quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Em defesa das cotas sócio-raciais para as universidades públicas: o giro igualitário e a aurora da justiça social


Nos últimos meses, o Brasil viveu uma verdadeira revolução histórica, em termos jurídicos, condizente à educação, especificamente no ensino superior. Em primeiro, o Supremo Tribunal Federal declarou os mecanismos de cotas raciais e sociais em universidades públicas plenamente constitucionais, por unanimidade. E, por fim, um projeto que tramitara no Congresso Nacional por quase 10 anos foi aprovado e sancionado pela presidência da República, criando a obrigação legal, para as universidades públicas, de reservar 50% de suas vagas para alunos negros, carentes ou oriundos da escola pública. Não obstante, alguns veículos de imprensa e partidos mais à direita guincharam contra as medidas, classificando-as como mais uma medida paliativa e populista por parte de um governo que se furta a solver os problemas da educação básica.

Apesar da ignorância e da evidente carga preconceituosa dessas críticas, elas não deixam de ter algum fundamento. A educação básica, apesar de universalizada, é uma das piores do mundo, onde a média dos alunos fica abaixo dos 4, em exames internacionais; o pior mesmo é que quase 50% dos alunos não estão nas séries corretas, sendo a grande parte analfabeta funcional, como cerce de 1/3 da população brasileira. O efeito óbvio desse ensino de má qualidade é o baixo nível do universitário brasileiro, onde os alunos, de forma trágica, acabam por sair, em 37% dos casos, como semi-analfabetos! E o pior é que esse percentual vergonhoso vem crescendo. Mas a grande confusão que se faz é imputar esse desempenho péssimo de nossos universitários aos cotistas: são as instituições privadas, que não adotam o sistema de cotas, as responsáveis por tal lástima educacional. A indústria de diplomas foi acionada no governo FHC, onde, a cada 6 horas, um curso de ensino superior era aberto no setor privado. 

A causa desse desempenho, aliás, também se liga à péssima educação básica recebida pelos brasileiros, que chegam, em 76% dos casos, nas universidades privadas, sem dominar conhecimentos básicos como leitura e raciocínio lógico. Melhorar o ensino público é uma alternativa lógica, que é o principal argumento contra as cotas. Mas com a atual estrutura do Estado (sucateado, dividido em feudos políticos, preso por gastos inúteis) fica muito difícil, muito menos com um país tão grande; leva tempo, décadas, até que os resultados se façam sentir. Todavia, as cotas versam sobre vagas na universidade pública- que. no Brasil, é de excelência-, e o que se esconde, implícito da raiva dos meios de comunicação contra as cotas, é a ideia de que algo de tão elevado nível não pode ser oferecido a qualquer um, mas aos mais "aptos''. A elite branca, moradora de conjuntos habitacionais fechados e que gosta de se divertir estourando os cartões de crédito em Miami.

Dessa forma, não se pode negar que, a curto prazo, as cotas são a única via de acesso à universidade para milhões de estudantes pobres, e 87% deles são negros. Por quanto tempo eles teriam de esperar para chegar à universidade, sem cotas? Não se trata de menosprezar a capacidade de ninguém, mas de instituir formas de tratamento diferenciadas, porque as condições de alunos da escola privada e da pública são adversativas. A ideia é equilibrar a balança e tratar os desiguais de forma desigual, seguindo o princípio da igualdade aristotélica. Esses cotistas entrariam (como já entram) em boas universidades, vão se formar, vão experimentar aumento em sua renda e vão educar os filhos como nunca; o rendimento deles nas universidades chega a superar o de alunos que entraram pela via normal. O resultado é melhoria da educação da classe mais pobre, diminuição da desigualdade social -já que o meio reprodutor dela, a monopolização da educação pelas elites, principalmente a superior, é quebrada com as cotas- entre outras coisas. A melhor notícia é que, apesar inicialmente o desempenho dos cotistas ser um pouco baixo da média, com o decorrer do curso, seu aproveitamento intelectual iguala-se e, muitas vezes, supera o dos outros estudantes. Ou seja, se podemos reservar vagas para grupos sociais excluídos sem comprometer o desempenho das universidades e a qualidade do alunato, por que não tentar?

O percentual de 50% como reserva de vagas ficou um pouco alto, para alguns... mas a combinação dos requisitos sociais e raciais foi muito bem vinda. Um país onde um branco ganha duas vezes mais que um negro, onde o analfabetismo e mortalidade infantil entre os negros é três vezes maior que entre os brancos, precisa de cotas raciais, não por incapacidade dos negros, mas para simplesmente igualar as chances. É fácil para um estudante de classe média alta, morador de um condomínio de luxo, egresso dos mais caros colégios das capitais, criticar o sistema de cotas e chamá-lo de injusto, por que reservaria 50% das vagas para jovens pobres, que mal tem casa própria, frequentaram escolas aos cacos, sem um ensino de qualidade e são alvo de preconceito social. Será injusto mesmo, ou apenas um ajuste das condições de competição? Como o "mauricinho'' poderia ter o mesmo tratamento do jovem negro que sempre é confundido, por policiais, com traficantes e criminosos diversos? É justo isso? Será que, além de deter vantagens sociais esmagadoras contra o jovem pobre, o mauricinho ainda teria direito a mais esse "plus'', competindo de igual pra igual com quem não é igual a ele, socialmente?

O pior é quando se tenta usar as cotas como fator de discriminação. Tratar de forma justa e igualitária setores diferenciados pelas condições sociais é realizar a verdadeira igualdade, não macula-la. A justiça é uma proporcional distribuição dos bens sociais (tal como a educação) para cada um que tem direito a eles, da forma que necessitarem para se tornarem iguais, socialmente, aos demais indivíduos. 

Entendo que talvez não pareça ser justo, a primeira vista, para quem tente uma vaga nas universidades sem ser cotista. Mas os requisitos cobrados apenas favorecem a exclusão de grande parte da sociedade da participação no ensino público superior que elas mesmas financiam com seus impostos- e, no Brasil, os pobres arcam com boa parte das receitas do Estado, por causa da tributação indireta: 45% da renda das classes mais baixas é arrancada para os cofres do Estado. Não me parece justo que o povo custei a educação dos filhos da "elite'' e não possa ter acesso às universidades "públicas''; o que se tem é uma verdadeira reformulação do conceito de recurso público (antes, propriedade das elites, mesmo geradas pelo povo; hoje, recurso gerado pela coletividade e aplicado pelo bem da coletividade, na qual também se incluem as elites!). As vagas, na distribuição imposta pela lei (metade dos 50%, restritos a critérios raciais) ficam mais condizentes com o formato da sociedade: os ricos e classe média, com 50% delas (as vagas não reservadas), a classe média baixa e pobre, que se forma na escola pública, com outros 50% (reservadas por cotas). Selecionamos, assim, os melhores alunos de cada classe, e não mais somente os melhores dentre a elite formada em colégios particulares; para aqueles que dizem que a reserva de vagas para alunos de escolas públicas beneficia apenas uma pequena parcela dos alunos (oriundos de colégios de referência e aplicação), cabe lembrar que a Lei de Cotas prevê o casamento do critério social com a seleção dos cotistas. Já os membros de classes mais abastadas continuam a ter acesso ao ensino superior porque eles também podem pagar por isso, nas instituições privadas... e o incômodo individual por perder a vaga para um cotista é compensado pelo imenso benefício social que dela resulta. E mais gente tem acesso à universidade. A ideia de, em vez de cotas, implantar-se subsídios aos alunos pobres é boa, não nego, mas a longo prazo. A curto, não tornaria o jovem pobre da periferia capaz de competir com o filho de um empresário de sucesso. 

As cotas, assim, são um paliativo urgente e necessário; e, sobretudo, uma medida temporária, enquanto a educação pública não puder oferecer chances iguais a todos os brasileiros.

Em suma, a institucionalização das cotas sócio-raciais para as universidades públicas quebra o meio reprodutor da desigualdade social, tornando o Estado provedor, via recursos públicos, do bem estar educacional da coletividade. No fim, realizamos o princípio constitucional da igualdade ao tratar de forma diferenciada grupos socialmente diferenciados, conquistando uma das maiores vitórias políticas da história do Brasil: a quebra dos privilégios das classes abastadas no setor educacional. O Brasil emerge, coma  Lei de Cotas, mais justo, mais igual, mais fraterno, pronto para, a partir desse precedente, realizar a grande revolução política em prol da igualdade social em todos os níveis, tão evitada pelas classes dirigentes desde a independência. 

4 comentários:

  1. Radical tu? És comunista, socialista ou um mero utópico? Já ouvisse falar que toda unanimidade é burra? Pois bem, generalizar que toda e qualquer escola particular é "top de linha" é burrice ou pura ignorância. Há escolas particulares que estão em péssimo nível, assim como há públicas em nível de excelência. Outro aspecto a ser levado em conta é que nem todo aluno que estuda em escola particular tem condições para bancar determinados cursos em uma faculdade particular, além de que cor de pele não afeta QI de ninguém, o negro é tão capaz de obter um desempenho igual ao branco e ao aceitar esse tipo de incentivo se auto-discrimina, porque acaba se considerando uma "raça inferior", raça essa que não existe. Sendo assim, te faço algumas perguntas após sobre às cotas: como fica a situação de quem é branco, de classe média e deseja fazer um curso extremamente concorrido?(Está FUD....), como fica a situação de quem é negro, rico e também deseja um curso bastante concorrido?(Está feito). Como falei no início, generalizar é uma das maiores ignorâncias do ser humano. Cotas não irá resolver o problema da educação, apenas segregará ainda mais esse país em que vivemos. Ah, antes que me chame de mauricinho, quero lhe informar que não faço parte da elite e sou totalmente a favor de cotas para único e exclusivamente aqueles de baixa renda, pois os mesmos não possuem meios para ter uma boa educação. Não é com um erro que se conserta outro! Medidas absurdas e paliativas irão gerar sérias consequências no nível dos alunos ingressantes e posteriormente nos proficionais recém-formados!

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  2. Cara, me empolguei um pouco ao escrever o comentário, tanto que há alguns erros de português e tal. Espero que entenda o que falei. Minha intenção não foi lhe ofender, mas sim expor um ponto de vista contrário ao seu

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  3. Olá, Anônimo. Não se preocupe, aqui discutimos, e não impomos, ideias.

    Em primeiro, não sou socialista ou comunista- sou de esquerda, independente, e busco alternativas ao capitalismo e ao socialismo clássicos.

    Você falou em unanimidade. Eu me pergunto o porque terá citado isso- pelo que sei, não há nenhuma formada sobre o assunto.

    Algumas escolas particulares tem baixo desempenho, mas não tanto como as públicas. O Ideb das particulares é de 6,0- quase o dobro das públicas. Assim, será que o tratamento de ambos, no vestibular, deve ser igual? Repito a pergunta que fiz: um aluno de uma escola particular, com dinheiro (que são a maioria absoluta nas federais), pode competir em pé de igualdade com o negro da periferia?

    Existem escolas públicas de excelência, como eu citei: por isso, no projeto de lei, há uma reserva de 50% das vagas para alunos oriundos das escolas públicas, mas que estabelece diretrizes para que metade dessas vagas sejam destinadas a alunos de baixa renda. Ou seja, combina-se cotas sociais, institucionais e raciais.

    Realmente, os negros tem a mesma capacidade dos brancos. Mas terão os mesmos meios de desenvolvê-la? Terão acesso à mesma educação? Teriam chance em uma competição "igual'' como você quer? Enfim, 87% dos pobres brasileiros são negros- não obstante estarem excluídos das benesses sociais, ainda são vitimizados pelo preconceito. Por aí, sabemos que adotando uma cota racial ou social, o efeito seria o mesmo, já que os contemplados por ambas seriam negros... a adoção das cotas raciais é simbólica, sem dúvida. E lembre-se que as cotas são para alunos oriundos da escola pública em geral, dentre eles os negros.

    Não vejo auto-descriminação. Assumir que estudantes das escolas públicas não possam competir como iguais com os das particulares, embora tenham, na faculdade, desempenho igual ou superior ao deles, não é discriminar, mas igualar os pratos da balança, e ainda por cima melhorando a renda e diminuindo a desigualdade social. Se as universidades são públicas, porque só os ricos tem acesso a elas? Se são bens públicos, devem ser acessadas por todos- e todos devem ter chance mínima de acessá-las.

    Respondendo às suas perguntas: quem é branco e de classe média, se vier da escola pública, entra nas cotas ou tem acesso aos 50% de vagas restantes; a lógica é: temos 100 milhões de brasileiros que estão na classe média baixa (atingida pelas cotas), mas que ocupam menos de 10% das vagas das federais, e 10 milhões (elite) que ocupam os 70%, e o que se fazer é simplesmente reservar vagas para a classe mais pobre, que frequenta escolas públicas. Com a expansão das federais, mais vagas foram e são criadas e, como as elites são minoria, o número de vagas ocupadas pela classe média alta e C não vai cair, já que temos até 2015 para implantar as cotas. Quem é negro e "rico'' (uma minoria extrema) não cursou o ensino médio em escolas públicas, e não entra nas cotas.

    É um paliativo. E as universidades públicas são as melhores, sem dúvida, e, nelas, o estudante pobre pode crescer e melhorar sua renda, ascendendo socialmente. Esse é o grande objetivo das cotas. Já temos bons resultados das cotas, já que o desempenho dos cotistas é até melhor que o dos universitários não-cotistas... a esmagadora maioria ascendeu socialmente sem comprometer a qualidade do alunato. Os que não entram nas universidades públicas podem pagar particulares ou, com o enem, tentar diversas federais, onde certamente conseguirão vagas. Mesmo que demore, todos os concorrentes de um vestibular poderão estar na universidade.

    Bem, é isso. Continue acompanhando o Blog, manifestando sua opinião sem nenhum receio. Aqui o território é livre e a única lei é o debate!

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