sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O sete de setembro de 1822: uma invenção cara


Notoriamente, regimes autoritários, no Brasil, escolheram datas e personagens históricos com o fim de, apregoando-se às suas imagens, construir um pilar de legitimidade para sua permanência no poder. Foi com esse fim que o regime imperial, vigorante no Brasil após o corte de laços com Portugal, criou o mito do herói Pedro I, um corajoso príncipe que empunhou sua espada e proclamou a soberania da nação tupiniquim, em uma tarde ensolarada do dia 7 de setembro de 1822.

A divulgação de uma versão oficial sobre o tal evento começou quando o mesmo monarca- já transformado em imperador- governou o país com mão-de-ferro. Após nove anos, "sua majestade'', o grande herói da independência, mergulhou o país em dívidas, enfrentou e esmagou sanguinariamente uma revolta de grandes proporções (a Confederação do Equador), iniciou e perdeu uma guerra com a Argentina, imprimiu moeda a torto e direito (causando a primeira hiper-inflação de nossa história) e, por fim, abriu os portos brasileiros aos produtos ingleses, de forma irrestrita e ainda mais intensa do que quando da chegada da corte ao país, em 1808, o que acabou com qualquer chance de industrialização. No fim, a população, cansada de seu autoritarismo e movida pelas penúrias resultantes da política econômica imperial, reuniu-se no Paço, e, junto com militares do exército, pediu que o monarca tivesse o bom senso de formar um ministério digno. Arrogantemente, Pedro I se recusou, e, avisado pelos oficiais do Exército de que estes não deteriam qualquer levante popular em caso extremo de revolta, assinou a abdicação, aos choros e socos no gabinete imperial, do governo, literalmente, fugindo da responsabilidade pelo país que fundara e, após 23 anos, voltou para Portugal.

Todavia, a imagem do tirano que quis governar o Brasil para uma pequena elite portuguesa- remanescentes da autoridade da antiga metrópole-, o chamado "partido português'', que, em troca, apoiou a concentração do poder político nas mãos do soberano, foi amplamente glorificada nos anos seguintes à sua derrubada. Durante o reinado de Pedro II, o proclamador da "independência'' se tornou um grande líder que, em suas biografias - patrocinadas pelo governo imperial, diga-se- não perderia em nada para um Alexandre, o Grande. Criou-se uma versão oficial do sete de setembro de 1822, cristalizada em obras de arte produzidas - ou melhor, copiadas- tendo em base famosas telas europeias. Apesar de esquecido durante a República Velha, o primeiro imperador brasileiro e seus "feitos'' voltam a ser glorificados com a república de 1946- nos livros didáticos, daí em diante, D. Pedro se tornou "descobridor do Brasil'', por exemplo, num grotesco erro histórico que, ainda hoje, é repetido como fato por várias pessoas- hoje, idosas- que foram educadas a partir dos anos 50.

Sendo assim, ainda hoje, por causa do baixo nível de criticidade dos livros didáticos adotados em sala de aula- e com felizes exceções- a independência do Brasil ainda é vista como o feito de um único homem, sem participação popular, onde o país passa a ser governado por si mesmo sem dar satisfações a qualquer poderio externo. Esta é outra grande mentira.

A independência foi negociada para manter esses homens e mulheres da pintura ao lado onde sempre estiveram- na base da sociedade, sustentando uma elite corrupta e egocêntrica.

A dita independência foi, no fundo, a manutenção de um regime político-econômico fundado com a abertura dos portos, em 1808. O que ocorreu, naquele ano, foi a permissão, dada aos brasileiros, para comercializar com as nações amigas- leia-se, Inglaterra. Assim, os latifundiários brasileiros, escravistas, produziam gêneros tropicais, vendendo-os diretamente ao mercado europeu, sem intermediação da metrópole- que adquiria tais gêneros por baixos preços e os revendia a países europeus com o dobro ou triplo do que pagou-, o que aumentou seus lucros e permitiu o aumento das compras de produtos manufaturados e, já então, industrializados. O retorno do regime colonial significaria a queda dos lucros e a transferência da riqueza produzida no país para Portugal- já que a metrópole impunha o exclusivismo comercial à colônia, onde esta era obrigada a adquirir manufaturas portuguesas, de alto custo e de maior valor agregado, geradoras de mais empregos, e a vender produtos tropicais a baixo preço. Com a abertura dos portos, nossa elite econômica passou a comprar bens internacionais mais baratos, e conseguiu preços maiores pelos seus produtos; ao custo da mão-de-obra escrava, pela qual, não diluindo os lucros por mão-de-obra assalariada, toda a riqueza obtida era concentrada nas mãos dos grandes proprietários.

E assim deu-se a gloriosa independência: cartas e notas de milionários empréstimos trocadas entre as elites brasileiras e portuguesas. Ao lado, D. Pedro toca, no piano, o hino da independência.

Essas elites, de longe as mais poderosas forças políticas do país, apoiaram D. Pedro e o induziram a aceitar o posto de soberano de um país que já era, economicamente, mais forte que Portugal, com o fim de manter o status quo- a vantagem era de que, sendo filho do rei português, um acordo familiar poderia ser assinado, sem sangue (o que não aconteceu), garantindo a independência. Quando Pedro se revelou mais instável do que se supunha, foi deposto. Por fim, como a quebra dos laços com a metrópole- diga-se, fim do monopólio comercial por parte de Portugal- interessava grandemente à rainha dos mares, a Inglaterra, esta convenceu os portugueses a aceitar a "soberania'' do novo país. O preço da "persuasão'' foi alto: 3 milhões de libras, como "compensação'' aos portugueses, emprestados pelos banqueiros ingleses Rothschild- isso sem falar em uma guerra cara, travada, por parte do Brasil, através de mercenários ingleses, que deixou cinco mil mortos, por conta de teimosia dos comerciantes portugueses em perder o monopólio da economia brasileira. A última parcela dessa enorme quantia foi paga apenas em 1890. Enfim, a independência não foi apenas inventada pelo regime imperial com o fim de legitimar-se (como fundador da pátria, do Estado e da soberania), mas comprada, a um alto custo- a milionária dívida brasileira foi continuamente "rolada'', e empréstimos foram feitos para cobrir dívidas antigas, a juros cada vez maiores, comprometendo a capacidade de investimento do Estado, cujas receitas eram drenadas para o pagamento de tais compromissos; como não bastasse, os funcionários e ministros responsáveis pela área econômica comumente desviavam os empréstimos obtidos dos banqueiros ingleses, que se perdiam em uma burocracia infernal.

Mais que tudo isso, a instauração do regime imperial via independência foi a grande cartada contra-revolucionária da elite brasileira: a forma de retirar de movimentos populares, partidários de grande transformações sociais, a bandeira da independência, que, para tais radicais, seria o carro-chefe da grande revolução, que se resumia à reforma agrária, criação de escolas e universidades, fomento da indústria e abolição da escravatura. O sete de setembro foi o simples afastamento de tais ideais de cena, já que os grandes latifundiários conduziram o processo e fundaram o Estado nacional segundo seus necessidades, fundando um regime autoritário que esmagou, posteriormente, revoltas de cunho popular- durante a regência, notadamente- e impos à força o escravismo até 1888, e mesmo uma ordem social baseada nas sementes do coronelismo, na estratificação social e na importação e adoção da cultura europeia. Em suma, tratava-se da fundação de uma ordem social estável, pelo menos para as elites lucrarem. Não coincidentemente, quando aboliu-se a escravidão, o regime imperial caiu, já que sua razão de ser extinguira-se.

Em suma, o Brasil tem como data mais importante o dia em que um príncipe orgulhoso e autoritário agiu como títere das classes dominantes e garantiu a preservação do status quo social, ao custo do endividamento do país e de sua condenação ao escravismo neocolonial, um atraso econômico e social cujos efeitos duram até hoje; o pior é que, depois, tentou-se glorificar o processo, como se fosse motivo de orgulho para os brasileiros. Sim, a independência foi inventada pelas elites e imposta goela abaixo da população como um grande feito histórico por todo esses anos; ainda pagaram caro por isso, não mais que a população brasileira. A sociedade nacional de hoje, assim, continua carregada de preconceitos, na concentração de terra e nos pequenos e grandes privilégios, pois emergiu do império e foi garantida, a sangue, ferro e fogo, pelo Estado, durante todos esses anos (com exceções). E tudo graças aquele ato simbólico feito às margens lamacentas do Ipiranga- um boné desbotado atirado ao chão, por um nobre português, vestido como um guarda qualquer, montado em um burro, mais enraivecido pela intensa diarreia do que pela carta autoritária das cortes portuguesas. 

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