Já há um certo tempo se busca resgatar a memória de uma das maiores chacinas da República Velha e da cidade de Garanhuns. Quem passeia pelas ruas calmas e frescas da cidade das flores não imagina que, há 100 anos exatos, uma centena de jagunços, cabras e matadores varreram o município em uma onda de vingança quase cinematográfica. Quando um destacamento policial finalmente desembarcou, vindo do Recife, e a poeira baixou, dezenas de mortos lotavam a Igreja matriz da cidade. Dentre as baixas estavam alguns jagunços e, em lugar de destaque, as maiores lideranças políticas de Garanhuns.
A matança teve como germe fundamental uma rivalidade local espelhada em uma rivalidade regional e uma eleição contestada. O Conselheiro Rosa e Silva, antigo monarquista, era o principal adversário político do General Dantas Barreto, e o Estado de Pernambuco inteiro viu-se obrigado a tomar um ou outro lado. Em Garanhuns, as famílias Jardim, Miranda e aliadas eram "rosistas''; já a família Brasileiro e aliadas apoiavam Dantas Barreto. Basicamente, não existiam grandes divergências ideológicas entre os oponentes, pelo menos do ponto de vista de Garanhuns, embora a eleição municipal para prefeito de 1916 fosse fortemente contestada pela oposição, que publicava notas na imprensa da capital denunciando o "rei da terra'', o Coronel Júlio Brasileiro, e sua a "família imperial''. Ambos os lados, contudo, representavam o poderio dos latifundiários cafeicultores e das grandes casas de comércio e, para sobreviver, se renderam às políticas de alianças sub-regionais e oligárquicas que era a alma da Velha República.
O duplo extermínio, que começou com a morte do chefe da família Brasileiro, prosseguiu com o assassinato em massa dos seus opositores e terminou com a fuga ou prisão dos demais apoiadores e parentes dos Brasileiro gerou um vácuo de poder em Garanhuns. Foram décadas de reconstrução, onde as movimentações políticas se tornaram mais ideológicas e homens não diretamente ligados às famílias tradicionais começaram a ascender. Depois da crise do café em 1929, as cabeças pensantes da cidade começaram a imaginar que a cidade possuía outros potenciais.
Ao lado, JK em Garanhuns: anteriormente prestigiada pelo esforço de suas lideranças, hoje a cidade é esquecida
Esse "pensamento diferenciado'' alçou voo a partir dos anos 1950. Garanhuns viveu um movimento de industrialização e modernização acelerados. Quando o presidente da República símbolo desse período de renovação, Juscelino Kubitschek, visitou a cidade em fins dos anos 50, a revista Cruzeiro já listava Garanhuns como um dos municípios que mais progredia no Brasil. Já no início dos anos 1960, a mente fértil de Luiz Souto Dourado, um dos maiores líderes da história da cidade, lançou as bases para lançar Garanhuns em outro patamar. E não eram poucas essas bases. Crédito de fomento, apoio às cooperativas, instalação de dezenas de indústrias. Até fábrica de relógio suíço existia na terra de Simoa.
Com Souto e seus aliados, Garanhuns tinha voz no poder Legislativo estadual e nacional. Foi assim até meados dos anos 80, quando algo foi lentamente mudando no Brasil e no mundo, com a queda do desenvolvimentismo. Por exaurimento, as velhas lideranças foram morrendo ou se aposentando e Garanhuns caiu exatamente na situação que gerou a Hecatombe: o transplante de rivalidades regionais para a órbita municipal.
Com alarde, a imprensa de 1950 anunciava que Garanhuns seria o início da luta pela recuperação do Nordeste. Esta luta foi revertida pelos que estão no poder atualmente.
Como em 1917, os anos 1990 apresentaram duas correntes políticas: uma contrária ao grupo comandante do governo do Estado e outra favorável. Quando Miguel Arraes foi reeleito pela terceira vez governador, a rivalidade aumentou. De um lado, o ex-prefeito Ivo Amaral, com larga popularidade e contrário a Arraes, se lançou contra o candidato apoiado pelo então prefeito Bartolomeu Quidute, Silvino Duarte, com a benção de Arraes. O resultado da histórica eleição de 1996 foi, como em 1917, fortemente contestado pelos derrotados. Pairava no ar a suspeita de que "os precatórios de Arraes'' haviam garantido a vitória de Silvino.
Verdade ou não, o período inaugurado por Silvino rompeu com a tradição política da cidade. Os rompimentos se estenderam desde à uma postura bairrista por parte do prefeito ao rompimento com seu mentor político, o ex-prefeito Quidute. De lá para cá, Silvino foi reeleito, elegeu o sucessor (o ex-prefeito Luiz Carlos) que rompeu com o mentor e se reelegeu. Se vê claramente que a eleição de 1996 marcou uma nova forma de fazer política em Garanhuns: bairrista (onde se passou a desprezar a construção de bancadas estaduais e federais de Garanhuns em Recife e Brasília, em detrimento do apoio a políticos "forasteiros'' em nome de interesses pessoais do grupo político dominante), com um estilo personalista fraco (centrado na figura do prefeito, mas pela falta de força e liderança deste, seus apoiadores acabam se voltando contra ele, como foi o caso do rompimento entre Luiz Carlos e Silvino), formadores de amplas maiores na Câmara (claramente transformada em extensão do poder Executivo municipal através dos "favores'' prestados pelos vereadores com verbas e cargos públicos a suas bases eleitorais), condutores de obras de infraestrutura "para inglês ver'' (sim, são aquelas ruas que estão sempre "em processo de saneamento'' à cada dois anos!) e, o que é pior, total compromisso com o status quo da cidade. Traduzindo: é uma política voltada a beneficiar quem estava em alta nos anos 1990 (empresários empreiteiros e concessionários, comerciantes tradicionais, especuladores imobiliários), através da perpetuação no poder de um mesmo indivíduo que, entretanto, acabava sendo sempre traído pelos "sucessores''.
A nova "Hecatombe'' se deu quando, apesar de um natural de Garanhuns se tornar presidente da República por longos 8 anos, a cidade pouco se mobilizou, por seus líderes, para aproveitar tal oportunidade. A opção política preferencial foi por um isolamento político da cidade conjugado com o apoio irrestrito de prefeitos e vereadores à lideranças forasteiras que nunca trouxeram um níquel ou uma emenda parlamentar que seja para Garanhuns. As indústrias se foram, os empregos também, a miséria explodiu e os indicadores sociais da cidade das Flores rivalizavam com o de países da África subsaariana. A "Hecatombe'' prosseguiu com desindustrialização, total abandono do homem do campo, criação de barreiras a empreendimentos como o shopping center e à instalação da FAMEG, tudo para que os interesses politiqueiros dos líderes da cidade, que cumpriam ordens dos seus "aliados'' que ocupavam o governo do Estado (a aliança PMDB/DEM/PSDB); estes últimos viam Garanhuns apenas como seu curral eleitoral ocasional. As benesses, como indústrias e grandes obras públicas, foram reservados às bases políticas da referida aliança partidária. Com Garanhuns ficaram as migalhas.
O que aprender com essa nova Hecatombe? É só comparar Garanhuns com cidades de igual ou até menor porte, como Caruaru, Arcoverde, Triunfo, Serra Talhada e Vitória. São cidades que procuraram lançar um desenvolvimento de longo prazo, fortaleceram suas bases políticas para construir bancadas legislativas em Recife e Brasília e correram atrás de investimentos públicos e privados. O resultado é um crescimento econômico que dura até hoje. Para se ter ideia, os indicadores da indústria e agricultura em Garanhuns estão estagnados há anos, enquanto o setor de serviços cresce puxado pelos gastos do governo municipal e especulação imobiliária; já a participação da cidade na geração de riqueza (PIB estadual) em Pernambuco caiu de 1,9 para 1,8 no último ano. Tudo isso se soma ao fato de que, segundo ranking da Folha de São Paulo, Garanhuns é apenas o 3.316º município em eficiência, perdendo para todas as cidades acima listadas e outras que são consideradas "satélites'' da cidade das flores, como Lajedo (1.809º) e Brejão (2.879º). Ou seja: Garanhuns desperdiça, e muito, seus recursos públicos. Quer dizer que um centavo investido em Lajedo ou Brejão rende muito mais em obras, serviços e geração de riqueza do que em Garanhuns - "teoricamente'' uma cidade mais "desenvolvida''.
Em suma, o 15 de janeiro de 2017 nos faz olhar para o passado para entender o presente. Como antes, uma rixa política entre prós e contrários ao governo estadual (expresso inclusive nas últimas eleições) com o esquecimento o desenvolvimento da cidade em prol de interesses pessoais tanto do grupo dirigente da cidade das flores quanto dos seus patronos em Recife ou Brasília, levou Garanhuns a perder o bonde do desenvolvimento. Já são mais de 20 anos de política bairrista, miúda, voltada para a própria perpetuação, baseada nas famosas "obras sonrisal'' e, à cada 4 anos, a servir de curral eleitoral de fácil predação para os aliados do prefeito de plantão.
A nossa grande Hecatombe, Garanhuns, é saber que temos tantas potencialidades (terreno fértil, fontes de água, potencial industrial e comercial) e ainda assim nos contentarmos em ser sempre o último cavalo na corrida do desenvolvimento; apesar do pólo educacional que temos, posição estratégica, fartura da terra e vontade de trabalhar do seu povo, existe uma opção política para manter a cidade do jeito que está. Como a placa do shopping center que anuncia o terreno vazio logo atrás de si para todos os visitantes como mais uma promessa vazia, Garanhuns é a cidade do conto de fadas que jamais foi composto. Dessa vez ninguém morreu, exceto os sonhos daqueles que pensaram que Garanhuns um dia seria a terra do desenvolvimento.
Antes do almoço marcado com empresários italianos, marcado
em um restaurante de luxo em Boa Viagem e fechado para a ocasião, o governador
estranhou que ninguém tenha lhe repassado nada sobre a sessão na Assembleia
Legislativa. O que tinha sido agora, caramba?
Enquanto o carro oficial cortava devagar o Pina em um
trânsito infernal e o calor lá fora deixava as gotas de suor incomodamente
visíveis no rosto dos transeuntes, o governador ligou para o chefe da base no
legislativo. Fora de área. Tentou o número do presidente da Casa, que chamou
até cair na Caixa Postal. Nesse momento, pediu para o motorista ligar o rádio.
Havia aprendido que o cheiro da merda chegava mais rápido quando a mídia
ventilava; se dependesse dos seus aliados, jamais saberia quando algo desse
errado.
Dessa vez, esperou longos minutos, até que o celular tocou.
Era Murilo.
- Diz – atendeu o governador.
- O senhor já ficou sabendo?
“Aí, meu saco. Sabendo do que?’’
- Não. Deu bronca lá na votação?
- Bronca, bronca... não, pior. Nós perdemos e resolveram
sustar os decretos de ontem e aqueles que assinamos no mês passado. Teve louco
que até falou em cassação.
Resolveram o que? Como assim? O que cacete mais aquele
pessoal queria pra deixar ele tocar essa bosta desse Estado em paz?
-Tá. Eu vou resolver isso. – e
desligou. O almoço de hoje corria sério risco de ter o mesmo destino do último.
***
Dessa vez a soneca da tarde não
foi honrada. Depois de um almoço a base de muita massa italiana, bolonhesa e
vinho safra 1982, o governador despachara os empresários para correr rumo ao
palácio do vice-governador, onde havia se instalado devido à interdição do
Palácio do governo. Lá lhe esperavam os membros do diretório do partido, alguns
deputados e o senador Guerra, um homem alto, viperino e magricela, que fora convocado às pressas para uma reunião de
emergência. Evandro expôs, sucintamente, os eventos do dia.
- Muito bem – disse o chefe –
Já sei o que aconteceu publicamente, quero saber que merda deu nos bastidores.
Não tava tudo acertado?
- Bem – começou Diógenes Ribeiro,
vice-líder do governo na Assembleia – foi esse o nosso pensamento. Tudo devia
ser meio protocolar né? Só pra inglês ver. Mas aí o presidente leu aquele
relatório da consultoria jurídica da Casa. Ele disse que abrir mais crédito e
depois mudar a meta fiscal seria má-fé. Eu fui até falar com ele, ele disse que
lei era lei. Aí fiquei perdido, por que tava lá sozinho pra coordenar a
bancada.
- Espera – comentou Murilo –
como assim sozinho? E o Marcos?
- Ah, ele não apareceu –
comentou Teodomiro, o falante ex-radialista e deputado da zona da Mata. – Quando os deputados começaram a
derrubar o projeto, eu pensei que era tipo ondinha só pra mostrar pra imprensa, mas falei com cada líder que achei e eles disseram que a
orientação que tinham recebido das executivas eram essas. Muitos disseram que
depois queriam falar com o senhor pessoalmente sobre umas verbas não liberadas
aí.
O governador bem que queria
meter um soco na mesa. Como assim nem sequer o líder do governo foi pra
votação? E ainda mais pra uma merda daquela, que eles já tinham feito tantas
vezes naquele governo?
- Olha – disse o governador –
eu quero que alguém ache o Marcos. E o presidente da Assembleia. Já to com a
relação de quem votou contra e também quero falar de um por um pra gente ver o
que aconteceu. Esse pessoal quer o que, que eu dê meu anel pra eles?
Nesse momento, o chefe de
gabinete pediu a palavra. Pondo o celular no mais alto volume, tentou exibir
para os presentes um vídeo, onde o presidente da Assembleia era entrevistado ao
sair da sessão que eles comentavam.
Com as grossas sobrancelhas arqueadas e voz empastada, falando como se proclamasse aos fiéis um novo mandamento recém-descoberto, brandia os braços e e se esticava, numa dança macabra que o governador logo batizou de "a incorporação''.
- Sim, nós não podíamos fazer
isso com o povo. Lei é lei, não dá pra burlar de novo. A gente viu que por
desídia e por gastar demais onde não devia o governador teve que rasgar a lei
de novo pra evitar que a capital caísse no caos. Assim, pra evitar um caos pior
do que o que houve, né? A gente vai estar encaminhando essa situação para o
Tribunal de Contas e o Ministério Público.
O presidente continuou, fazendo uma longa alegoria sobre a queda do rei Saul, que se deixou cativar por necromantes, e a ascensão do justo Davi.
Agora sim, o soco na mesa tão
contido foi desferido com violência.
- E cadê o Marcos nessa
história toda? – perguntou o secretário de desenvolvimento econômico, Pedro, um
homem tão inteligente para economia quanto indiscutivelmente leniente com as constantes viagens da esposa. O governador bem o sabia.
- Eu não sei onde ele está, mas
sei onde ele não vai estar mais – sentenciou o governador.
***
Foram mais alguns dias de
tensões crescentes com o presidente da Assembleia. Este subira o tom e passara
a apontar o que, na sua opinião, vinha sendo uma gestão ruinosa e negligente
com os servidores públicos, daí a necessidade de por em pauta seguidos aumentos
salariais. Ora, só o cidadão perde com um servidor público que ganha mal. Os
primeiros contemplados foram os juízes e desembargadores; depois, membros do
Tribunal de contas. Por último, foi aprovado o aumento salarial para os
policiais militares, mesmo com todo o esforço do governo para conter a manobra.
O governador, o mestre da segurança pública, agora era inimigo público número
um do setor.
O chefe do Executivo falara por
diversas vezes com o presidente. Prometeu, regateou, ameaçou, baixou o tom,
ofereceu: tudo o que era permitido e não permitido em política foi posto na
mesa. Numa dessas vezes, sentou-se ao lado do presidente e amargou quatro horas de culto na igreja central da capital, onde a conversa se desenrolou em meio a cochichos entrecortados e sinais de mão. O governante máximo do Estado até fez uma das leituras do dia, quando o pastor presidente, em sua pregação, falou da morte do rei Acab e da rainha Jezabel, devorada pelos cães do campo por causa da idolatria; os olhares recaíam com constância sobre o banco onde o governador se situava. Mas nada parecia ser suficiente. Havia algo que o presidente queria, e
queria muito, mas que o governador não podia dar. Ele só não sabia o que era.
O governo também ficara menor.
Secretário um, dois e três pediram demissão de seus cargos, reassumindo seus
mandatos na Câmara federal e na Assembleia, engrossando a oposição. Nem forças
para visitar o apartamento perfumado o governador tinha mais.
Nesse tempo todo, Marcos, o
ainda líder da base do governo, permanecera sumido. Pelo que se sabia, ainda
estava vivo (não que fizesse diferença), mas recusava qualquer tipo de contato
direto com o governador ou seus aliados. Poucas semanas mais tarde, quando os
agentes de endemias ganhavam seu primeiro aumento salarial em três anos e
Brasília já começava a olhar com preocupação para as finanças do Estado, os
jornais amanheceram com uma manchete bombástica.
“Líder do governo é preso na
operação gol contra’’.
O governador leu novamente para
certificar-se de que aquilo não era uma piada. Gol contra em quem?
***
Quem esperou pratos voando,
ataques de ódio e telefonemas ensandecidos por parte do governador diante da
bombástica notícia se enganou. Trancado em seu quarto, ao som de Bob Dylan, o
homem mais poderoso do Estado desligou seu celular e abriu uma caixinha com um
fundo falso. De lá, retirou um saquinho com um pó suspeito.
Foram apenas alguns minutos
para que até o colchão de penas de ganso onde se deitara ficasse distante. Cada
acorde, cada palavra, cada letra daquela voz que embalara sua juventude
demorava uma eternidade para ser executado; suas veias eram percorridas por
algo levemente ardente, ao invés de sangue. Seus pensamentos mergulharam em um
poço cujo fundo era o espaço sideral, cujas luzes dos bilhões de estrelas
saudaram para o viajante espacial como velhas amigas que reencontram alguém que
estivera longe por muito tempo.
Quando Dylan deu lugar a Bowie,
as estrelas começaram a se distorcer como se o governador entrasse na
velocidade da luz; um tremor percorreu seu corpo, revelando o júbilo de sentir
como se mil mãos e dedos voluptuosos tocassem todos os pontos do seu corpo.
Até mesmo tambores africanos
começaram a retumbar, levando o viajante à uma estranha mistura entre céu e
terra. À medida em que ficavam mais fortes, um estranho estrondo, como se fosse
um trovão, fez as estrelas caírem do céu para o quarto, onde suas luzes iam se
apagando enquanto uma silhueta feminina encarava, da porta, o homem deitado na
cama, envolto em uma leve fumaça.
A voz dela parecia distante,
mas quando as últimas estrelas se dissolveram, foi ficando cada vez mais aguda,
irritante, como se gritasse contra ele. O governador apenas a contemplava,
enquanto ela se retirava e o deixava novamente só. Já preparava outra carreira,
quando o que pareceu ser uma onda do mar o atingiu, trazendo abruptamente seus
sentidos de volta à realidade.
Olhando perturbado ao redor, o
homem finalmente tinha um vislumbre do que aconteceu. A porta do seu quarto
pendia arrombada, enquanto a mulher segurava um balde e não cessavam seus
gritos. Os tapas e unhadas vieram em seguida, com o governador conseguindo
correr e se refugiar no banheiro. Suas faces pegavam fogo, não conseguia focar
o olhar em nada por muito tempo, um martelo esmagava sua cabeça toda vez que
ouvia novos gritos e não conseguia imaginar que tipo de homem aguentaria aquilo
por tanto tempo.
Por que aquela era a sua
mulher. Era, eis o verbo mais representativo da realidade! Nos últimos dias,
fora deixado completamente só no enfrentamento de tantas crises. Mal se
lembrara que era casado, já que a aliança no anelar esquerdo já parecia fazer
parte do dedo.
Na última eleição, quando o
governador lançou sua candidatura com o apoio de seu bem-feitor e então
governador, já viva separado, de fato, da esposa. Nunca haviam sido “felizes’’
depois da famosa crise dos sete anos, que, depois de outro septênio, levara
cada um para o seu lado. Mas, por exigência do marketing político, convenceu a
quase ex-esposa a aceitar fazer o papel de mulher dedicada e mãe de família que
era praticamente um requisito para compor a imagem de qualquer um que se
dispusesse a tentar governar o tradicional Estado de Pernambuco.
No começo ela resistiu. Mas a
pressão dos familiares e até dos colegas de trabalho a fizeram tomar gosto por
todo o glamour que cerca o “cargo’’ de primeira-dama. Logo, até mesmo o governador
achara que realmente haviam reatado; mesmo na vida privada, a esposa parecia
ser tão esposa quanto antes da fatídica crise dos sete anos. Seu bem-feitor,
quando ciente dessa reaproximação, lançou mais um de seus sábios conselhos para
o pupilo:
- Nada é mais real que um
teatro que engana os próprios atores.
Mas, "quer saber?'' pensou o então candidato: até mesmo havia conseguido
voltar a passar as noites com ela. Mesmo com o cansaço
da campanha, os inúmeros momentos de tensão e a rotina corrida, os deveres do
casamento voltaram a ter algum toque de satisfação. Ah, e quando sagrou-se
vitorioso? Foram dias seguidos de prazer. Até pensou que essa história de
“recaída’’ era realmente verdade.
Feliz, chegou a comentar com
seu bem-feitor o sucesso na retomada do casamento. Preocupado, seu bom mestre
fez um alerta lúcido.
- Quando se desmonta o palco,
os atores que faziam o papel de apaixonados rapidamente se cansam um do outro.
A profecia se mostrou verdade.
Foram apenas alguns meses para que, como um par romântico de qualquer filme
hollywoodiano que estendera o romance fictício para a vida real, o escândalo
viesse a abalar o casamento do governador.
Fora na semana santa, quando o
primeiro homem do Estado viajou com a família para Fernando de Noronha, onde
tradicionalmente os governadores passam datas festivas em uma base naval, com
tudo do “bom e do melhor’’. Como era de praxe, levou junto alguns amigos
próximos e suas famílias, de modo que a pequena base à beira-mar, numa das
paisagens mais belas do mundo, estivesse atulhada de gente, que acordavam ao
som do tecnoforró para secar os litros de whisky e cerveja importada bancados
pelo nobre anfitrião.
Numa dessas bebedeiras, o pai de sua esposa, um nobre
usineiro com o sobrenome também nobre, desmaiou na porta do banheiro e deu azo
a um enorme esforço de quatro homens para carregá-lo a um dos quartos.
Preocupada com seu genitor, a primeira-dama resolvera passar o dia ao seu lado,
principalmente quando o velho passara a ter febres e enjoos, como se estivesse
adoentado. Pelo menos sobrou mais whisky.
Quando voltou à praia, o
governador viu seu filho adolescente dançando com uma das moças – a filha de
algum primo, talvez? Não lembrava bem dela – ao som de uma música que narrava a
história um rapaz que aproveitava a ida da namorada ao banheiro para dar uma
fugidinha. Aquele moleque não se dava bem com o pai. Era meio rebelde, vivia
curtindo e compartilhando as postagens da oposição nas redes sociais e já havia
sido pego com drogas duas vezes pelo diretor do colégio onde estudava que,
discreto, informou tais fatos ao pai furioso e abafou comentários sobre o
comportamento delinquente do rapaz. Depois da surra que lhe dera nesse dia, ele
nunca mais lhe dirigira a palavra.
Quando a música acabou, o
rapaz, visivelmente embriagado, tentou enlaçar a moça para lhe dar um beijo,
pelo que ela se desenrolou e se afastou, com uma expressão de desagrado. Em uma
das mesas, Isaac, amigo do governador desde o colégio, lançou uma piadinha
sobre “tal pai, tal filho’’. Sentado ao seu lado e abrindo uma cerveja, o
anfitrião perguntou, casualmente, quem era a menina que tivera tanta atitude
contra alguém que, notoriamente, se valia da sua condição de “primeiro filho’’
para ter a mulher que quisesse.
- É a filha do Valadares - disse Isaac – Lembra que eu te disse que
ele não vinha, mas mandou os filhos? Pois bem. A filha é desse jeito, né? Uma
paisagem. Agora o filho é que não fazia falta – comentou, gargalhando, enquanto
outro amigo, Pedro Peteca, imitava uma voz fina, para indicar que o filho do
amigo era homossexual .
O governador não tirava os
olhos da moça, que se sentara com outras garotas, inclusive com a sua filha,
para potocar sobre a investida falhada do primeiro filho. Por um ou dois
momentos, os olhares se encontraram, e o homem mais poderoso do Estado percebeu
que o motivo da rejeição de seu filho pela moça não fora por princípios, mas
por uma questão de grau. Ela queria alguém “maior’’. A fêmea da selva queria o macho chefe do grupo, não os desmamados.
A intensidade dos olhares da
garota surpreendeu-o. Tudo bem que flertar com mulheres maduras – e até ir além
– lhe era comum, mas com uma mocinha que tinha idade para ser sua filha?
Parecia ser efeito da carência em demasia. Fazia um mês que o primeiro órgão do
Estado não entrava em ação.
Peteca captou o pensamento do
amigo e segredou-lhe:
- Velho, mas ainda rápido e
mortal no ataque.
Gargalhando, os amigos
rememoraram as velhas histórias de faculdade. Mas nenhuma delas foi capaz de
distrair os olhos do governador daquele belo corpo que, com o olhar, se
oferecia para ele.
Mais tarde, quando o sol
baixava e os convidados se retiravam, o anfitrião pediu licença aos amigos e
foi caminhar na praia, sozinho, como era de seu costume. Era o seu momento de
privacidade, que sabia que, quando voltasse à rotina, não teria até mesmo nos
próximos feriados. O vermelho do pôr do sol tingia aquelas águas antes azul
turquesa, enquanto a brisa soprava trazendo um delicioso cheiro de sal do mar e
os pássaros deitavam voo ao poente. Paisagem perfeita, governo perfeito... só faltava, de perfeito, uma coisa.
Olhando para baixo e sentido a
água banhar-lhe os pés, o governador perdera atenção do que estava ao seu
redor, para se dar conta de que não estava mais sozinho naquela caminhada.
Surpreso, mas alertado por algum instinto masculino de quem deveria ser sua
companhia, se virou para contemplar a filha do Valadares.
- Tem o hábito de caminhar na
praia também? – perguntou, olhando nos olhos da garota e neles divisando uma
chama animal. Era o fogo de fêmea exalando sexualidade, maluca não por palavras
e rodeios, mas por ação. Era o olhar capaz de deixar as tropas do governador
prontas para o assalto instantaneamente.
A garota pareceu perceber que
encontrou o que estava procurando, pois seu olhar se deitou entre as pernas do
homem e lá ficou, voraz.
Sem rodeios, o homem experiente
resolveu lhe ensinar uma bela lição. Ela devia respeitar os mais velhos.
Quando voltou à base, por outro
caminho, o governador sentia suas pernas tremerem. Mal conseguia andar,
enquanto ainda lembrava das loucuras que fizera nas areias daquela praia, se
sentido como se tivesse vinte anos novamente – e mais cabelo.
Os dias foram se seguindo, até
que, na volta para casa em um jatinho do governo estadual, o governador
percebeu sua esposa estranhamente distante. Tinha ficado cuidando do pai todo
aquele extenso feriado, talvez estivesse cansada.
Sossegado com aquela justificativa que
encontrou para aquela estranheza, ajeitou uma almofada debaixo da cabeça e
dormiu toda a viagem, até finalmente estar instalado em sua cama e dormir o
sono dos lascivos.
No outro dia, recebera um
arquivo de Isaac pelo celular. Parecia ser um vídeo de alguém numa praia, não se
interessou por ver na hora. Só depois que chegou em casa naquela noite que
percebeu que alguma coisa estava errada.
Como morava em um duplex, o
governador notou que a parte de cima fora selada com uma porta nova, na qual
ele não tinha a chave. Entrando no quarto dos filhos, encontrou-os vazios, como
se tivesse havido uma mudança. Em seu próprio quarto, os pertences da mulher
haviam sumido. E agora, que porra havia acontecido?
A empregada não quis falar.
Apesar dos gritos e ameaças, a pobre mulher, que já trabalhava para a família
do governador desde que este era apenas um adolescente, ficou calada, deixando
cair as lágrimas em silêncio. Aquela cena fez o patrão sentir culpa. Coitada, a
velha o havia criado feito se fosse um filho, lhe doara desde a juventude até a
idade madura, e fazia o mesmo pelos seus filhos. Não vendo outra alternativa,
tomou o elevador e foi bater a porta do andar de cima.
Pela sombra que se fez abaixo
da porta, alguém olhou pelo olho mágico e o ignorou. Aquilo o deixou furioso, a
esmurrar ainda mais a porta, quando finalmente seu filho abriu-lhe.
- O que houve? Que merda vocês
fizeram?
- Só você fez merda aqui. Não
vem mais aqui.
O estômago do governador, que
já tinha seus problemas desde a juventude, voltou a ser castigado por uma tempestade
de gelo e fogo.
- Deixa eu falar com sua mãe.
O rapaz tentou fechar a porta,
mas o pai foi mais rápido e o empurrou com porta e tudo. Marchou para onde
sabia ser o quarto principal e lá encontrou a mulher, com olhos vermelhos
injetados e os cabelos desarrumados. Nas suas mãos, uma tesoura cortava as
fotos dos dois, e uma pequena bacia com álcool em chamas era abastecida pelas
tiras onde o governador estava representado. Sua filha ajudava a mãe nessa
horrível tarefa.
O olhar de tristeza da esposa e
a raiva dos filhos explicavam muito bem a situação. Não eram necessárias
palavras para que o governador soubesse qual era a razão do fim do casamento e
da sua própria família. Eram aqueles olhos de fêmea no cio na praia de Fernando
de Noronha.
***
Acostumado aos acordos
políticos, não foi difícil convencer a mulher a fazer parte de um teatrinho.
Até o fim do mandato e a próxima reeleição, ficou acordado que ela continuaria
a residir na parte de cima do duplex, mas separada de corpos do marido, e com sua
própria vida privada. Como era caseira, imaginou o governador que a chance dela
arranjar um amante eram remotas.
O problema mesmo eram os
filhos. O rapaz o odiava, a moça o achava um traíra. Nem mesmo a intercessão de
Paulo André, irmão da esposa e tio das crianças, de quem era muito próximo,
mudou a situação.
- Tem calma, rapaz. As coisas
se ajeitam - tentava consolar Paulo, que havia vindo tomar uma dose de whisky
com o cunhado.
- Eu já te mostrei o vídeo? –
perguntou, sem jeito, o governador.
O conteúdo da filmagem era desfocado e desfigurado, mas era possível reconhecer o governador pela cor da camisa que usava no dia, embora seu rosto não fosse mostrado. Paulo André mordeu os lábios enquanto contemplava o corpo a moça.
- Cara, qual o teu segredo? –
perguntou o cunhado, gargalhando alto – A gente tem que marcar uma viagem só da
gente e essas novinhas.
Maquinalmente, o governador
seguira a lógica de seu bem-feitor. Certa vez, quando este ainda era governador,
vazou para a imprensa um pré-projeto de lei que autorizava a privatização da
empresa de abastecimento de água do Estado, que vinha enfrentando déficits crescentes.
Ainda secretário, o atual governador aconselhava a desistência do projeto, ao
que o bem-feitor soltou outra de suas tiradas:
- Se o negócio já está sujo,
ninguém vai reparar se sujar um pouco mais.
E foi assim que não só a
companhia de abastecimento, mas a de eletricidade e a companhia de apoio ao
agricultor foram devidamente privatizadas, enchendo de dinheiro os cofres do
governo e bancando, assim, a eleição do então secretário para governador.
Ninguém ia reparar se ele se
sujasse um pouco mais.
Conseguir o telefone da moça
foi muito fácil. O governador devia esse favor ao Peteca, cuja filha era amiga
da “prometida’’. Daí em diante, o grande homem do Estado passou a usar o que
tinha de melhor: a capacidade de prometer. Foi assim que a garota, no início
relutante, cedeu a todos os seus desejos. Até mesmo um discreto apartamento foi
alugado pelo seu chefe de gabinete para servir de palco aos encontros, cada vez
mais quentes.
A vida dupla do governador era
o motivo daquela atitude tão agressiva de sua esposa ao acordá-lo com um balde
cheio de água e uma porta arrombada. Mas o que a levara ali não fora a
infidelidade do marido, mas a de seus aliados.