos eleitorais fica excluído da política, ora aceitando compra de seus votos, ora simplesmente ignorando os rumos que o município toma (ou deixa de tomar). Essas ligações de compadrio, "o subsistema de boas relações'', no jargão da antropologia, baseadas na amizade pessoal dos eleitores com os políticos, são o coração da estagnação da cidade: o sistema cria fortes fundamentos para manter-se, em estratos da própria população, em sua relação promiscua com a classe política, cujo auge de expressão se consagra no gravíssimo problema da histórica compra de votos em tempos de eleições; é um círculo vicioso, onde poucos eleitores e seus eleitos monopolizam a política municipal, excluindo o resto da população. Uma verdadeira oligarquia, em termos de ciência política, entre eleitores beneficiados pelos políticos, estando ambos voltados para a permanência do sistema, o que inibe qualquer formulação de um projeto de desenvolvimento, em um claro retorno ao sistema político vigente na República Velha (selecionar os eleitores e com eles manter uma relação promíscua foi a marca do período).
Ou seja, a política garanhuense se encontra em um estado pré-moderno, onde a gratidão aos políticos é o principal fator a influenciar os votos dos eleitores. Não se fala em ideias ou projetos, mas em vantagens a vender.
Não é preciso dizer que, para que
Garanhuns avance no tempo, é preciso destruir esse sistema. Criar instituições
sólidas, capazes de oferecer os servições públicos e gratuitos a toda a
população, de forma isonômica, são o antídoto para erradicar esse câncer e isso se traduz em: reformar a Lei Orgânica, garantindo mais celeridade no processo legislativo, e introduzir mecanismos de participação popular (e o orçamento participativo seria uma ótima
ideia), além de meios de contenção dos gastos com pessoal; elaboração de um Plano
municipal de Educação a longo prazo, que implante o piso nacional salarial dos
professores, instale a educação integral em conjunto com a qualificação técnica
dos estudantes, bem como preveja convênios com a UPE e UFRPE para o uso do enorme
potencial de seus alunos nas escolas integrais e como meios de erradicar o
vergonhoso analfabetismo endêmico na região; reestruturar os postos de saúde,
contratando novos profissionais, renegociando contratos e convênios mais
vantajosos com as fornecedoras de medicamentos, sem esquecer de reestruturar o Hospital Municipal e flexibilizar o regime de contratação para médicos e enfermeiros; articulação maior com as
esferas de governo estadual e federal, por meio da celebração de convênios para
urgentes obras de infraestrutura (algo que Garanhuns raramente consegue, pela
falta de projetos...), e com as demais prefeituras, no sentido de criar um
bloco político regional para encaçapar mais deputados estaduais e federais;
reformar as principais praças da cidade, dando-lhes um ar mais relacionado ao
das cidades frias; realizar mais eventos populares, culturais e musicais, seja
por meio de isenção fiscal a empresas ou grupo de empresas que o façam ou por
convênios com o governo estadual; reestruturar ou criar novas cooperativas de
agricultores e pecuaristas, lhes garantindo acesso ao PRONAF ou mesmo criando
um programa municipal de aumento da produtividade e disposição de assistência
técnica ao campo, por meio do uso do capital intelectual da UFRPE, na forma de
seus alunos e, por fim, elaborar um novo Código tributário municipal, prevendo
isenções fiscais para empresas que qualifiquem mão-de-obra, tenham ações
educacionais, empreguem determinado número de pessoas ou realizem eventos
culturais. Tudo isso, é claro, estruturado com o fim de consecução de metas nas diversas áreas (construção de 100 escolas, por exemplo; aumento do IDEB do município em dois pontos etc), em um projeto de longo prazo; qualificação, educação, assistência técnica, vantagens tributárias e parcerias com os demais entes federativos construiriam uma estrutura poderosa para a articulação de grandes empreendimentos privados na região, como as sonhadas indústrias e centros comerciais.
Enfim, seria o que eu cobraria de um candidato, para acabar
de uma vez por todas com essa crise geral que prende Garanhuns há mais de 16
anos ao atraso. Não são sonhos impossíveis... um dia, Curitiba, no Paraná, e Campinas, ou
mesmo Arcoverde, foram tão insignificantes quanto Garanhuns. E, através da superação de suas
fraquezas, conseguiram se tornar modelos para a gestão municipal brasileira. Esta cidade pode não só voltar a ser o que foi, mas voar muito mais alto: é hora de moralizar a política garanhuense com valores, e partir das imagens pornográficas da política para uma verdadeira relação substancial e estável entre o povo e o governo; em suma, os atuais (des)governantes devem permitir que o povo governe o que é dele, gerindo a Coisa Pública, e visar o bem da cidade, e não o dos próprios bolsos. Só
nos resta, então, discutir, e esperar que dessa vez o tempo, para Garanhuns,
volte a rodar.
sexta-feira, 22 de junho de 2012
Algumas sugestões musicais- Top 10
O gosto musical é uma das marcas da cultura humana. Praticamente todas as civilizações desenvolveram algum uso ritmado de sons, seja com fins religiosos ou para mero deleite, algo que, com a progressiva escalada técnica e científica da humanidade, vem se tornando mais predominante.
Hoje, essa herança cultural vem se intensificando cada vez mais (basta lembrar que, há cem anos, não havia rádio ou meios acessíveis de se ouvir música-os gramofones eram raros e caros-, a não ser ao vivo), e, cada vez mais, o gosto musical da pós-modernidade vem se degenerando, como sintoma da doença chamada relativismo-materialismo axiológico. Contudo, sem mais deliberações filosóficas, aí vão as indicações do Blog para os interlocutores que apreciam uma boa música, relaxante e reflexiva ao mesmo tempo: estudos comprovam que o tipo de música que você ouve influi no padrão de suas ondas cerebrais, tornando-as mais harmônicas e eficientes, melhorando o desempenho intelectual do ouvinte. Outras, por outro lado, obstruem as ondas cerebrais e tem como efeito "fazer com que não se pense'', e apenas se reproduza, corporalmente, o ritmo musical- ou seja, são músicas que, além de não agregar em nada o aporte cultural, ainda prejudicam as atividades cognitivas do indivíduo de mau-gosto que as ouve. Vamos a um pequeno Top 10 das músicas que aprecio- não necessariamente em ordem crescente ou decrescente de importância. Umas mais, outras menos, ajudaram a fundar a parca e frívola personalidade de quem vos escreve...
1- Chevaliers du Sang real- Hans Zimmer
Essa música foi o tema dos filmes "O Código da Vinci'' e "Anjos e demônios''. É ideal para a reflexão de temas filosóficos ou acadêmicos; sua gradação rítmica começa com uma melodia lenta que, ao seu desenvolvimento, se revela cada vez mais densa e monumental, transmitindo a sensação de que se está desenvolvendo o objeto de reflexão rumo à conclusões extraordinárias. A aventura do conhecimento, a delícia da descoberta, o vislumbre da Alheteia filosófica é uma música para quem deseja ver a luz. Seja ela qual for.
2- Linger- The Cranbierres
Apesar de aparentar ostentar uma letra relativamente simples- que conta a experiência amorosa de uma garota, a partir de seu primeiro beijo- o grande hit dos Cranbierres tem o condão de transmitir uma das mais fascinantes experiências da humanidade- a paixão amorosa- em sua melodia. Está nela presente o sentimento dual da paixão- a intensidade do amor e, por sua vez, toda a tristeza que resulta de sua maculação. O céu e o inferno do amor, presentes em uma música, pela qual é impossível não lembrar de alguém amado.
3- Arioso- J. S. Bach
Uma primeira impressão pode sugerir que essa música- obra-prima de Bach- tinha como tema o amor. Na verdade, trata-se de uma das passagens da grande obra de Bach, "A paixão de Cristo segundo S. Mateus'', quando o Mestre, em sua agonia no horto, anuncia seu sacrifício aos discípulos (inciando-se com a Santa Ceia). Toda a tristeza de Jesus e a dor de seu sacrifício- ademais, a esperança de sua vitória sobre a morte- estão carregadas na música, que inevitavelmente traz o ouvinte a seus próprios desafios; há sempre um bem maior pelo qual vale a pena sacrificar-se.
4- Canon em D maior- Pachelbel
Irmão de Bach, Pachelbel não fez tanto sucesso quanto este. Todavia, uma obra em particular, que permaneceu ignorada por quase dois séculos até ser redescoberta por músicos românticos do século XIX, retrata a Oração Eucarística solene, chamada "Cânon romano'', de maneira fantástica. Aqui, uma melodia suave, alegre e criativa expressa a união da Igreja, que se concretiza na corporificação de Deus- o pão, resultado do trabalho de todos, é partido igualmente para a coletividade, resultando na alegria (vinho), que é sangue purificador de Deus, que limpa a humanidade de seus pecados. Assim, diferentemente da sobriedade das demais músicas sacras, o Canon eleva o moral interior e, sobretudo, é uma das melhores músicas para o desenvolvimento de atividades cognitivas, sendo muito usada, na Europa, para ninar os bebês- sua melodia harmoniza os padrões cerebrais e permite um "plus'' em seu funcionamento.
5- My Immortal- Evanescence
Mais uma música emotiva. Como a maioria dos hits estrangeiros, sua letra não é atraente (que, mais uma vez, fala sobre as desventuras amorosas femininas), mas seu ritmo e embalo tristes suscitam possibilidades de grande reflexão. A maior parte dos seres humanos não morre sem ao menos uma decepção amorosa que lhes incomode em alguma medida- essa tristeza, de forma um pouco melosa, mas brilhantemente composta, é uma marca dessa música; há uma ideia de decadência sentimental que traz a lembrança do ouvinte sua própria vivência amorosa desastrosa. Amores impossíveis, rejeições, traições... quem nunca passou por isso?
6- Por una cabeza- Carlos Gardel
Sucesso na próspera Argentina da metade do século XX, Por una Cabeza é considerado o melhor tango de todos os tempos, "el tango de los tangos''. Tem como tema um dos mais populares hobbies mundiais da era de ouro do rádio- as apostas em cavalos- e sua relação com a mulher amada. Mais uma vez, a melodia, espetacularmente composta, transmite o fogo da paixão entre homem e mulher de uma maneira sumamente elegante; é um verdadeiro mergulho na atmosfera dos bairros burgueses de Buenos Aires, onde o romantismo de uma época de ouro da música portenha imperava. Esqueça Paula Fernades ou os pagodes desmiolados. O verdadeiro romantismo está aqui: a explosão, o olhar fulminante, o entrelace de corpos, a externalização dos desejos e a consumação do amor, tudo isso expresso da maneira mais elegante e bela já elaborada, por uma cabeça...
7- The Godfather Theme- Nino Rota
Filmes extraordinários são caracterizados por trilhas sonoras ainda melhores. Nesta composição de Nino- uma de minhas favoritas- parecem estar presentes duas melodias, onde uma delas nos traz ao velho sentimento de família, onde há um fundamento moral para nossas vidas, tão em falta nesses dias de hoje. Esse pilar moral, contudo, não é imune às corrupções oriundas do mundo externo, e, por mais poderosa que seja a família, por mais que a amemos, ela sempre se contamina com essas más-influências. Quem não ama sua família, mas reprova totalmente algumas de suas práticas, como expresso em "O poderoso chefão'', onde Michael resiste a entrar no mundo familiar, representado pelo seu pai, Don Vito Corleone? Tendemos inicialmente a rejeitar nosso lugar na família, procurando distância dela, talvez com a ilusão da independência e auto-afirmação. Mas, no fim, Michael (e todos nós, de certa forma) assume o lugar do pai, integrando-se a família e, mais que isso, dando-lhe seu toque pessoal, ao mesmo tempo dando continuidade às tradições que a caracterizam (a cultura siciliana, no caso do filme)- algo que é traduzido na música, quando o tema sinistro inicial é substituído, gradualmente, por uma valsa italiana: ao parar de lutar contra a família, mas a ela integrando-se, assumimos o lugar de nossos pais e encontramos o equilíbrio psicológico e afetivo que nos permite desenvolver nossas potencialidades rumo a um destino incrível- note-se que a valsa tem um tema não alegre, mas monumental, pelo qual o ser humano ascende a outro nível, como visto no caso de Michael, que leva o império da família a ser mais poderoso do que nunca. Então, aceitar nossa família (não importa quão doloroso seja) e nos entendermos como sucessores de pais, avós e bisavós- e não meramente ilhas afetivas que surgem do nada, mas como construtores da família -, iguais a eles, são as principais mensagens dessa música memorável.
8- Tempo Perdido- Legião Urbana
A medida em que o tempo passa, o olhar para o passado não nos deixa de vir a cabeça. Quem nunca especulou sobre o que faria, se tivesse mais tempo ou simplesmente já tivesse, em épocas vindouras, a experiência ou saber atuais? Renato Russo pensou nisso, certamente, quando compôs essa obra-prima do Rock nacional, onde a marcha irrefreável ao futuro diante do tempo perdido- o passado- é dada ao lado da pessoa amada. E nela o consolo pela perda do tempo e a incerteza do futuro é uma marca sensível, onde, também, descobre-se o próprio tempo em que devem viver- o presente. Amor, passado e futuro, incerteza, esperança ("mas tenho muito tempo... temos todo o tempo do mundo'', ou seja, o tempo inteiro do mundo para o amor e para amar) são as marcas dessa que foi, é e será a trilha sonora de muitas pessoas, não somente do ótimo filme "O Homem do Futuro'', que retrata perfeitamente o tema da música nas telinhas.
9- Dona da minha cabeça- Geraldo Azevedo
A música regional tinha de estar presente neste post. Entre tantas opções (gostaria de incluir aqui a produção de Luiz Gonzaga, Flávio José e Zé Ramalho, além de tantos outros) escolhi essa porque o artista foi o mais recente que ouvi. Uma música simples, com os ritmos do nordeste nela embutidos, além de sentimentos sumamente humanos, característicos da humildade do homem do interior, da terra e do gado. A alegria de admirar a beleza feminina- e, ademais, a humildade e boa-fé da moça que "não acredita'' que pode ser tão bonita a ponto de ser a dona da cabeça do um homem, algo em falta hoje em dia, onde nossas mulheres são exemplos de futilidade, superficialismo e egoísmo- é uma das marcas do homem nordestino, como a capacidade de admirar e produzir o belo a partir do simples; mais, eu diria que é o manejo do que é simples (os recursos naturais escassos), do humilde (as virtudes familiares e religiosas sem as quais a sociedade nordestina não seria possível), que torna o homem nordestino tão criativo, comunicativo, socializante, alegre e, por sua vez, produtor de grandes obras de arte, tendo a cultura nordestina como o verdadeiro museu ou exposição permanente da obra de arte que ela mesma é- talvez como forma de resistência diante da hostilidade do meio-ambiente sub-árido, com a mensagem de que, em condições extremas, o homem dá aquilo que é seu melhor. A beleza, sobretudo, é em especial admirada por nós nordestinos- a beleza do simples, daquilo que vira a cabeça dos homens e mulheres, em suma, o próprio amor. Quer algo mais bonito, e mais simples?
10- Cálice- Chico Buarque e Gilberto Gil
Apesar de pouco ouvir a MPB clássica, não poderia deixar de rankear uma amostra do ritmo aqui no top 10 do Blog. Da MPB relativamente debiloide e alienada dos atuais tempos quero distância...
A antiga MPB caracterizou-se pela árdua militância política e pela composição de letras de alto valor significativo, que absorveram as aspirações e angústias de uma geração que sofreu com o terrível "cale-se'' dado ao país pela ditadura militar. E é nesse contexto repressivo que a música é utilizada como arma contra a ditadura, ao driblar os censores, visando atingir o grande público através da alta ambiguidade das letras- sendo uma forma indireta de propagandear a queda da repressão e o retorno da democracia. Não só Chico e Gil, mas inúmeros artistas caracterizaram uma era onde a juventude possuia uma formação intelectual, ideológica e política muito superiores a dos tempos atuais- a comparação chega a ser vergonhosa para a atual juventude...-, motivo pelo qual rebelou-se contra o silêncio imposto pela ditadura e pegou em armas, em alguns casos, para derrubá-la. Essa juventude, brutalmente calada pelas baionetas dos militares, envelheceu, perdeu os antigos ideais ou morreu- ou morre, lentamente-, sendo substituída, paulatinamente, pelas gerações formadas sob a hegemonia da Rede Globo e do sistema educacional montado pela ditadura militar, o que eliminou os indivíduos intelectualizados, críticos, independentes e moralmente livres dos anos dourados da política estudantil. Todo um país emburreceu, conformou-se com a ditadura e, por sua vez, após a redemocratização formal, permitiu que os velhos vícios do regime continuassem a calar a sociedade. Hoje, os oligopólios midiáticos cortam as manifestações de protesto contra a ordem estabelecida; o governo continua a sucatear a educação, com os mesmos objetivos e, por fim, o capital continua com sua busca pela mão-de-obra barata e disciplinada. Não aparenta, assim, ter mudado muito a situação do país, embora a aparente liberdade moral e de expressão sejam marcas que distinguem os tempos presentes dos antigos, não sendo, nem de perto, potencializadoras da democracia; talvez mesmo sirvam como válvulas de escape (sexo livre, programas humorísticos, futebol a vontade, críticas pontuais ao governo...), simples interesses mórbidos, que disfarçam o silêncio do brasileiro ante às questões fundamentais da nação, talvez auto-imposto. O Brasil continua a emudecer diante do ensurdecedor eco do "cale-se'', cujo grito ecoou assustadoramente por todo o país, em 1964, que se traduz nas próprias consequências de 21 anos de uma ditadura brutal, cruel e intolerante. A regra, hoje, é devolver o grito com ainda mais força. Afinal, ninguém segura esse país, que vai pra frente, puxado por 190 milhões de semoventes em ação... "Pai, afasta de nós esse cale-se!''
Espero que tenham apreciado este pequeno Top 10. Se desejarem, podem efetuar críticas, sugestões ou simplesmente jogar uma conversa à fora comentando o post. A gente se vê por aqui...
terça-feira, 19 de junho de 2012
O Poderoso chefão
Pelos corredores do Congresso Nacional, a passos lentos e controlados, um senhor simpático desfila, há mais de 50 anos, em belos ternos italianos. Cumprimenta os porteiros, seguranças, agentes de limpeza e, com um aceno, saúda algum aliado pelos funestos corredores da Casa do povo. Sempre cercado por homens de terno, sorrindo, com seu sotaque nordestino se impondo, mesmo a partir de sua voz baixa e macia, de forma quase majestática, sobre os murmúrios daqueles que observam. Esse homem, um idoso de mais de 80 anos, é o homem-chave da política nacional: José Sarney de Araújo Costa. Nada melhor que o capo di tuti capi (poderoso chefão, na Máfia siciliana) do Maranhão para estrear mais uma série de nosso modesto Blog, já que, apesar de sua exposição frequente na mídia, poucos realmente sabem como Sarney entrou na política e como galgou os maiores postos da República. Vamos contar, resumidamente, a história daquele que, muitas vezes, teve o meu, o seu e o destino do país inteiro nas mãos.
Nascido no Maranhão, em 1930, José Ribamar Araújo da Costa (seu nome original), era filho de Sarney Costa, um desembargador modesto e, ademais, mulherengo, que devia o cargo aos favores políticos do governador do Maranhão à época, Victorino Freire. Sua mãe, Kyola, era uma mulher simples. Sarney pai devia o nome à gratidão do pai a um comandante inglês que visitara o Maranhão no início do século, que batizou seu primogênito com o nome do tal gringo: Sir Ney, que abrasileirou-se como "Sarney''. Apesar da família passar por dificuldades financeiras, Sarney Costa educou seu filho no Liceu de São Luís, um centro de educação de alta qualidade, durante os anos 40. De lá, o pequeno ingressou diretamente na Faculdade de Direito de São Luís, onde passou a fazer parte de um grupo literário famoso, pós-modernista, ao lado de Ferreira Gullar, Mário Quintana e outras grandes mentes da época. O maior sonho do jovem José Ribamar era integrar a Academia Maranhense de Letras, conhecida como a "Atenas brasileira'', veja só...
Durante seus estudos, José foi indicado, pelo pai, para um cargo no fórum, onde, já desiludido com as promessas de glórias literárias, passou a engendrar seus primeiros esquemas e articulações políticas. Era o responsável pelo sorteio dos processos a serem distribuídos, e, claro, realizou seus primeiros "negócios'' distribuindo os processos certos aos desembargadores certos. Antes de formar-se, foi nomeado assessor do governador Victorino, que viu grande futuro no filho do seu compadre Sarney Costa. Foi com o governador que José aprendeu a velha arte da política, principalmente sobre o funcionamento do fisiologismo, das brechas legais e, sobretudo, foi pelas suas mãos que foi iniciado no mundo das boas amizades da politica. José aprendeu tanto que, logo após formar-se, já casado, conseguiu se tornar quarto suplente de deputado federal, de onde, coma ajuda de seu "padrinho'' Victorino, esquadrinhou sua campanha própria, chegando ao Congresso Nacional pelo voto de 3000 maranhenses. Filiado à ala de esquerda da UDN, nosso herói era uma das figuras destacadas de oposição ao governo JK.
Correspondente de alguns jornais em São Luís, o recém-formado político- e recém casado- obteve a tão sonhada cadeira na Academia Maranhense de Letras, por alguns poemas feitos em honra de sua esposa. Na verdade, a satisfação dessa pequena vaidade foi de pouca valia para Sarney- que acompanhava, atentamente, os rumos da política nacional. A construção de Brasília inaugurou, para sua sorte, uma era caracterizada pela forte intervenção estatal na economia e em sua aliança com entes privados, e, mais que isso, caracterizado pelo aumento absurdo dos gastos públicos com obras e serviços de bem-estar, executados pela iniciativa privada, na figura das grandes empreiteiras. O esquema basilar da política nacional, baseado na lucrativa parceria dos políticos e de tais empresas, financiadoras de suas campanhas, estava em germinação.
O jovem José rapidamente fez contato com os grandes empresários interessados em executar obras para o governo, conseguindo, a partir de seus amigos de bancada da UDN, indicar as pessoas certas- para ele- para cargos-chave da administração pública. A troca de vantagens era simples: indicado pelo Executivo para um cargo de gerência ou chefia, o "beneficiado'' favorecia as empresas "certas'' em processos licitatórios, que, por sua vez, usavam a riqueza obtida- via superfaturamentos, remessas de lucros, sonegações fiscais- para financiar os políticos que serviram de ponte para o fechamento de novos e futuros contratos com a Administração pública. Assim, o sistema se reproduzia. E Sarney, aos poucos, tornou-se especialista na área.
Lentamente, Sarney articulou uma grande base de apoio, por meio da qual, cada vez mais, os interessados em cargos públicos de confiança- aqueles disponíveis nos "cabides'' da máquina pública- dependiam dele para obterem suas nomeações. Muitos políticos do Maranhão, para nomear as pessoas de sua confiança para os cargos adequados, recorriam a Sarney, já um habilidoso traficante- de influência, é claro. Essas articulações entre políticos, funcionários e empresas era complementada pela ação de José enquanto parlamentar, nas votações de importantes projetos de lei- concedentes de benefícios fiscais, emendas parlamentares ao orçamento (o "negócio'' mais lucrativo depois das licitações)- onde era um poderoso articulador nos bastidores das discussões.
Após 12 anos como parlamentar, nosso herói acompanhou, após o golpe de 1964 (ao qual apoiou vigorosamente, compondo a recém-formada ARENA, sustentáculo político da jovem ditadura), sua grande chance de sair do dito "baixo clero'' da câmara dos deputados surgir. Aproveitou os tempos de crise e agitação política, onde os militares procuravam apoiadores civis para suas políticas de ajuste fiscal e, posteriormente, de crescimento econômico. Sarney era, assim, aos olhos dos militares, um homem com as conexões políticas necessárias- entre os demais políticos e os empresários, assustados com o Golpe- para o estabilização do Regime e a asseguração de maiorias parlamentares sólidas, além de ser absolutamente confiável (entenda-se: não era um subversivo comunista). Foi assim que o então presidente da República, o Marechal Humberto Castelo Branco, já amigo de Sarney de outras épocas, apoiou a candidatura de José ao governo do Estado do Maranhão, contra a coligação orientada por Victorino Freire, seu mestre na política. Dessa vez, o aluno superou seu mestre: Sarney forjou intrigas (pediu ao então coronel Figueiredo que ameaçasse de cassação o então governador e seu candidato, ambos indicados por Victorino; logo, o tal candidato resolveu esnobar o coronel, lançando-se sozinho, sem o apoio nem de Victorino ou do governador) que resultaram num racha político entre Victorino e seu candidato ao governo, que, sem alternativa, lançou-se sozinho na campanha, já contra outro candidato apoiado por Vic. Aproveitando a divisão dos inimigos- "dividir para conquistar''- e com o apoio dos militares, José Ribamar vence a eleição. Sua vitória, apesar dos podres conchavos que a sustentavam, foi entusiasticamente saudada pelo povo maranhense. Em sua posse, filmada pelo cineasta Glauber Rocha, Sarney prometeu uma democracia de oportunidades, investimentos da indústria, geração de empregos, combate à fome, construção de hospitais. O povo foi a loucura, imortalizado pelo cineasta no documentário "Maranhão 66''. Veja abaixo:
Glauber ficou fascinado pela ousadia do jovem de 36 anos e pelo seu carisma popular. Pouco depois, Sarney mostraria ao que veio. Espertamente, antes de candidatar-se ao governo, sabia que os militares iniciariam um programa de altos investimentos na região norte, sobretudo na região oeste do Maranhão (o Projeto Carajás), centro do Pará e alto Amazonas; mobilizando seus contatos em Brasília e a bancada da UDN, José articulou a vitória das empresas "aliadas'' nos bilionários processos de construção de hidrelétricas na região norte. Tais empreiteiras remuneraram muito bem os serviços do governador. A Camargo Correia e a Odebrecht são bons exemplos dessa lucrativa parceria e, com a aliança de Sarney, passaram a monopolizar (até hoje) os contratos de obras públicas em todo o país.
Por outro lado, a proliferação de empresas estatais gerou um grande número de cargos públicos passíveis de nomeação, tanto no governo estadual quanto na cúpula federal. E Ribamar- nessa época, já havia retirado o seu segundo nome- participava e indicava a maioria dos nomes. Logo, a empresa de energia do Maranhão- a CEMAR- estaria sob seu comando. O contrato da maior empresa produtora de alumínio brasileiro- Alumar- com o governo, para a obtenção de energia barata (o alumínio consome muita energia), foi negociado por Sarney e por seus agentes. E, a partir desse poder acumulado, o governador foi estendendo seus tentáculos rumo ao topo do setor energético nacional, onde até hoje determina o nome do ministro de minas e energia (uma exceção foi Dilma Roussef) e do presidente da Eletrobrás (sem contar a ANEEL, Furnas, Light...).
O governador Sarney ganhou milhões de dólares com o setor energético, sendo essa sua principal fonte de lucros, mas apenas o primeiro tripé de seu esquema de dominação política. O segundo foi a opção preferida das elites nacionais, concentração de terras terras. E ele fez isso por meio da Lei estadual de Terras, de 1969: pequenos proprietários foram desapropriados (literalmente, tiveram suas terras penhoradas por novos impostos não pagos ou pela cobrança dos antigos) e isenções fiscais foram dadas às grandes propriedades. O governo estadual, ao longo de duas décadas, foi tomando as terras dos camponeses e leiloando-as a grandes grupos econômicos, que lucraram com o apoio do governo, a mão-de-obra barata e os corredores de exportação de commodities produzidas no latifúndio. A crueldade da concentração fundiária- que não era até então um problema no Maranhão- resultou na diáspora de mais de 1 milhão de maranhenses pelo pais, que fugiram da pobreza, da fome (já que sem agricultores e terras para cultivar alimentos, a oferta destes diminui e seu preço aumenta, prejudicando sobretudo as classes populares) e da perseguição dos latifundiários. Quem ficou foi para as cidades ou se sujeitou a um regime de semi-escravidão nas fazendas de arroz, exportado para o resto do país a preço baixo.
O próprio Sarney, por meio de laranjas, adquiriu suntuosos latifúndios- e, até mesmo, uma ilha inteira.
Ao sair do governo, no início dos anos 70, Sarney foi eleito senador e comandou, por anos, o ARENA, seguindo fielmente as ordens dos generais presidentes e estendendo sua influência a todo o país. Recebia ligações dos governadores nordestinos, de políticos diversos, dos militares, embaixadores, grandes empresários interessados em seu enorme- e, há quem diga, seu maior atributo- e infinito poder de nomear as pessoas certas para os cargos certos. Por fim, o último tripé, segundo Palmério Dória, do império nada-secreto de José Sarney, foram as telecomunicações: dezenas de rádios e os dois únicos canais de televisão do Maranhão- dentre eles, a Tv Mirante, afiliada da Rede Globo- são "propriedade'' sua, um pequeno presente dos generais e, posteriormente, do próprio Sarney a si mesmo, quando distribuiu mais de mil concessões de radio-televisão a parlamentares em troca do apoio destes ao alongamento de seu mandato presidencial.
Sim, ele estava em todas, nos anos 80. Seus filhos já estavam crescidos, formados e atuantes nos esquemas do pai: a mais velha, Roseana, era assessora sua em Brasília, onde dava festas monumentais- regadas a muita bebida e jogos de azar, nos quais é viciada- com seu marido Murad; Zequinha Sarney, posteriormente, seria ministro do meio ambiente de FHC e deputado federal; e, finalmente, Fernando Sarney, treinado por ninguém menos que Paulo Maluf, iria suceder o pai na articulação dos esquemas de corrupção sob o império da família Sarney.
Foi durante essa época em que, viajando pelo mundo, Sarney fez amigos na política internacional, posando de intelectual e lançando seus livros no mercado- o que lhe garantiu um lugar na Academia Brasileira de Letras, contra o ex-colega Mário Quintana. Em uma conferência mundial, na cidade de Nova York, Sarney conheceu Ana Maria Roiter, a mais bela repórter da Globo na cidade, que gentilmente recusou o senador quando este, um pouco bêbado, assediou-a, batendo-lhe a porta do quarto de hotel na cara. "O senador delirava só em pensar sobre a realização de sua mais íntima fantasia- uma bela lambida no dedão do pé'', disse Palmério Dória em "Honoráveis bandidos'', uma irônica biografia sobre o senador.
Mas tudo bem. Afinal, não se pode ganhar sempre.
Com seus dividendos seguros na Suiça ou em nome de laranjas, Sarney dedicou-se a exercer o papel de articulador-mor da politica nacional. Nessa época, a ditadura, da qual era um filho querido, estava morrendo, pela mãos das Diretas Já e da irreversível redemocratização- e, Sarney, como bom filho, abreviou a dor de sua querida mãe e deu-lhe um tiro de misericórdia, ao apoiar Tancredo Neves contra Maluf, de seu próprio partido, durante as eleições indiretas ao Planalto, em 1984. Foi o vice na chapa, fundando, com Marco Maciel e outros políticos que abandonaram a ditadura, o PFL. Mas um triste acontecimento mudaria para sempre o seu destino e o do Brasil.
Sarney não esperava subir mais na vida. Na verdade, estava desesperadamente- como outros figurões do ARENA- tentando salvar-se do barco furado da ditadura e ingressar no regime democrático em uma posição confortável, no recém-criado PDS. Não imaginava que, após a vitória de Tancredo, este seria gravemente internado um dia antes da posse e, poucas semanas depois, pereceria. O medo dos militares, ainda no poder, de ver a ascensão de Ulysses Guimarães em uma possível eleição direta os fez apoiar aquele a quem já haviam renegado como traidor- Sarney. Nem nos seus melhores sonhos, o já imortal da Academia Brasileira de Letras imaginaria envergar o tradicional smoking do chefe da nação e, em uma cerimônia simples, cingir a faixa de Presidente da República.
A ditadura terminou pelas mãos de um dos seus filhos. Sarney assumiu rapidamente seu velho discurso populista, logo durante a posse, prometendo acabar rapidamente com a inflação, reestruturar o país, pagar a dívida externa herdada dos militares (a maior do mundo), construir escolas e hospitais país a fora- tudo conversa fiada. Seu artificial e perigoso plano econômico- o Cruzado-, que congelou os preços ascendentes, lhe garantiu aquele que ainda hoje (mesmo depois de Lula) foi o maior índice de popularidade dos presidentes da República (92%, em 1986). Apesar dos graves problemas gerados pelo plano, Sarney insistiu em mantê-lo em vigor até as eleições, quando sua base aliada venceu em 21 dos 23 estados brasileiros e lhe garantiu uma pesadíssima maioria no Congresso. Ele estava livre para, finalmente, moldar o novo Brasil à sua imagem e semelhança.
O presidencialismo de coalizão, depois da Constituição de 1988 (da qual, a contragosto, foi o convocante) foi sua maior herança política ao país. O complexo jogo de alianças, troca de favores, negociamento de cargos e emendas ao orçamento, favorecimento de empreiteiras em processos licitatórios e nomeações negociadas aos cargos-chave da República foram estendidos a todo o país e profundamente enraizados no Planalto Central, onde ainda hoje são a alma da política brasileira- o fisiologismo.
Após a maior vitória de sua vida, Sarney sofreu derrotas. O rumo da Assembleia constituinte fugiu-lhe do controle- para nosso alívio-; o Cruzado teve de ser revogado, ocasionando a volta da hiperfinflação, jamais derrotada até 1994; lideranças políticas despontavam ao criticá-lo; a população revoltou-se, derrubando sua popularidade para a pior da história da República. Pelo país, os bancos imprimiam dinheiro a torto e a direito- por meio dos títulos da dívida-, a máquina pública era loteada de cargos, a inflação atingiu o maior nível da história brasileira e, por fim, o governo pediu moratória da Dívida pública, um vexame internacional sem precedentes. Os barões da federação- governadores estaduais- dominavam a política, financiando despesas correntes com receitas de capital (empréstimos), explodindo os gastos em fim de mandato para deixar ao sucessor uma terra arrasada. Enfim, Sarney lançou o país no delicioso caos.
No fim, nenhum candidato às eleições de 1989 se filiou ao governo. Sarney, contudo, já havia obtido mais um ano na presidência, de onde articulou sua candidatura ao Senado, pelo Amapá (um estado recém-criado), onde jamais havia pisado, numa das eleições mais hediondas desde a República velha. Em um último golpe, quase emplacou a candidatura de Silvio Santos ao Planalto- uma manobra abortada, a tempo, pelo Judiciário.
Odiado pelo povo, aos gritos de "Sarney, salafrário, tá roubando meu salário, Sarney, ladrão, Pinochet do Maranhão'', nosso herói exilou-se em sua mansão no Maranhão, permanecendo na moita enquanto Collor era derrubado e FHC elegia-se presidente. Como tinha de reorganizar o país (e desfazer a obra de Sarney, caracterizada pela farra com a Coisa Pública), o novo presidente precisou de uma sólida maioria parlamentar e, claro, ninguém melhor que Sarney para lhe garantir isso. Logo, ao lado dos velhos companheiros do ARENA- agora PFL- pelo PMDB- ao qual se filiara em 1989-, José comandou o Senado e garantiu a FHC que suas reformas fossem aprovadas. Sua força permaneceu igual, e, já em 1994, elegeu sua filha Roseana Sarney governadora do Maranhão. Em 2002, articulou a candidatura dela à presidência do país, na qual era líder nas pesquisas. Isso até José Serra acionar a Polícia Federal, que descobriu malotes de dinheiro na empresa de Roseana em São Luís, na operação Linus. E o sonho da família de voltar ao Planalto acabou.
Na última década, publicando novos romances, Sarney resolveu se conformar com o cargo não-oficial de manda-chuva da política nacional, usando seus velhos super-poderes de indicação de nomes a cargos públicos (usada como moeda de troca com o governo, na consecução das maiorias parlamentares destinadas ao apoio dos programas de governo). Assim, a articulação das maiorias parlamentares, atingida pela distribuição de cargos públicos e emendas ao Orçamento pelas forças políticas atuantes no Congresso Nacional é o coração do poder de José Sarney; nenhum governo subsistirá sem o seu apoio. Seguindo sempre o mesmo modus operandi, fez novas experiências, como o apoio a Lula, tradicional oponente, em seus dois governos, mantendo seu poder absoluto sobre o ministério de Minas Energia- não enquanto Dilma esteve na pasta, porém- e intacto seu infinito poder de nomear. Seus filhos, contudo, foram alvo de dezenas de operações da PF, sendo Fernando Sarney quase preso, em 2009.
Contudo, Zé sofreu uma grande derrota, com a vitória de Jackon Lago nas eleições estaduais maranhenses de 2006, sob Roseana; ora, em "seu'' estado, um esquerdista venceu! Contudo, mobilizando seu poder, Sarney conseguiu a anulação da vitória com base em falsas acusações, e, por meio de uma aberração jurídica, a posse da filha, para cumprir menos de um ano de mandato restante. No comando da máquina, Roseana seria reeleita governadora do Maranhão em 2010.
A família de Sarney crescia, contudo, com netos, apadrinhados, primos, irmãos e até conhecidos de esquina sendo empregados pela máquina estatal. O vice-governador atual de Roseana - chamado de "Carcará''- comanda os mafiosos propriamente ditos, responsáveis pela solução violenta dos problemas da família. Nas telecomunicações, a Tv Mirante continua nas mãos da família, junto com dois jornais e dezenas de rádios. Acrescente-se a isso os inumeráveis cargos públicos ocupados pelos "servidores'' da família, até mesmo no Senado (vide o escândalo dos atos secretos, em 2009, que quase derrubou Sarney do comando do Senado). Terras, mansões, conventos centenários (transformados em mausoléus, onde um busto de ouro de Sarney aguarda em um túmulo ricamente decorado sua morte), contas na Suiça e um verdadeiro exército de dependentes- desde uma enfermeira qualquer de um postinho de saúde comum da periferia de São Luís, à presidência da Eletrobrás, passando por eleições de políticos do baixo clero, indicação de ministros diversos e mesmo os conchavos que apoiam o próprio presidente da República- sustentam seu poder cinquentenário; os presidentes passam, desde os anos 60, mas Sarney e seu exército mafioso permanecem no poder, dando as cartas. No Maranhão, o poder do império da família é palpável: pode-se ir ao colégio José Sarney, pela Avenida Sarney Costa, passando pela ponte Kyola Sarney; verificar as contas públicas, no Tribunal de Contas Roseana Sarney; ser internado no Hospital Regional José Sarney; ou, ainda, reclamar contra os desmandos da família mafiosa no fórum Sarney Costa, através da sala de Defensoria Pública José Sarney...
O que concluir com essa estafante e pequena biografia?
A história de um homem explica muito sobre a história de um país. Em Sarney, percebemos que o vínculo com a história colonial (Victorino), a ação dos militares, a aliança com as grandes empresas e, sobretudo, a sorte (a virtú de Maquiavel?) conduziram, em boa parte, o Brasil nesses 50 anos de atuação sarneyziana. Este homem, outrora nobre e literato, se tornou o líder que fundaria a política do século XXI no país- inconvenientemente calcada na corrupção, violência e incompetência. Populista, manipulador, sedento de poder a absurdamente bem relacionado- um verdadeiro artista que soube jogar com os desejos dos homens de poder e valer-se deles para subir na política-, José Sarney é a cara do Brasil patrimonialista e patriarcalista, que bebeu das fontes do colonialismo, do império, das oligarquias, do estadonovismo, terceira república e, finalmente, da ditadura militar; personifica cada elemento negativo da história do país em sua figura imponente. Ele é, e sempre será enquanto respirar, o poderoso chefão da política brasileira- o verdadeiro padrinho do setor energético, da máquina pública, dos latifúndios e das telecomunicações. Bon giorno, don Sarney.
Correspondente de alguns jornais em São Luís, o recém-formado político- e recém casado- obteve a tão sonhada cadeira na Academia Maranhense de Letras, por alguns poemas feitos em honra de sua esposa. Na verdade, a satisfação dessa pequena vaidade foi de pouca valia para Sarney- que acompanhava, atentamente, os rumos da política nacional. A construção de Brasília inaugurou, para sua sorte, uma era caracterizada pela forte intervenção estatal na economia e em sua aliança com entes privados, e, mais que isso, caracterizado pelo aumento absurdo dos gastos públicos com obras e serviços de bem-estar, executados pela iniciativa privada, na figura das grandes empreiteiras. O esquema basilar da política nacional, baseado na lucrativa parceria dos políticos e de tais empresas, financiadoras de suas campanhas, estava em germinação.
O jovem José rapidamente fez contato com os grandes empresários interessados em executar obras para o governo, conseguindo, a partir de seus amigos de bancada da UDN, indicar as pessoas certas- para ele- para cargos-chave da administração pública. A troca de vantagens era simples: indicado pelo Executivo para um cargo de gerência ou chefia, o "beneficiado'' favorecia as empresas "certas'' em processos licitatórios, que, por sua vez, usavam a riqueza obtida- via superfaturamentos, remessas de lucros, sonegações fiscais- para financiar os políticos que serviram de ponte para o fechamento de novos e futuros contratos com a Administração pública. Assim, o sistema se reproduzia. E Sarney, aos poucos, tornou-se especialista na área.
Lentamente, Sarney articulou uma grande base de apoio, por meio da qual, cada vez mais, os interessados em cargos públicos de confiança- aqueles disponíveis nos "cabides'' da máquina pública- dependiam dele para obterem suas nomeações. Muitos políticos do Maranhão, para nomear as pessoas de sua confiança para os cargos adequados, recorriam a Sarney, já um habilidoso traficante- de influência, é claro. Essas articulações entre políticos, funcionários e empresas era complementada pela ação de José enquanto parlamentar, nas votações de importantes projetos de lei- concedentes de benefícios fiscais, emendas parlamentares ao orçamento (o "negócio'' mais lucrativo depois das licitações)- onde era um poderoso articulador nos bastidores das discussões.
Após 12 anos como parlamentar, nosso herói acompanhou, após o golpe de 1964 (ao qual apoiou vigorosamente, compondo a recém-formada ARENA, sustentáculo político da jovem ditadura), sua grande chance de sair do dito "baixo clero'' da câmara dos deputados surgir. Aproveitou os tempos de crise e agitação política, onde os militares procuravam apoiadores civis para suas políticas de ajuste fiscal e, posteriormente, de crescimento econômico. Sarney era, assim, aos olhos dos militares, um homem com as conexões políticas necessárias- entre os demais políticos e os empresários, assustados com o Golpe- para o estabilização do Regime e a asseguração de maiorias parlamentares sólidas, além de ser absolutamente confiável (entenda-se: não era um subversivo comunista). Foi assim que o então presidente da República, o Marechal Humberto Castelo Branco, já amigo de Sarney de outras épocas, apoiou a candidatura de José ao governo do Estado do Maranhão, contra a coligação orientada por Victorino Freire, seu mestre na política. Dessa vez, o aluno superou seu mestre: Sarney forjou intrigas (pediu ao então coronel Figueiredo que ameaçasse de cassação o então governador e seu candidato, ambos indicados por Victorino; logo, o tal candidato resolveu esnobar o coronel, lançando-se sozinho, sem o apoio nem de Victorino ou do governador) que resultaram num racha político entre Victorino e seu candidato ao governo, que, sem alternativa, lançou-se sozinho na campanha, já contra outro candidato apoiado por Vic. Aproveitando a divisão dos inimigos- "dividir para conquistar''- e com o apoio dos militares, José Ribamar vence a eleição. Sua vitória, apesar dos podres conchavos que a sustentavam, foi entusiasticamente saudada pelo povo maranhense. Em sua posse, filmada pelo cineasta Glauber Rocha, Sarney prometeu uma democracia de oportunidades, investimentos da indústria, geração de empregos, combate à fome, construção de hospitais. O povo foi a loucura, imortalizado pelo cineasta no documentário "Maranhão 66''. Veja abaixo:
Glauber ficou fascinado pela ousadia do jovem de 36 anos e pelo seu carisma popular. Pouco depois, Sarney mostraria ao que veio. Espertamente, antes de candidatar-se ao governo, sabia que os militares iniciariam um programa de altos investimentos na região norte, sobretudo na região oeste do Maranhão (o Projeto Carajás), centro do Pará e alto Amazonas; mobilizando seus contatos em Brasília e a bancada da UDN, José articulou a vitória das empresas "aliadas'' nos bilionários processos de construção de hidrelétricas na região norte. Tais empreiteiras remuneraram muito bem os serviços do governador. A Camargo Correia e a Odebrecht são bons exemplos dessa lucrativa parceria e, com a aliança de Sarney, passaram a monopolizar (até hoje) os contratos de obras públicas em todo o país.
Por outro lado, a proliferação de empresas estatais gerou um grande número de cargos públicos passíveis de nomeação, tanto no governo estadual quanto na cúpula federal. E Ribamar- nessa época, já havia retirado o seu segundo nome- participava e indicava a maioria dos nomes. Logo, a empresa de energia do Maranhão- a CEMAR- estaria sob seu comando. O contrato da maior empresa produtora de alumínio brasileiro- Alumar- com o governo, para a obtenção de energia barata (o alumínio consome muita energia), foi negociado por Sarney e por seus agentes. E, a partir desse poder acumulado, o governador foi estendendo seus tentáculos rumo ao topo do setor energético nacional, onde até hoje determina o nome do ministro de minas e energia (uma exceção foi Dilma Roussef) e do presidente da Eletrobrás (sem contar a ANEEL, Furnas, Light...).
O governador Sarney ganhou milhões de dólares com o setor energético, sendo essa sua principal fonte de lucros, mas apenas o primeiro tripé de seu esquema de dominação política. O segundo foi a opção preferida das elites nacionais, concentração de terras terras. E ele fez isso por meio da Lei estadual de Terras, de 1969: pequenos proprietários foram desapropriados (literalmente, tiveram suas terras penhoradas por novos impostos não pagos ou pela cobrança dos antigos) e isenções fiscais foram dadas às grandes propriedades. O governo estadual, ao longo de duas décadas, foi tomando as terras dos camponeses e leiloando-as a grandes grupos econômicos, que lucraram com o apoio do governo, a mão-de-obra barata e os corredores de exportação de commodities produzidas no latifúndio. A crueldade da concentração fundiária- que não era até então um problema no Maranhão- resultou na diáspora de mais de 1 milhão de maranhenses pelo pais, que fugiram da pobreza, da fome (já que sem agricultores e terras para cultivar alimentos, a oferta destes diminui e seu preço aumenta, prejudicando sobretudo as classes populares) e da perseguição dos latifundiários. Quem ficou foi para as cidades ou se sujeitou a um regime de semi-escravidão nas fazendas de arroz, exportado para o resto do país a preço baixo.
O próprio Sarney, por meio de laranjas, adquiriu suntuosos latifúndios- e, até mesmo, uma ilha inteira.
Ao sair do governo, no início dos anos 70, Sarney foi eleito senador e comandou, por anos, o ARENA, seguindo fielmente as ordens dos generais presidentes e estendendo sua influência a todo o país. Recebia ligações dos governadores nordestinos, de políticos diversos, dos militares, embaixadores, grandes empresários interessados em seu enorme- e, há quem diga, seu maior atributo- e infinito poder de nomear as pessoas certas para os cargos certos. Por fim, o último tripé, segundo Palmério Dória, do império nada-secreto de José Sarney, foram as telecomunicações: dezenas de rádios e os dois únicos canais de televisão do Maranhão- dentre eles, a Tv Mirante, afiliada da Rede Globo- são "propriedade'' sua, um pequeno presente dos generais e, posteriormente, do próprio Sarney a si mesmo, quando distribuiu mais de mil concessões de radio-televisão a parlamentares em troca do apoio destes ao alongamento de seu mandato presidencial.
Sim, ele estava em todas, nos anos 80. Seus filhos já estavam crescidos, formados e atuantes nos esquemas do pai: a mais velha, Roseana, era assessora sua em Brasília, onde dava festas monumentais- regadas a muita bebida e jogos de azar, nos quais é viciada- com seu marido Murad; Zequinha Sarney, posteriormente, seria ministro do meio ambiente de FHC e deputado federal; e, finalmente, Fernando Sarney, treinado por ninguém menos que Paulo Maluf, iria suceder o pai na articulação dos esquemas de corrupção sob o império da família Sarney.
Foi durante essa época em que, viajando pelo mundo, Sarney fez amigos na política internacional, posando de intelectual e lançando seus livros no mercado- o que lhe garantiu um lugar na Academia Brasileira de Letras, contra o ex-colega Mário Quintana. Em uma conferência mundial, na cidade de Nova York, Sarney conheceu Ana Maria Roiter, a mais bela repórter da Globo na cidade, que gentilmente recusou o senador quando este, um pouco bêbado, assediou-a, batendo-lhe a porta do quarto de hotel na cara. "O senador delirava só em pensar sobre a realização de sua mais íntima fantasia- uma bela lambida no dedão do pé'', disse Palmério Dória em "Honoráveis bandidos'', uma irônica biografia sobre o senador.
Mas tudo bem. Afinal, não se pode ganhar sempre.
Com seus dividendos seguros na Suiça ou em nome de laranjas, Sarney dedicou-se a exercer o papel de articulador-mor da politica nacional. Nessa época, a ditadura, da qual era um filho querido, estava morrendo, pela mãos das Diretas Já e da irreversível redemocratização- e, Sarney, como bom filho, abreviou a dor de sua querida mãe e deu-lhe um tiro de misericórdia, ao apoiar Tancredo Neves contra Maluf, de seu próprio partido, durante as eleições indiretas ao Planalto, em 1984. Foi o vice na chapa, fundando, com Marco Maciel e outros políticos que abandonaram a ditadura, o PFL. Mas um triste acontecimento mudaria para sempre o seu destino e o do Brasil.
Sarney não esperava subir mais na vida. Na verdade, estava desesperadamente- como outros figurões do ARENA- tentando salvar-se do barco furado da ditadura e ingressar no regime democrático em uma posição confortável, no recém-criado PDS. Não imaginava que, após a vitória de Tancredo, este seria gravemente internado um dia antes da posse e, poucas semanas depois, pereceria. O medo dos militares, ainda no poder, de ver a ascensão de Ulysses Guimarães em uma possível eleição direta os fez apoiar aquele a quem já haviam renegado como traidor- Sarney. Nem nos seus melhores sonhos, o já imortal da Academia Brasileira de Letras imaginaria envergar o tradicional smoking do chefe da nação e, em uma cerimônia simples, cingir a faixa de Presidente da República.
A ditadura terminou pelas mãos de um dos seus filhos. Sarney assumiu rapidamente seu velho discurso populista, logo durante a posse, prometendo acabar rapidamente com a inflação, reestruturar o país, pagar a dívida externa herdada dos militares (a maior do mundo), construir escolas e hospitais país a fora- tudo conversa fiada. Seu artificial e perigoso plano econômico- o Cruzado-, que congelou os preços ascendentes, lhe garantiu aquele que ainda hoje (mesmo depois de Lula) foi o maior índice de popularidade dos presidentes da República (92%, em 1986). Apesar dos graves problemas gerados pelo plano, Sarney insistiu em mantê-lo em vigor até as eleições, quando sua base aliada venceu em 21 dos 23 estados brasileiros e lhe garantiu uma pesadíssima maioria no Congresso. Ele estava livre para, finalmente, moldar o novo Brasil à sua imagem e semelhança.
O presidencialismo de coalizão, depois da Constituição de 1988 (da qual, a contragosto, foi o convocante) foi sua maior herança política ao país. O complexo jogo de alianças, troca de favores, negociamento de cargos e emendas ao orçamento, favorecimento de empreiteiras em processos licitatórios e nomeações negociadas aos cargos-chave da República foram estendidos a todo o país e profundamente enraizados no Planalto Central, onde ainda hoje são a alma da política brasileira- o fisiologismo.
Após a maior vitória de sua vida, Sarney sofreu derrotas. O rumo da Assembleia constituinte fugiu-lhe do controle- para nosso alívio-; o Cruzado teve de ser revogado, ocasionando a volta da hiperfinflação, jamais derrotada até 1994; lideranças políticas despontavam ao criticá-lo; a população revoltou-se, derrubando sua popularidade para a pior da história da República. Pelo país, os bancos imprimiam dinheiro a torto e a direito- por meio dos títulos da dívida-, a máquina pública era loteada de cargos, a inflação atingiu o maior nível da história brasileira e, por fim, o governo pediu moratória da Dívida pública, um vexame internacional sem precedentes. Os barões da federação- governadores estaduais- dominavam a política, financiando despesas correntes com receitas de capital (empréstimos), explodindo os gastos em fim de mandato para deixar ao sucessor uma terra arrasada. Enfim, Sarney lançou o país no delicioso caos.
No fim, nenhum candidato às eleições de 1989 se filiou ao governo. Sarney, contudo, já havia obtido mais um ano na presidência, de onde articulou sua candidatura ao Senado, pelo Amapá (um estado recém-criado), onde jamais havia pisado, numa das eleições mais hediondas desde a República velha. Em um último golpe, quase emplacou a candidatura de Silvio Santos ao Planalto- uma manobra abortada, a tempo, pelo Judiciário.
Odiado pelo povo, aos gritos de "Sarney, salafrário, tá roubando meu salário, Sarney, ladrão, Pinochet do Maranhão'', nosso herói exilou-se em sua mansão no Maranhão, permanecendo na moita enquanto Collor era derrubado e FHC elegia-se presidente. Como tinha de reorganizar o país (e desfazer a obra de Sarney, caracterizada pela farra com a Coisa Pública), o novo presidente precisou de uma sólida maioria parlamentar e, claro, ninguém melhor que Sarney para lhe garantir isso. Logo, ao lado dos velhos companheiros do ARENA- agora PFL- pelo PMDB- ao qual se filiara em 1989-, José comandou o Senado e garantiu a FHC que suas reformas fossem aprovadas. Sua força permaneceu igual, e, já em 1994, elegeu sua filha Roseana Sarney governadora do Maranhão. Em 2002, articulou a candidatura dela à presidência do país, na qual era líder nas pesquisas. Isso até José Serra acionar a Polícia Federal, que descobriu malotes de dinheiro na empresa de Roseana em São Luís, na operação Linus. E o sonho da família de voltar ao Planalto acabou.
Na última década, publicando novos romances, Sarney resolveu se conformar com o cargo não-oficial de manda-chuva da política nacional, usando seus velhos super-poderes de indicação de nomes a cargos públicos (usada como moeda de troca com o governo, na consecução das maiorias parlamentares destinadas ao apoio dos programas de governo). Assim, a articulação das maiorias parlamentares, atingida pela distribuição de cargos públicos e emendas ao Orçamento pelas forças políticas atuantes no Congresso Nacional é o coração do poder de José Sarney; nenhum governo subsistirá sem o seu apoio. Seguindo sempre o mesmo modus operandi, fez novas experiências, como o apoio a Lula, tradicional oponente, em seus dois governos, mantendo seu poder absoluto sobre o ministério de Minas Energia- não enquanto Dilma esteve na pasta, porém- e intacto seu infinito poder de nomear. Seus filhos, contudo, foram alvo de dezenas de operações da PF, sendo Fernando Sarney quase preso, em 2009.
Contudo, Zé sofreu uma grande derrota, com a vitória de Jackon Lago nas eleições estaduais maranhenses de 2006, sob Roseana; ora, em "seu'' estado, um esquerdista venceu! Contudo, mobilizando seu poder, Sarney conseguiu a anulação da vitória com base em falsas acusações, e, por meio de uma aberração jurídica, a posse da filha, para cumprir menos de um ano de mandato restante. No comando da máquina, Roseana seria reeleita governadora do Maranhão em 2010.
A família de Sarney crescia, contudo, com netos, apadrinhados, primos, irmãos e até conhecidos de esquina sendo empregados pela máquina estatal. O vice-governador atual de Roseana - chamado de "Carcará''- comanda os mafiosos propriamente ditos, responsáveis pela solução violenta dos problemas da família. Nas telecomunicações, a Tv Mirante continua nas mãos da família, junto com dois jornais e dezenas de rádios. Acrescente-se a isso os inumeráveis cargos públicos ocupados pelos "servidores'' da família, até mesmo no Senado (vide o escândalo dos atos secretos, em 2009, que quase derrubou Sarney do comando do Senado). Terras, mansões, conventos centenários (transformados em mausoléus, onde um busto de ouro de Sarney aguarda em um túmulo ricamente decorado sua morte), contas na Suiça e um verdadeiro exército de dependentes- desde uma enfermeira qualquer de um postinho de saúde comum da periferia de São Luís, à presidência da Eletrobrás, passando por eleições de políticos do baixo clero, indicação de ministros diversos e mesmo os conchavos que apoiam o próprio presidente da República- sustentam seu poder cinquentenário; os presidentes passam, desde os anos 60, mas Sarney e seu exército mafioso permanecem no poder, dando as cartas. No Maranhão, o poder do império da família é palpável: pode-se ir ao colégio José Sarney, pela Avenida Sarney Costa, passando pela ponte Kyola Sarney; verificar as contas públicas, no Tribunal de Contas Roseana Sarney; ser internado no Hospital Regional José Sarney; ou, ainda, reclamar contra os desmandos da família mafiosa no fórum Sarney Costa, através da sala de Defensoria Pública José Sarney...
O que concluir com essa estafante e pequena biografia?
A história de um homem explica muito sobre a história de um país. Em Sarney, percebemos que o vínculo com a história colonial (Victorino), a ação dos militares, a aliança com as grandes empresas e, sobretudo, a sorte (a virtú de Maquiavel?) conduziram, em boa parte, o Brasil nesses 50 anos de atuação sarneyziana. Este homem, outrora nobre e literato, se tornou o líder que fundaria a política do século XXI no país- inconvenientemente calcada na corrupção, violência e incompetência. Populista, manipulador, sedento de poder a absurdamente bem relacionado- um verdadeiro artista que soube jogar com os desejos dos homens de poder e valer-se deles para subir na política-, José Sarney é a cara do Brasil patrimonialista e patriarcalista, que bebeu das fontes do colonialismo, do império, das oligarquias, do estadonovismo, terceira república e, finalmente, da ditadura militar; personifica cada elemento negativo da história do país em sua figura imponente. Ele é, e sempre será enquanto respirar, o poderoso chefão da política brasileira- o verdadeiro padrinho do setor energético, da máquina pública, dos latifúndios e das telecomunicações. Bon giorno, don Sarney.
domingo, 17 de junho de 2012
O que é pós-modernidade?
Bem-vindos ao caos da pós-modernidade
Toda ação humana, ao menos em princípio, objetiva um fim. Não fugindo a essa regra, também aqui nos destinamos a um fim, ao refletir, periodicamente, sobre certos temas pertinentes à juventude pós-moderna; aliás, esse é o público-alvo de nossas postagens, não no sentido de reafirmar os valores de tal época histórica, mas de oferecer uma alternativa viável ante a tais princípios que, justamente por seu relativismo, posam de valores absolutos.
Dessa forma, cabe aqui esclarecer-se o termo "pós-modernidade''. Dizem os filósofos que tal signo designa a era na qual o pensamento humano foge aos princípios do modernismo, buscando sua superação; ou, simplesmente, trata-se do tempo posterior à modernidade. Essa, por sua vez, baseia-se no humanismo e no empirismo, tendo herdado, ao mesmo tempo, a tradição filosófica de Platão e Aristóteles e, por outro, assentar-se sob a epistemologia de Descartes e Francis Bacon. A ideia básica é que, por meio de um método de conhecimento, pode-se descrever objetos de estudo tais como eles são e, assim, dominá-los, a fim de utilizá-los para fins próprios da humanidade. Crê-se, sobretudo, na razão instrumental como o elemento que ordena o universo; ou, melhor, a razão é o meio de descoberta do sentido apriorístico da realidade. Tanto Descartes quanto Bacon dizem que, por meios racionais, pode-se distinguir o verdadeiro do falso. O segundo, contudo, diz ser o conhecimento dos fatos empíricos (ou fenômenos da natureza) o único conhecimento possível.
A metodologia científica da modernidade é, assim, baseada na filosofia da consciência- o indivíduo, através da razão, desvela a ordem e o sentido da realidade, que lhe são dados a priori (daí o pensamento ser pressuposto da existência), que é classificada em conceitos abstratos. O sujeito individual, assim, usa a linguagem como mero ente entre o sujeito e o objeto que transmite suas essências. O conhecimento é, assim, uma operação individual e engendrada na mente do sujeito.
A metodologia científica da modernidade é, assim, baseada na filosofia da consciência- o indivíduo, através da razão, desvela a ordem e o sentido da realidade, que lhe são dados a priori (daí o pensamento ser pressuposto da existência), que é classificada em conceitos abstratos. O sujeito individual, assim, usa a linguagem como mero ente entre o sujeito e o objeto que transmite suas essências. O conhecimento é, assim, uma operação individual e engendrada na mente do sujeito.
O modernismo centra a humanidade, como um todo, como o elemento que dá sentido ao universo e aos valores morais (embora toda a ordem da natureza e o embasamento ético dos valores tenham como pilar a existência de Deus- "o relógio pressupõe um relojoeiro''), e como a destinada a um futuro glorioso (A "Nova Atlântida'' de Bacon), atingido pela plena dominação da natureza. Conhecendo as leis físicas regentes dos fenômenos naturais, o homem poderia manipulá-la a seu favor e, com isso, dominar a natureza, deixado de ser um mero ser frágil diante de tais fenômenos e, por meio de seu controle, garantir a escalada rumo a um futuro glorioso e utópico. Esse viés filosófico, contudo, via o constante debate entre racionalistas (que acreditavam ser o conhecimento uma dádiva do raciocínio humano, sob hegemonia da dedução lógica) e empiristas (que pensavam ser o conhecimento autêntico oriundo da experiência).
No campo da política, a mesma divergência refletia-se. As novas teorias do Direito Natural, que agora é fruto da razão (mesmo que criado por Deus, que, nesse sentido, não pode alterá-lo) afirmam que a razão humana pode dar ao homem leis naturais, genéricas, universais e imutáveis; os próprios valores morais são universalizáveis. Contudo, enquanto os empiristas, como Hobbes, afirmaram o relativismo moral e creram no pensamento humano como um fenômeno empírico (pensar era movimentar-se, para ele).
Assim, no campo da moral, os valores continuaram a ostentar um conteúdo imutável e universal (o homem deve libertar-se da natureza). Essa cruzada de libertação e racionalização geral da sociedade (oriunda do método cartesiano, onde qualquer objeto poderia ser dividido em partes, reconfigurado, enumerado da escala mais simples à mais complexa e dotado de ordem) gerou um pensamento político onde o Estado deveria ser limitado pela vontade dos cidadãos e, por outro lado, seus poderes componentes, visando o equilíbrio da unidade política, deveriam ser desconcentrados e sistematizados, para evitar o excesso e garantir a liberdade natural dos cidadãos. A politica era vista como um objeto que, tal como natureza, teria um equilíbrio a ser atingido pela divisão de suas funções (no caso do Estado, legislar, governar e julgar) em mãos distintas, segundo regras distintas. O Estado liberal, constitucional e assentado na Separação dos três poderes é o reflexo do chamado "projeto iluminista'' sobre a política.
Visando evitar mais divagações sobre a modernidade, escolhi para representá-la seu maior filósofo, o home que hegemoniza o pensamento moderno, resolvendo seus embates teóricos e consolidando seus postulados. Kant.
Kant parte da epistemologia como base da construção de seu sistema de pensamento. Em sua obra, digladiam-se empiristas e racionalistas, sem que se opte por nenhuma de suas correntes; na verdade, a opção kantiana é por um "caminho do meio'': o conhecimento é realmente iniciado pela experiência, mas todo conhecimento só é possivel pela presença de mecanismos racionais a priori de apreensão do conhecimento. Esses mecanismos são anteriores à experiência sensível e reorganizam, na subjetividade do indivíduo, o objeto de estudo, para que este se torne inteligível; o tempo, a causalidade, o espaço, diz Kant, são exemplos de tais mecanismos. O que há é uma verdadeira reconfiguração do objeto (a matéria adquire uma forma inteligível), por meio das formas puras da razão. Aqui, empirismo e racionalismo se fundem em uma unidade dialética. O que é apreendido pelo homem é apenas a aparência do objeto (fenômeno), permanecendo a coisa em si (noumeno) incognoscível.
Seguindo esse mesmo raciocínio, Kant afirma também existir, no campo da moral (e, consequentemente, da política e do direito), mecanismos racionais a priori. Logicamente, pressupõe-se que o homem é livre para realizar suas opções morais, mas apenas opções morais racionalmente desejáveis, que realizem a liberdade apriorística do homem. O homem dá-se ordens que tem como fim a realização da própria liberdade ("imperativos categóricos''), neles embutidas; essas ordens são racionalmente desejáveis quando podem se tornar universais (quando qualquer homem poderia dá-las a si mesmo para realizar a própria liberdade; por exemplo, qualquer homem escolheria, racionalmente, não mentir). Assim, esses imperativos que o homem dá-se são universais na medida em que são racionalmente desejáveis, não portando um conteúdo específico, apenas uma forma que permite distinguir o desejável em termos morais do imoral e indesejável. No direito, essa fórmula se repete, mas em nível coletivo: a população dá ordens a si mesma, objetivando realizar a própria liberdade por meio de imperativos que são fins em si mesmo. Por realizarem a liberdade da sociedade (o conceito de direito), também objetivam permitir a co-existência de arbítrios (a justiça, segundo Kant), sendo, por isso, ordens coercitivas, que podem obrigar os dissidentes a seguirem as definições da maioria; o limite da liberdade é a própria liberdade, onde a invasão de um na liberdade alheia é repreendida por meio da aplicação de sanção. O único direito natural do homem é ser livre. O homem, assim, para realizar sua liberdade, deve organizar-se em um Estado baseado na separação dos três poderes e adequar sua conduta ao que for resolvido pela maioria.
Esses imperativos da maioria se consolidam na forma de leis abstratas, comandos impessoais que se dirigem a todos. Pode-se, admite Kant, legislar sobre tudo e simplesmente dar uma solução para cada caso concreto de dissídio judicial (legalismo).
Por fim, a razão pura (epistemologia) funde-se à razão prática (política, moral e direito), na forma dos mecanismos racionais a priori, que fundam uma moral formalista universal, fundada pelo consenso da maioria. O império desta e sua transformação em centro emanador de imperativos morais é um dos pilares da modernidade, ao lado da dominação da natureza pela razão e da filosofia da história progressista em Kant, no fim, a humanidade derrotará o misticismo e se dirigirá a um futuro de liberdade e justiça, garantida pelo domínio da natureza.
As teorias positivistas, contudo, retomam o naturalismo empirista e "engavetam'' Kant até quando os pensadores europeus o "redescobrem'', na vigorosa luta contra a semiótica e o existencialismo.
Kant levou ao auge a Modernidade. Depois dele, teorias filosóficas se insurgiram contra a hegemonia do projeto iluminista, em uma rebelião emanada de três centros distintos: a filosofia de Nietzsche, as teorias da linguagem e a fenomenologia existencialista. Isso, claro, sem citar a crítica marxista à modernidade (considera-se aqui que Marx é um continuador do projeto iluminista, aplicando todos seus postulados).
Apesar da coisa em si ser incognoscível, a realidade é a reconstrução do objeto; é aparência. O desejo de ver as coisas como elas realmente são- como no filme "Matrix''-, contudo, ainda permanece no pensamento positivista, vigorosamente combatido pelo pós-modernismo.
Tais teorias tem em comum a ideia básica de que é impossível descrever o objeto de estudo tal como ele é, já que sua reconstrução mental é uma verdadeira criação dele. Cada homem, individualmente, é o centro significador do universo e da moral, e é verdadeiramente livre, no sentido em que pode dar-se quaisquer valores sem qualquer limitação. A razão é apenas um discurso dentre os possíveis e a dominação da natureza não guia o homem rumo ao progresso necessariamente (podendo destruir a humanidade, como ocasionado na ascensão do nazi-fascismo e da bomba atômica).
A vontade da maioria perde status após ela mesma suicidar-se, na década de 1930, ao referendar a instalação de regimes totalitários. O homem deve existir no mundo e, a partir de suas escolhas, construir sua própria essência.
Por outro lado, a moral tradicional é vista como um estorvo escravizante, imposta por escravos inferiores como meio de consolação ante suas desgraças; imposta aos ricos, que ignoram a "lei da seleção'' da natureza, onde os melhores devem esmagar os mais fracos e realizar todas suas vontades, pelos pobres do passado. Mais que isso, a moral cristã-platônica herdada por Kant (que é visto como um fraudador da liberdade; se tenho que escolher o que é racional para os outros, não para mim, como serei livre?) não possui mais um conteúdo definido e imutável ou mesmo uma forma imutável, componente de um mundo metafísico, mas como simples falácia.
Nietzsche diz que o homem deve libertar-se da moral metafísica e irreal dada pela vontade da maioria e fundada em Deus para se tornar a verdadeira fonte dos valores, do conhecimento e da moral, tornando-se um "super-homem'', ao negar a realidade (niilismo) e externalizar toda a sua natureza (o gosto pelos prazeres carnais, injustamente repelidos pela moral cristã; a competição e vitória dos mais aptos, sem elevar-se ao mesmo nível dos ricos os "humildes''). Ou seja, faça o quiser, siga seus instintos, entregue-se à irracionalidade! Com Deus "morto'', o fundamento de obrigatoriedade da ciência (que pressupõe ser Deus o ordenador da realidade que o método científico desvela, em Descartes) e dos valores morais some, deixando o homem livre para seguir suas próprias vontades.
A redução do mundo à linguagem teve, por outro lado, consequências devastadoras. Dizem os semióticos de que a linguajem não é um terceiro ente que se interpõe entre o sujeito e o objeto, mas a condição de possibilidade do conhecimento- é ela quem constrói, subjetivamente, o mundo, sendo sua função descritiva uma mera possibilidade de uso. É o uso da linguagem em seus contextos específicos, em combinações convencionais, que constrói a comunicação e mesmo o mundo ao redor do indivíduo. Na verdade, o próprio mundo é reconstruído na mente do indivíduo a partir da interpretação dos jogos da linguagem- o ser, como em Kant, permanece incognoscível, enquanto o ente, ou para Husserl, o fenômeno, é o que é interpretado pelo homem. O último vai mais longe e diz que a essência dos objetos está na mente do indivíduo, em sua interpretação subjetiva.
Alguns dizem que o mundo é ininteligível ou que o conhecimento é impossível por causa dos defeitos da linguagem. Por outro lado, a história humana não é governada por leis específicas, muito menos a sociedade- a realidade não possui um sentido dado a priori, e a humanidade marcha em sua sina em meio ao caos.
Na pós-modernidade, filha de tais pensadores, não existem valores absolutos dados pela vontade da maioria, a ciência não pode descrever objetos como eles são (pela linguagem ser vaga e ambígua, portadora de vários significados- e, essencialmente, pelo objeto ser reconstruído pelo observador, segundo suas preferências subjetivas), a dominação da natureza pode conduzir ao desastre, a velha moral é uma forma de escravização, a verdade é individual, a essência é determinada pela existência. Busca-se cada vez a mais completa individualização, onde as verdades são íntimas de cada um. O homem enquanto ser individual dá sentido ao mundo e o conhece de forma totalmente diversa dos demais, não podendo comunicar essa diferenciação por causa do caráter incognoscível se sua subjetividade. Não existe sentido a priori, valores a priori ou mesmo vontade da maioria. As ilusões da modernidade, com sua filosofia da história progressista, são belas relíquias do passado, e a história caminha irracionalmente, em um mundo caótico.
Reconheceu algo em comum? Sim, a pós-modernidade é o nosso mundo. Um mundo que dissolveu os valores abstratos e genéricos, que destruiu as verdades absolutas e se esforça para tornar cada um senhor absoluto de sua vida. Talvez o único valor absoluto seja a determinação do homem somente por ele mesmo. Há um igualitarismo total, como já deve ter percebido.
O homem vitruviano, símbolo da modernidade, é uma representação cabível à pós-modernidade: o homem como o centro significador do universo, mas, dessa vez, sem verdades, de qualquer ordem, generalizantes
O que pouco se discute, em Filosofia, é a relação conveniente entre o sistema pós-moderno e o atual sistema econômico neoliberal e globalizado. A única determinação real que o homem dá-se é para determinar uma pauta individual de consumo, o que esconde a verdade inconveniente de que o próprio homem torna-se um produto a ser vendido.
A verdade é que pouco importa se não podemos descrever a realidade tal como ela é, pela impropriedade da linguagem. Pouco importa se o significante gera um significado convencional e não válido por si, ou que cada homem é o centro significador do universo. A verdade inconveniente escondida pelos "profetas'' do pós-modernismo é que suas ideias, como o modernismo, também não respondem as dúvidas humanas e vêm se tornando um desastre cada vez maior, engendrando uma sociedade cada vez mais violenta, desigual e destrutiva.
O complexo da pós-modernidade, com suas glorificações da liberdade existencial, encaixa-se perfeitamente em uma realidade sócio-econômica onde uma única Lei universal ainda é válida e necessária ao sistema: a Lei do Mercado, que é a norma da competição. Muito ao estilo de Nietzsche, não acha? O mesmo homem que exortava os "superiores'' a desprezar a moral cristã e esmagar os pobres, se esse fosse seu desejo. Em diversas obras, o bom filósofo sifilítico denominou tal ideia "lei da seleção'', interpretada pelos nazistas como uma uma seleção racial; desnecessário dizer que figura de Nietzsche foi glorificada na Alemanha hitlerista.
O superindividualismo da pós-modernidade faz o homem ver a si mesmo como uma ilha. Uma ilha que, sem relação com as outras, morre asfixiada. Por outro lado, a pós-modernidade revela sua rejeição total à democracia, resultando em um verdadeiro vale-tudo onde as vontades individuais se sobrepõem e as relações sociais, por isso, se desagregam (a lei da seleção nietzschiana). A preferência pela realização dos desejos carnais (o que é natural na espécie humana, como Nietzsche notou, dando-lhe o epíteto de "lei natural'', a lei do sexo, injustamente limitada pela moral cristã-platônica) se externaliza no consumo- o superhomem pós-moderno é, na verdade, um escravo de si mesmo, na forma de seus prazeres, e do sistema que acaba por sustentar quando realiza tais prazeres.
Os valores se materializaram em objetos de consumo, um feito inédito na história humana!
Nesse ponto, a grande charada da pós-modernidade é que vive-se em um sistema que garante a liberdade moral de todos, mas apenas de forma aparente, visando condicionar, por meio da mídia e de outros meios, cada homem rumo à realização do prazer, por meio do consumo, associado à felicidade e à inclusão social. Valores morais genéricos são danosos à essa "lógica'', porque têm o papel de limitar as possibilidades de realização do prazer, que se encarna da Lei do Mercado. Assim, aparentemente livre, o homem pós-moderno fica preso na gaiola do sistema neoliberal capitalista, pronto para ser mais um objeto de consumo do próprio sistema. Nada melhor para dominar os escravos, do que dizer-lhes que eles são livres.
Os valores se materializaram em objetos de consumo, um feito inédito na história humana!
Nesse ponto, a grande charada da pós-modernidade é que vive-se em um sistema que garante a liberdade moral de todos, mas apenas de forma aparente, visando condicionar, por meio da mídia e de outros meios, cada homem rumo à realização do prazer, por meio do consumo, associado à felicidade e à inclusão social. Valores morais genéricos são danosos à essa "lógica'', porque têm o papel de limitar as possibilidades de realização do prazer, que se encarna da Lei do Mercado. Assim, aparentemente livre, o homem pós-moderno fica preso na gaiola do sistema neoliberal capitalista, pronto para ser mais um objeto de consumo do próprio sistema. Nada melhor para dominar os escravos, do que dizer-lhes que eles são livres.
Ao lado, a figura representa a individualidade do ser humano diante dos seus semelhantes; livre, ao passo em que todos parecem iguais, sente-se autorizado a oprimir seus semelhantes e "forçá-los'' a serem livres. A multidão, contudo, caminha a um único fim: a alienação coletiva nas mãos do sistema autosuficiente, ao buscar a realização de seus prazeres
Como romper esses últimos grilhões? Como libertar o homem se si mesmo, da ditadura dos prazeres que, na verdade, esconde tirania de um sistema econômico que impõe os valores- ou desvalores- pós-modernos como absolutos?
Discutir alternativas à pós-modernidade é um dos objetivos das reflexões que fazemos aqui. E é o que esperamos fazer, daqui para a frente, com sua participação. E vamos lá.
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