Desde o fim do Regime Militar, e talvez antes, as universidades brasileiras são dominadas pelo pensamento esquerdista, em suas várias vertentes. Essa constatação tem suma importância, já que são nossas instituições de ensino superior e seus docentes que produzem obras pedagógicas sobre a História do Brasil e do mundo para todos os níveis de ensino; ou seja, o ambiente acadêmico acaba por imprimir sua ideologia nas suas publicações (muitas delas adotadas nas escolas pelo MEC), levando os incautos estudantes das séries iniciais a acreditar ser a versão histórica contada ali inquestionável, ou, no mínimo, a "verdade''.
Dentro dessa "doutrinação'', uma das figuras históricas mais atacadas é a Igreja Católica, acusada diversas vezes de matanças generalizadas, obscurantismo, combate ao racionalismo e imposição de seus dogmas, além da associação com os poderes políticos dominantes e opressores. Basicamente, a doutrina da Igreja, com seus dogmas apoiados no método aristotélico-platônico (com a clássica divisão entre matéria e ideia, superfície e essência, onde esta última é composta pelas normas de Deus, como valores e virtudes divinas, enquanto a matéria é vista como algo negativo e pecaminoso. Na teologia cristã, corresponde à adversidade pecado x graça) é condenada por imputar à revelação divina o sentido do mundo e como devem se comportar os homens (as normas morais). Segundo o tradicional pensamento materialista-marxista, essa revelação divina esconde a vontade das classes dominantes, que usaram a Igreja como porta-voz de suas necessidades e pilar legitimador de sua tirania. A visão da "verdade'' como algo metafísico - e, portanto, transcendente à matéria, uma heresia para o materialismo- revelado por Deus à sua Igreja também agiria como um "narcótico'' nas consciências individuais, uma distração dos verdadeiros problemas merecedores da atenção humana. Alguns pensadores chegam a afirmar que papas e bispos montaram a mais cruel e eficiente ditadura das consciências, através da doutrinação maciça, seja pela fé e crendice popular, seja pela força e pelo sangue.
Trata-se de uma acusação de duplo genocídio, um contra populações- minorias étnicas, membros de outros credos e rebeldes cristãos, os "hereges''- e outro contra a própria razão- a criticidade, o racionalismo, o libertarismo. A pergunta que muitos estudantes fazem com relação a esses ataques, em um país católico, é simples: teria mesmo a Igreja Católica cometido tão graves crimes? Vamos desmistificar alguns mitos criados pelo "pensamento único'' que domina as universidades.
1- A polêmica fundação da Igreja: dádiva de Constantino?
As controvérsias começam com o que seria o "início oficial'' da Igreja Católica, que, segundo (certos) historiadores, teria se dado com a fundação e organização, pelo
imperador romano Constantino, de dioceses e paróquias por todo o império, sob a autoridade do bispo de Roma, Silvestre I. As teses fundamentais da Igreja, por sua vez, teriam sido afirmadas/impostas com o Concílio de Niceia, com a afirmação da divindade de Cristo e a virgindade perpétua de Maria. A partir daí, uma religião antes minoritária e perseguida ganhou apoio do Estado e, no fim do século IV, foi imposta a todos os habitantes do império.
Apesar da sedução de certeza que esta tese oferece, ela retrata apenas parte do processo de formação da Igreja. Desde a ressurreição (para os que creem) de Cristo, diversas pessoas começam a pregar o cristianismo sem necessariamente se organizarem para isso em uma instituição. Contudo, os apóstolos originais mantiveram contato entre si e uma certa homogenia de ideias, fundando não uma instituição, mas uma comunidade de cristãos, em Jerusalém e, logo mais, várias outras, já que o método de pregação consistia em mandar membros de cidade em cidade, e, logo convertidas algumas pessoas, deixar a liderança da nascente comunidade nas mãos das pessoas mais velhas (de onde vem o nome presbiteros, "homem velho'', que é a raiz do título "padre''). O pregador e fundador do núcleo cristão, geralmente um apóstolo ou discípulo deste, se correspondia frequentemente com as comunidades formadas, geralmente solvendo dúvidas e orientando os fieis no correto cumprimento da religião cristã, centrada na celebração eucarística. O método pode ser muito bem visto nas cartas de S. Paulo e S. Pedro, que constam na Bíblia. Já poucos anos após Cristo se retirar de cena, os apóstolos realizaram o primeiro dos concílios, em Jerusalém, onde definiram que Gregos e pagãos não precisam ser circuncidados para serem batizados.
Pouco depois, com o aumento de complexidade das comunidades, com várias a orientar, os apóstolos ordenaram (''impondo-lhes as mãos'') sucessores e discípulos diversos com o fim de "guardar'' fé; esses vigilantes receberam o nome de "episcopos'' (em grego, guardiões, pastores), que é raiz da palavra "bispo''. O bispo de Roma, por sua vez, tinha grande autoridade moral dentre os demais e dele vinham as principais orientações religiosas, já sendo reconhecido como Papa (Petrus Apostulos, principes apostolos), que, em grego, também significa "papaizinho'', ou "painho'', embora o detentor do título fosse eleito pelo povo de Roma e não tivesse todas a funções de hoje (como proferir dogmas ex cathedra).
Em outras reuniões, os apóstolos e seus sucessores fixaram um conjunto de dogmas que praticamente permaneceu inalterado até 325, quando ocorreu o
Concílio de Niceia, que apenas o reorganizou racionalmente; algumas crenças marginais, porém, misturaram elementos pagãos ao cristianismo, resultado em doutrinas incompatíveis com o evangelho (como o maniqueísmo, o arianismo etc). Ou seja: o fundamento dogmático da Igreja, bem como sua organização básica estruturada em padres, bispos e no papado, já estava estabelecido desde o século I, sendo apenas publicizado, dilapidado e compilado pelos bispos, no concílio de Constantino. Não por acaso, o núcleo cristão conduzido pelos apóstolos entrou em conflito com outros grupos cristãos, como os arianos e nestorianos, bem posteriores à pregação apostólica. Assim, cai por terra o mito de que a doutrina e a hierarquia da Igreja foram "criadas'' pelo imperador ou a seu mando.
Na verdade, Constantino apoiava a corrente dos arianistas, que negavam a Cristo sua face humana. Ele não usou a força militar do império para expandir a fé católica, que, tampouco, o apoiou- a única "benesse'' real do imperador foi o Édito de Milão, que assegurou liberdade religiosa aos cristãos, e de forma alguma imposição de sua religião a todo o império - a expansão do catolicismo pelo império se daria por obra dos próprios cristãos.
Em Niceia, apenas reafirmou-se o que já existia, em termos de doutrina, contra as heresias arianas e nestorianas. Se essa reafirmação serviu para o fortalecimento da monarquia imperial, foi muito mais por decorrência ou efeito secundário de Niceia do que causa desta.
2- Os elementos pagãos na Igreja Católica: faltou originalidade?
Ainda referente á formação da Igreja, muitos historiadores argumentar que, durante o processo de afirmação do cristianismo, a Igreja terminou por absorver diversos elementos de origem pagã, como a forma dos templos, as imagens e funções dos santos (que ocupariam a função dos semi-deuses mitológicos), o incenso, as vestes dos sacerdotes (a mitra, a casula, a estola, o báculo e a túnica) e mesmo datas festivas, como o 25 de dezembro. Isso sem falar em uma centena de símbolos (o alfa e o ômega, o ostensório, as rosáceas), títulos e práticas. (Ao lado, Mitra).
É inegável que existiram elementos em comum entre o paganismo e o cristianismo. Não se pode esquecer que muitos pagãos convertidos trouxeram práticas e crenças de seus velhos credos para a nova fé. Nessa bagagem, se incluem as vestes da época, que eram usadas independentemente das celebrações religiosas, já que eram o vestuário padrão da época (túnica, estola, por exemplo), e acabaram, por força do costume, sendo mantidas nas celebrações cristãs, mesmo quando o vestuário padrão foi alterado pelos séculos. Assim, os paramentos cristãos que vê-se em bispos e padres são baseados em vestes romanas, que não invocavam qualquer significado religioso (o vestuário sacerdotal pagão era o manto, adornos diversos, calças, coroas de louros, cinturões de prata, e por aí vai, totalmente diverso das roupas cristãs; ou nenhum, se se tratavam de cultos sexuais). Os símbolos cristãos (o cordeiro da páscoa, a cruz, os títulos de Cristo etc) são de origem mais judaica do que pagã; por outro lado, uns poucos tem uso no paganismo, embora com sentido totalmente diverso. A própria cruz era um símbolo de maldição, não de divindade, entre os pagãos. Já quanto à polêmica data do 25 de dezembro- nascimento do deus sol, Apolo, ou de Mitra-, cabe uma observação simples. O panteão romano possuia centenas de deuses, onde cada um fazia aniversário em um dia do ano. Fatalmente, o dia do nascimento de Jesus coincidiria com a natividade de algum desses deuses. Aliás, a conversão das datas da Bíblia, que trariam o período aproximado de nascimento de Jesus, do calendário judaico para o gregoriano (adotado por nós) cai exatamente na última semana de dezembro.
Os templos foram, em pequena parte, reaproveitados do paganismo, e seguiam a mesma ordenação judaica, que lembra, de fato, as construções pagãs. A presença de um altar é clássica (bem como a ideia de sacrifico de sangue), junto com as imagens dos santos, que, segundo a doutrina da Igreja, tem função apenas de recordar o testemunho daqueles que retratam- uma função de reverenciação, não de adoração. As preces dirigidas aos santos tem fundamento bíblico, já que Deus não é um Deus de mortos, mas de vivos; e o "poder'' de homens e mulheres que morrem em testemunho da fé, e são alçados à companhia do Pai, se resume em apenas rogar a Deus que conceda a graça pedida, ao contrário dos deuses menores, que tinham poder por si mesmos; estes serviam à própria grandeza, enquanto os santos servem à grandeza de Deus. Claro que, por uso e costume, certos santos acabaram associados a certas causas- a gravidez, a chuva, a fertilidade dos campos, a boa governança- , embora essas crendices não tenham valor dogmático algum.
Uma crítica mais séria com relação à cópula paganismo/catolicismo passaria, necessariamente, pelo maniqueísmo. Tal doutrina, uma seita da religião persa, acreditava na existência natural do bem e do mal na matéria, que se digladiavam em uma luta cujo desenrolar seria o fim dos tempos. A ideia de que o homem tem, naturalmente, o mal dentro de si, é vista como o embasamento pelo qual Santo Agostinho elaborou a doutrina do pecado original; todavia, na doutrina agostiniana, o homem adquiriu o pecado, não o tendo naturalmente, (já que é imagem e semelhança de Deus). Aliás, o dualismo persa fundava-se em dois deuses opostos, onde um não era "melhor'' que o outro. Já o cristianismo se apoia na existência de um único Deus.
Por outro lado, a acusação de que a figura de Cristo foi inspirada em Mitra, Khrishna e outros deuses sequer merece contraposição. As doutrinas religiosas respectivas são tão alienígenas entre si que exclui-se qualquer "coincidência'' entre ambas, além da patente falta de documentos históricos - inexistentes, em tal caso- que comprove tal tese absurda.
Enfim, a acusação de que o catolicismo é uma síntese entre paganismo e cristianismo - não tendo "originalidade'', e, portanto, veracidade, como religião fundada pelo próprio Deus- é, no mínimo, infundada, se não fantasiosa.
3- As Cruzadas: a matança em nome da fé?
Avançando um pouco no tempo, e deixando para trás certas polêmicas (a corrupção no papado, durante o século IV, e a "pornocracia'' do século X), chegamos aquele que, se não for o maior, é, ao lado da Inquisição, considerado como um dos maiores crimes da religião católica: as expedições militares, conduzidas pela nobreza europeia, contra os mulçumanos, visando libertar a Terra Santa de seu domínio.
Antes de mais nada, comecemos por analisar como a Europa estava naqueles tempos. Depois de um longo período de invasões por parte de vikings, sarracenos e magíares, as terras cristãs conheceram certo alívio. Todavia, o fortalecimento dos senhores feudais levou a constantes guerras internas, já que os poderes centrais não podiam garantir a ordem, com cada vez mais roubos, assassinatos e estupros.
Por outro lado, a Europa vivia um período de grande aumento populacional, que gerou as fortes disputas por terras e poder. O comércio começou a renascer. Como a produção agrícola, base da economia feudal, era extensiva, ou seja, só aumentaria com o crescimento da área plantada, novas terras se faziam necessárias para atender a demanda de alimentos. Mas onde conseguir mais terras?
Nesse cenário, a única instituição que conseguia garantir um mínimo de paz era a Igreja, que elaborou normas morais rígidas (códigos de conduta, como o da cavalaria) para conter a anarquia social que ameaçava destruir a civilização, resultando em prolongadas guerras, fomes e mortes. Em suma, a Igreja era a pedra a basear a luz da ordem contra as trevas do caos.
A dispersão do poder político e a super-fragmentação da Europa medieval abriu um gigantesco vácuo, que somente a Igreja poderia ocupar. Ela se tornou o centro de produção de normas morais e jurídicas que garantiram legitimidade a ordem feudal, a única possível diante do cenário caótico da Europa. Isso implica dizer que o modelo feudal respondia satisfatoriamente às necessidades sociais reinantes; por outro lado, a hegemonia cultural da Igreja criava um fator de unidade que, no futuro, seria o cimento da construção dos Estados nacionais. Seria ela o único fator que levaria os europeus a se unirem em uma causa em comum.
Dentro dessas normas morais, oriundas de dogmas religiosas, estavam as peregrinação a lugares santos. E, desde o império romano, os cristãos viajavam à Palestina para visitar os lugares santos, sem serem molestados; situação que mudou radicalmente quando os turcos seldjúcidas conquistaram Jerusalém e passaram a massacrar grupos de cristãos que se aventuravam a ir aos lugares onde Cristo viveu. Essa insegurança levou a formação de grandes expedições, resguardadas por verdadeiros exércitos, com o fim de garantir segurança para as peregrinações.
Por outro lado, o Império Bizantino fora derrotado pelos mesmos turcos e se encontrava por um fio. Evocando a causa comum contra os pagãos (embora bizantinos e católicos tenham rompido em 1054, no grande cisma do oriente), o imperador Alexis pediu ajuda ao Papa Urbano II, que convocou bispos de toda a Europa e, em Clermont, conclamou uma grande multidão de fidalgos e populares para retomar a Terra Santa, considerada o umbigo do mundo, o reino dos céus e o lugar de remição de todos os pecados cometidos; "francos! Vós dois grandes cavaleiros? Pois empenhem a lança para rasgar as trevas e libertar o sepulcro de Nosso Senhor! Deus o quer!'', dizia o Papa, para o êxtase da multidão, reunida no castelo de Clermont. O apelo imperial foi apenas o gatilho que detonou o processo. Por outro lado, mercadores europeus, que visavam ampliar seus parcos negócios através do domínio do um valioso entreposto comercial que era Jerusalém, entraram com o dinheiro para construir navios e comprar armas para os exércitos nobres.
Logo, uma turba de camponeses partiu para o leste, saqueando castelos e incinerando tudo em seu caminho, até chegar às portas de Constantinopla. Lá, a dita cruzada dos mendigos partiu para a Turquia e foi exterminada pelos turcos.
Os nobres se uniram sob o comando de grandes duques, embora os exércitos tenham se compondo de camponeses desgarrados, que queriam livrar-se dos laços de submissão feudal; cavaleiros oriundos da baixa nobreza e filhos não-primogênitos, que não tinham direito à terras; mercenários, criminosos, bêbados inverterados e, por fim, mercadores (venezianos e genoveses) sedentos de lucro. Em suma, tratavam-se dos "excluídos'' (a exceção dos duques) da sociedade que se formava: a Terra Santa seria um lugar para eles. Essa era a promessa implícita nas palavras de Urbano II, quando se referiu ao perdão dos pecados. A Terra de Cristo era o lugar de um novo começo para os excluídos resultantes do modelo feudal, que, ao mesmo tempo, cresceu tanto que se viu como única alternativa a expansão geográfica (como a produção agrícola, base da economia feudal, era extensiva, ou seja, a colheita só aumenta com o crescimento da área plantada, novas terras se faziam necessárias²).
Diante disso, alguns parecem esquecer que os valores de coexistência mútua e pacífica entre povos são relativamente recentes. Na idade média, um povo precisava conquistar seu espaço, geralmente contra outras etnias, pela força da espada.
E as cruzadas nada mais foram que um movimento de expansão da sociedade europeia rumo à novas terras, por necessidades econômicas, demográficas (super-população), políticas e religiosas; um movimento de expansão cultural, populacional e militar, legitimado pela religião. Os mesmos sarracenos atacados fizeram o mesmo ao conquistar impérios inteiros pela força; da mesma forma que os chineses, durante a dinastia Jing; os mongóis, sob a liderança de Gengis Khan; a França de Luís XIV, a Inglaterra pós-revolução gloriosa, os EUA pós-2ª guerra. Impérios e riqueza são forjados pela guerra.
Se a religião não fosse fundamento do cruzadismo, qualquer outro poderia ter sido elaborado, já que sua causa foi de ordem sócio-econômicas. Ou seja, a doutrina cristã (um fator superestrutural) não "causou'' as cruzadas, mas sim fatores de ordem estrutural, já citados.
Essas constatações não fazem muita diferença quando se retratam as batalhas dos cruzados na Palestina. Retratos de canibalismo, massacres de mulheres e crianças e saques furiosos foram frequentes. O pior se deu quando, em 1099, os exércitos cristãos, sob a liderança do duque de Lorena e seus pares da Normandia, conquistaram Jerusalém e, numa onda de fúria, mataram, em três dias, 100 mil pessoas, incluindo cristãos de outras vertentes, judeus, velhos, crianças, mulheres grávidas. Não há como negar a selvageria do ataque.
Os mais sensíveis podem se indignar. Mas essas situações eram de praxe no sombrio mundo medieval, não sendo consideradas crimes na época, mas direito de guerra dos vencedores, da Noruega à China. Não houve ordem alguma do Papa, bispos ou da orientação oficial da Igreja sobre tais massacres, embora alguns pregadores tenham exagerado e condicionado a morte de sarracenos ao perdão dos pecados; os saques ocorreriam de qualquer modo, conclui-se. A Igreja, em geral, dizia que os inimigos mortos em combate não resultavam em ofensa ao mandamento do "não-matar'', já que se tratava de "malecídio'', matar o mal; ou seja, a Igreja oferecia apenas a absolvição do ato de matar na guerra, já que, em qualquer conflito armado, tal prática fosse óbvia. A orientação oficial da Sé sobre o assunto era de que indefesos, como mulheres e crianças, deveriam ser poupadas, mesmo sendo islâmicos.
No mais, tirando alguns excessos cometidos durante a primeira cruzada, as demais foram relativamente tranquilas. Os europeus invadiram o território, dividiram-no em feudos e estruturam esses senhorios a laços de vassalagem com o Reino de Jerusalém, numa reprodução do regime feudal da Europa, comprovando a tese de que o sistema europeu desejava, com as cruzadas, uma expansão geográfica, ao invés de uma pura empresa religiosa. Fé não alimenta bocas ou faz correr moedas de ouro. Como já dito, nobres de baixo nascimento, camponeses, mercenários e exilados diversos colonizaram a Terra Santa, embora em número infinitamente inferior ao da população local, que permaneceu mulçumana, com todos os direitos de cultivar sua fé garantidos, em um clima de liberdade religiosa vital para assegurar alguma estabilidade para um reino onde, para cada cristão, existiam 10 sarracenos ou mais.
O Reino cristão permaneceu firme por décadas, até que alguns radicais, objetivando dominar rotas comerciais, atacaram caravanas de islamitas, nos territórios dominados por Saladino, sultão do Egito, Síria e Bagdá. A situação foi bem conduzida pelo rei de Jerusalém da época, Balduíno IV, o leproso, um habilidoso político e diplomata, que buscou, junto com alguns nobres (como Balian de Ibelin, retratado no filme "Cruzada'') estabelecer a paz e a tolerância mútua entre os credos. Sua morte pôs fim ao projeto e levou Guy de Lusignan, casado com a irmã de Balduíno, Sibila, ao trono, junto com o bando de radiciais responsáveis pelos saques às caravanas de Saladino. No fim, Saladino declarou guerra aos cristãos e conquistou Jerusalém, poupando os cristãos. As demais cruzadas fracassaram todas, menos a sexta, liderada por Frederico II; as últimas foram comandadas pelo rei francês Luís IX, mais tarde São Luís (acima). Mesmo assim, os cruzados terminaram expulsos da Palestina e, a partir daí, o sistema feudal europeu, diante do aumento do comércio, do poder real e das contradições do sistema (baixa produção, revoltas campestres etc) entrou em uma lenta autofagia, que só terminaria coma Revolução Francesa.
As cruzadas, porém, se deram em outras regiões, como no Báltico e atual Prússia (cruzada dos cavaleiros teutões contra os eslavos), no sul da França (Simon de Monfort liderou uma tropa para destruir os albigenses; o objetivo oculto era fortalecer a monarquia francesa) e na península ibérica (cruzada pela expulsão dos mouros da região). Todas de cunho expansionista- econômico, diga-se de passagem. Já ocorriam batalhas por tais objetivos, em suas respectivas regiões, muito antes do Papa (no caso, Inocêncio III) convocar as respectivas cruzadas.
5- A suposta tirania e a "opulenta'' riqueza da Igreja Medieval
Explicadas as Cruzadas, podemos passar a um ponto um pouco mais polêmico. A ação da Igreja, após sua aliança com Carlos Magno, prolongando-se até o início do modernidade, é maculada, por historiadores, como um período sombrio onde a razão era abominada, normas morais eram impostas pela força e sacerdotes integravam a cúpula de uma sociedade que explorava violentamente os pobres e indefesos. As acusações mais graves versam sobre a "conversão forçada'' de pessoas simplórias ao catolicismo ao enriquecimento fabuloso da instituição católica ao custo da miséria generalizada.
Realmente, a Igreja deteve mais da metade das terras na Europa, e recebia 10% da "riqueza'' de todos os territórios cristãos. Essa riqueza, contudo, não financiava o luxo de clérigos, que viviam, em sua maioria, da caridade do povo, nem da cúpula da Igreja, embora esta tenha sido suscetível a abusar do poder; a ideia básica era de que os recursos eram da instituição e deveriam ter sido usados na evangelização e manutenção das paróquias e dioceses. Foi assim, por um bom tempo, já que a sociedade feudal, eminentemente agrária, não gerava riquezas além de sacas de trigo, cevada e, talvez, algum bom vinho - a riqueza, no fim das contas, eram bens primários, como alimentos, que eram distribuídos para o sustento do clero e das inúmeras obras de caridade da Igreja. Alguns economistas liberais de nossos tempos criticam esse "solidarismo'' católico acusando-o de tornar os pobres medievais "preguiçosos e dependentes'', impedindo-os de gerar riqueza e restaurar um sistema econômico complexo - como o de Roma.
Assim, por 600 anos, a Igreja viveu das mesmas condições materiais da população. A grande reviravolta se dá com as cruzadas, o despertar do comércio e o fortalecimento das monarquias feudais. Lentamente, a Igreja é içada ao posto de única instituição a garantir a estabilidade dos novos Estados em surgimento, bem como a coexistência destes. Por outro lado, as riquezas da Igreja deixam de ser meros bens consumíveis e se monetarizam, excedendo, em volume, quantias que chegariam, em nossos dias, facilmente aos bilhões de dólares. Iniciou-se um processo, lento e desgastante, de corrupção do clero pela riqueza manejada e "secularização'' da atividade da Igreja, convertida em um ente político a disputar a soberania na Europa com as novas monarquias. Nessa época,
Inocêncio III, o papa cruzadista já citado, iniciou o projeto megalomaníaco de transformar a Casa de Pedro em um império universal, ordenando aos exércitos franceses que lutassem contra os dois focos de oposição ao poder papal - a Inglaterra de João Sem-terra e o sacro-império de Otão IV. Ambos foram esmagados na batalha de Bouvines, em 1214, que resultou na ascensão de Frederico II ao trono imperial, na concentração do poder nas mãos da família real dos Capetos e no declínio das forças feudais, personificadas na Inglaterra, vassala dos Capetos.
Estranhas e curiosas consequências nasceram de tal batalha ainda, como a imposição da magna Carta ao rei João. O apoio francês ao papa não se dava somente por devoção religiosa: a monarquia usou o poder da Igreja para unificar a cunhagem de moedas e os pesos e medidas dentro da França, bem como para fortalecer o poder real, transformando o país no mais poderoso, economicamente, da Europa. No fim, o rei Felipe IV, o Belo, negociou com o papado a "legalização'' da usura (empréstimos a juros ou lucro), até então proibida pela Igreja e, com o apoio de uma já poderosa burguesia, comandou uma inciativa inédita até então. Tomou de assalto a Igreja.
Mas como? O rei inciou uma querela com o Papa Bonifácio a respeito da tributação ou não do clero. Quando o Santo padre negou a ambiciosa inciativa de Felipe, este simplesmente ordenou a seu exército que capturasse o papa, que, pouco depois, morreu de desgosto. Com a força dos seus 30 mil soldados, Felipe transferiu a sede do papado para a França, em Avignon, onde, subornando os cardeais no conclave, conseguiu eleger Beltrão de Got, um cruel arcebispo francês, como Papa. Desnecessário dizer, Beltrão, agora Clemente V, cedeu às exigências do rei e passou a apoiar o processo de construção da autoridade real, destinando somas arrecadadas pela Igreja em toda a Europa em empréstimos duvidosos à Coroa francesa, que também já devia mundos e fundos aos Templários. Quando percebeu que a ordem militar templária dispunha dos recursos que precisava para fortificar cidades, manter exércitos e fomentar o comércio, Felipe IV ordenou a Clemente que dissolvesse a ordem e confiscou todos os seus bens.
A partir daí, a Igreja iniciou uma guerra - contra ela mesma. Anti-papas foram eleitos, depostos, reeleitos e enforcados, enquanto uma onda de corrupção se alastrava sobre o clero, onde padres e bispos viviam com concubinas, mantinham relações homossexuais e até participavam - em pequena escala- de cultos satânicos. Pregadores mendigos apareciam do nada, insuflando rebeliões nas massas camponesas contra os abusos do clero. Esse momento de crise da Igreja coincidiu com a grande crise do feudalismo, cujas contradições internas explodiam, devido à super-população e à disputa pelo poder entre reis e nobres, na forma de grandes revoltas dos servos e guerras arrasadoras entre as monarquias. Tratavam-se das terríveis calamidades que se pretendia superar com as cruzadas - o sistema feudal não expandiu e acabou explodindo.
A sede do papado permaneceu quase 70 anos na França - durante o chamado Grande Cisma do Ocidente-, e só em 1414 um papa, Martinho V, conseguiu ser o único titular do cargo. A luta pelo poder dentro da instituição, sua conversão em instrumento político nas mãos da monarquia francesa e o crescente nível de riquezas administradas pelo clero em contraposição ao empobrecimento geral da população quase destruíram a mais antiga instituição do planeta na época. Contra isso, um grupo de clérigos de Cister, fundados pelo mesmo papa Bonifácio que enfrentou Felipe IV, liderou uma renovação nas práticas do clero, condenando padres casados, punindo aqueles que desviavam os recursos da Igreja e se distanciando das questões políticas - esse grupo respondeu ao caos da sociedade feudal com a dureza necessária. Isso se resume a dizer que a Igreja puniu, com elevado rigor, todos seus membros que se distanciavam de suas normas de conduta, bem como seus próprios fieis. Torturas, humilhações e mortes se deram aos milhares, numa violência proporcional ao caos social reinante - no fim, a sociedade europeia manteve sua coesão, em vez de se despedaçar em inúmeras seitas sob o comando de senhores da guerra ou companhias de comércio inescrupulosas. A verdade é que, sem esse rigor, a ordem social poderia ter sido dissolvida, não acarretando uma revolução democrática - como pensam alguns teóricos socialistas-, mas abrindo espaço ou para a dominação da Europa pelo Islã ou para ainda mais fome (1317), pestes (1346-1353) e guerras (1337-1455).
Assim, alguns historiadores costumam dizer que a Igreja aliou-se aos novos monarcas absolutos que emergiram desse caos do fim da era medieval para manter a ordem social excludente e os privilégios do clero. E estão certos. Só esquecem de lembrar que, nesse período, já adentrando ao Renascimento, a cúpula da Igreja transformou-se em uma casta controlada por um complexo jogo de influências políticas e comerciais, onde a religião era a última coisa que importava. Um verdadeiro véu a ocultar a podridão do clero. Mas, ora... os próprios membros do baixo clero revoltaram-se contra essa situação. E eles não estavam sós: vários bispos e mesmos cardeais pregaram em favor da restauração dos princípios evangélicos e denunciaram a transformação da Igreja de Cristo em títere de reis e companhias de comércio. Em suma, como já devem ter percebido, caros leitores, desde a luta entre Bonifácio e Felipe IV, houve uma verdadeira batalha de classes - e ideias- dentro da Igreja. Ela estavam longe de ser una.
Um dos partidos a combater, dentro da Igreja, daria luz a um movimento inicialmente reformista, mas que posteriormente romperia com Roma. A reforma protestante nasceu do esforço de recuperar a Igreja e expurgar, dela, os interesses políticos e comerciais.
6- A Santa Inquisição: genocídio ou propaganda?
Como vimos, a Igreja deixara de ser a instituição universal que fundava a ordem moral e social coletivista dos princípios do feudalismo, assegurando o surgimento de uma nova Europa dos escombros do império romano, para se tentar se tornar um império temporal, nos moldes do romano. Essa tentativa malograda resultou no controle do clero por parte das monarquias, foi uma das causas da crise do feudalismo e do terrível caos do século XIV. Nem mesmo os abades de Cister recuperaram a Igreja, que se converteu em mais um principado terrestre em tudo, menos no nome, alimentando movimentos de contestação e de luta no interior do clero que se transformariam na Reforma Protestante.
A Reforma Protestante baseou-se na tentativa de purificar as práticas viciadas do clero com respeito à venda de indulgências, cobrança para ministrar sacramentos e reconfigurar a doutrina dogmática da instituição; o objetivo era proibir a monetarização da religião cristã, consequência da ascensão do comércio, mas ao mesmo tempo "remodelar'' a doutrina oficial para torná-la compatível com a ideologia da classe burguesa, transformando o cristianismo solidarista em um cristianismo individualista. Nada de santos, imagens, terços e, sobretudo (isso sim, de mais relevante) da autoridade do Papa. Essa exclusão do bispo de Roma se dava porque os movimentos protestantes foram financiados e apoiados, posteriormente, por príncipes e reis desejosos de por as mãos nas riquezas da Igreja.
Como forma de combate ao protestantismo, a Igreja restaurou a força da Inquisição, fundada no século XIII, tendo sido responsável pela morte, tortura e prisão de milhões de pessoas. O problema dessa interpretação, muitas vezes repetida centenas de vezes em nossa formação educacional (e uma mentira cem vezes dita torna-se verdade para quem ouve) é que não há correspondência entre os fatos e tais ideias. A Inquisição não tinha autoridade para matar, sendo esta prerrogativa dos reis (o Estado), já que o Estado moderno já nascera. Como tal, os reis usaram a Inquisição para extirpar a oposição ao seu poderio, tomando terras e bens dos opositores políticos da monarquia.
Cabe esclarecer os fatos: com a crise do mundo feudal e as grandes guerras, pestes e fome subsequentes, o misticismo da população despertou e um dos bodes expiatórios das mazelas da época eram as mulheres que viviam à margem da sociedade - desde prostitutas à curandeiras. A maioria das "bruxas'', como foram acusadas em um movimento supersticioso que começou na atual Croácia, no século XV, foram mortas, enforcadas ou queimadas, pelos próprios populares, literalmente linchadas por povos desesperados, que precisavam culpar alguém pelos problemas sociais. A Igreja acabou com essas execuções e regulou o processo, pondo fim a um clima de terror e, no fim, salvou milhares de pessoas da morte certa nas mãos de radicais religiosos.
O próprio número de "vítimas'', a partir do funcionamento da Inquisição, não foi alto; alguns historiadores falam em menos de 50 mulheres condenadas e queimadas por "bruxaria'' na Espanha, sendo, em todo o ocidente, menos de 200 as vítimas. As mortes "comuns'' (aquelas imagens que se tornaram praxe no imaginário coletivo, jovens e liberais mulheres "livres'' mortas por "bruxaria'') eram raras, já que, quando os investigados eram pobres - não inimigos do rei, diga-se-, as confissões se davam depressa. Muitas das vezes, sem tortura. A "pena'' era a expiação dos pecados com penitências, votos de castidade e afins. E, no fim, poucas fogueiras foram erigidas - a maioria, durante cinco anos, durante o reinado de Felipe II, na Espanha, que estavam em guerra contra os protestantes dos Países Baixos. Desnecessário dizer, a maioria dos mortos ( e dos torturados) nessas "fogueiras santas'' eram prisioneiros holandeses e flamengos, (durante a rebelião dos Países Baixos) militares ou autoridades das regiões rebeladas, que, na prática, recebiam a pena de morte por traição ao rei - que também era interpretada como traição à religião, ou seja, heresia, muitas vezes com o plus da bruxaria (principalmente quando as forças espanholas eram derrotadas, o que se explicava pela "magia negra'' praticada pelas forças neerlandesas...). Claro que os protestantes holandeses e suiços - calvinistas- deram o troco e chacinaram milhares de soldados católicos em suas próprias fogueiras...
As ditas guerras religiosas que mataram centenas de milhares tinham pouca motivação religiosa. A disputa era por terras, na Europa e no Novo Mundo, monopólios comerciais e mesmo vaidades pessoais dos reis (vide Henrique VIII...). A Igreja tentou se inserir nessas disputas, mas eram dela as únicas vozes de protesto contra a matança desenfreada, a ganância e a cobiça dos reis. Também era ela a única a colher órfãos, viúvas, feridos e esfomeados - enquanto algumas igrejas protestantes alegavam que cada um deveria prover a si mesmo, sendo sua miserabilidade um "castigo'' por não trabalhar o suficiente... lembra muito o liberalismo posterior, não?
Em suma, o verdadeiro "genocida'' por trás da Inquisição chama-se Estado Moderno. O resto é propaganda de neo-ateístas e historiadores frustrados com a permanência e solidez da Igreja no século XXI diante do fracasso do comunismo.
Muito bem, essa foi a primeira parte da série "Uma luz sobre o lado sombrio da Igreja Católica''. Na próxima parte, vamos discutir um pouco sobre o papel da Igreja na colonização das Américas, sua polêmica relação com o racionalismo e as ciências da natureza e o suposto apoio ao nazismo por parte do papado.