terça-feira, 5 de abril de 2016

Treze teses contra o impeachment - parte I



Tenho uma tendência a não concordar com "pensamentos únicos''. Ultimamente, é um incômodo relevante a certeza que alguns parecem ter de que o pedido de impeachment da presidente da República é algo inquestionável. É por isso que cabem treze pequenas observações sobre o que, juridicamente, está em jogo nessa discussão toda - que não se resume à vaidades acadêmicas e disputas doutrinárias (ou pior, um jogo partidário sem escrúpulos) mas ao o próprio Estado democrático de direito.

1- O cabimento do impeachment. Pode tirar a Dilma de qualquer jeito?

É cediço que “impeachment’’ (uma palavra inglesa que significa “impedimento’’) foi uma das primeiras formas de controle político do parlamento inglês sobre os ministros do rei. Como hoje, o processo era aberto quando algum ministro cometia uma violação legal de seus deveres, o que atravessou o atlântico até nós sob o nome de “crime de responsabilidade’’. Tal tipo de ilícito é imputado, como forma de controle, aos presidentes da República, prefeitos, governadores e algumas autoridades, que perdem o mandato ou cargo por decisão do órgão legislativo. Por tal gravíssima consequência – “anular’’ o voto popular que conferiu ao indivíduo o mandato eletivo - o crime de responsabilidade tem algo de mais gravoso que os crimes comuns, sendo especialmente reprovável na medida em que atenta contra a Constituição Federal – que é basicamente construída sob o pacto federativo como fundante da nação, a Separação de poderes como organização estatal básica e a prevalência dos direitos fundamentais como escopo de toda essa formação estatal.
Em suma, o impeachment é cabível, especialmente no âmbito punitivo do presidente da República, quando este macular algum aspecto relevante desses três pilares da Constituição (violando o pacto federativo, usurpando ou desrespeitando o poder Legislativo – inclusive descumprindo a lei- ou maculando direitos básicos do cidadão), violando um dever de função e, mais além, o próprio juramento de defesa da Constituição que profere ao tomar posse do cargo máximo do país. E somente nesses caos.

2- O que é crime de responsabilidade? Vale tudo?

Apesar de parecer fácil a simples literalidade do termo, poucos institutos provocam debates tão viscerais quanto o significado dessas três palavras. Pontes de Miranda dizia que não passavam de crimes no sentido jurídico do termo – condutas típicas, ilícitas e culpáveis – enquanto a maioria dos autores diz ser uma “infração político-administrativa’’ ou um conceito de caráter misto. Pode parecer irrelevante, mas a natureza jurídica desse tipo de “crime’’ pode determinar o futuro de um país.
O crime contra a responsabilidade, a meu ver, não é um “crime’’. A nomenclatura é imprecisa e errônea, já que se usou um termo especificante para se referir a algo que só o gênero poderia representar adequadamente. Explico: o nosso crime de responsabilidade (espécie) é uma “infração’’ (gênero) tal qual um crime comum (outra espécie) também o é. Ambos pertencem a um mesmo gênero, mas não se confundem, se distinguindo quanto ao tipo de pena que prescrevem, algo que decorre diretamente da importância social a que se atribui o bem jurídico que ambas tutelam – o que termina por determinar se o bem “não é tão importante’’ e pode ter seu prejuízo somente indenizado (infração civil), se é mais importante e deve ser “restaurado’’ com a prisão do infrator (infração penal) ou, se mais importante ainda, motiva a “anulação’’ do voto popular e a queda de um presidente eleito do poder (crime de responsabilidade). Como já dizia Aníbal Bruno, todo ilícito é uma contradição à lei, seja penal, cível ou crime de responsabilidade, mas tudo depende da hierarquia de valores envolvida.
Mas, enfim, qual a grande consequência dessa conclusão? Qualquer tipo de infração, seja política ou não, é composta de uma ou mais ações, condutas, comportamentos, que infringem a lei, e por isso devem se dar dolosamente (ou seja, com a intenção inequívoca de infringir a lei) contra um tipo prévio – uma descrição conceitual de uma conduta ilícita – que, por lógica, deve ter alguma claridade textual. Ou seja: o crime de responsabilidade, sendo uma infração, se sujeita claramente à necessidade de dolo (tal como os atos de improbidade administrativa, que tem natureza cível) e à previsão de um enquadramento legal prévio e claro e, além do mais, deve atentar contra os três pilares já delineados da Constituição Federal. No nosso sistema jurídico, a tipicidade dos crimes de responsabilidade está nos artigos 85 da constituição e na Lei 1079/50.

3- A “materialidade’’ dos crimes imputados à presidente. (Ela roubou mesmo a gente?)

Ausência de materialidade (tipo penal aberrante, formado por três diplomas legais) Adentrando finalmente ao caso da sra. Presidente, nos perguntamos se, diante do conceito de crime de responsabilidade, se a primeira mandatária do país é uma infratora ou não. Dilma está sendo acusada de violar a lei orçamentária, de atentar contra a probidade da administração (não tornar efetiva a responsabilidade de seus subordinados) e se opor diretamente ao livre exercício do poder Judiciário.
Para averiguar a responsabilidade da mesma, precisamos seguir a lógica do regime de governo adotado pela Constituição (o presidencialismo): ora, se somos um país presidencialista, será que tais infrações deveriam ser interpretados como se fossem abertos e vagos – o que é atentar contra a probidade da administração? Nomear um ministro que responde a processo judicial? Quantos presidentes, inclusive FHC, não praticaram tal “crime’’? - e assim seriam aptos a embasar a deposição do presidente eleito, como se num regime parlamentarista o fosse? Resumindo: vamos permitir que, dada a excessiva abertura dos conceitos jurídicos trabalhados, qualquer conduta neles se enquadre e assim derrubemos qualquer presidente que se mostre “inconveniente’’? Seria assim se, como os defensores do impeachment desejam, simplesmente fossemos lançados num vácuo de total arbitrariedade quanto ao conceito em si de crime de responsabilidade – para eles, como se trata de uma infração político-administrativa julgada em um “tribunal político’’, vai existir crime de responsabilidade se o Congresso (Câmara e Senado) julgar como tal ou não. Não entendo assim; pensar dessa forma é absurdo.
Não há dúvidas de que o crime de responsabilidade, tal como qualquer infração, precisa ter um mínimo de materialidade (lastro fático de existência e previsão legal configurada) para existir; e nenhum crime desse tipo se materializa sem o ataque contumaz, doloso e direto à Constituição Federal em seus alicerces. Desnecessário dizer que é preciso um mínimo de provas a esse respeito. É só aí que veremos se as “pedaladas fiscais’’ a gravação ilícita divulgada nos últimos dias e a “corrupção sistêmica’’ do petrolão são realmente imputáveis à presidente e uma vez o sendo, se atingem a ordem constituição naquilo que lhe é mais caro

4- A competência de admissão e julgamento: política ou jurídica? É só ter os votos?

Antes de examinar as acusações uma a uma, cabe lembrar um pouco de quem julga os chamados crimes de responsabilidade. Genericamente, a mídia e juristas chegados aos holofotes dizem que a “abertura do processo de impeachment começa com o recebimento a denúncia, que pode ser feita por qualquer um, pelo presidente da câmara, e que será examinada por uma comissão especial na câmara dos deputados, que produzirá parecer a ser votado em plenário.’’ Está errado. O processo só se inicia, realmente, quando os deputados votam pela abertura do mesmo, depois de dois filtros: a admissão da denúncia pelo presidente da Casa e seu respaldo pela comissão especial. Em ambos os momentos, o que se questiona é justamente se há materialidade (comprovação da autoria dolosa, provas do delito em si e ataque à Constituição) a respeito da infração política. A rigor, sem um desses três elementos nenhuma denúncia deveria sequer ser examinada pelo plenário.
A admissão da denúncia pela Câmara abre o processo em si no Senado, que funcionará como um “tribunal do júri’’ onde a maioria absoluta dos senadores tem que votar pela condenação para derrubar o presidente. Dizem que, por essas peculiaridades, o processo de impeachment se revela como um julgamento puramente político, visto que não há “processo formalizado’’, nem juízes imparciais. Bobagem. Não há discricionariedade política alguma, ou não deve haver, nesse julgamento (os requisitos do crime de responsabilidade devem ser examinados e atestados de forma fundamentada, não simplesmente alegados superficialmente; a arbitrariedade é própria das ditaduras, não da democracia). A competência da Câmara e do Senado se explica pela lógica: se o que está em jogo é o mandato presidencial conferido pelo voto popular, somente o voto popular – indireto, através dos representantes eleitos do povo – pode retirar o que o próprio voto conferiu. É uma regra de legitimidade da decisão dos parlamentares, não um indicativo de que o julgamento é “político’’. Não é. É eminentemente jurídico (com regras, trâmite, prazos, dever de fundamentação das decisões etc. previamente definidos em lei e na Constituição).

5- As "pedaladas'' fiscais (ou Dilma, a caloteira)

Enfim, chegamos ao âmago das acusações. Desde 2014, dizem por aí que a presidente descumpriu a lei orçamentária, ao determinar que os bancos públicos pagassem do próprio bolso benefícios sociais (como o Bolsa família) para depois serem ressarcidos. Ora, dizem os autores do pedido de impeachment, a operação é evidente empréstimo feito pelo governo federal aos bancos para financiar suas despesas do dia a dia, o que é vedado pela Constituição e pela Lei de Responsabilidade fiscal, em seu art. 36. O fim da manobra era passar a impressão de que o governo tinha finanças saudáveis e liberar recursos para gastar em outras áreas.
Adianto que, de todos os fundamentos do impeachment, este é de longe o mais risível; “pedalada fiscal sempre se fez’’ disse Delfim Netto, comentando que quando os generais presidentes mandavam no país já se pedalava muito nas contas públicas. Nos tempos de Fernando Henrique, era comum que o governo atrasasse o repasse a bancos públicos e eles tivessem que tirar do próprio bolso. O próprio Tribunal de Contas da União, que emitiu parecer pela reprovação das contas presidenciais de 2014, já havia se debruçado sobre a questão lá em 2001 e 2002, e disse claramente que “eram apenas irregularidades sanáveis’’. Mas não era errado e passou a ser com a Dilma? Isso não importa. Vejamos.
A pedalada fiscal não ataca a essência da Constituição; não é crime contra a lei orçamentária. Perceba que o Congresso autoriza, por meio da lei orçamentária, que o governo gaste X em despesas e recolha X em despesas. Ora, quando o governo atende a esse comando, mas não chega a arrecadar X completamente (como aconteceu) por meio de um empréstimo subterrâneo aos bancos públicos, ele adia a despesa fixada na lei orçamentária para pagar o resto depois – mas não a descumpre, já que o fim da lei orçamentária é impedir que o governo gaste recursos sem autorização legislativa (dizer que o "empréstimo'' aos bancos é uma espécie de receita pública é a extrema forçação de barra, já que nunca passou pelo caixa do governo). Por outro lado, é óbvio que a lei de responsabilidade fiscal foi infringida, mas ela não é, a rigor, “lei orçamentária’’ - só temos três leis orçamentárias (Plano Plurianual - PPA, Lei de Diretrizes orçamentárias- LDO e Lei orçamentária anual - LOA).
Ou seja, quando a Constituição faz referência à infração à lei orçamentária, ela se reporta a algo muito maior que a lei de responsabilidade fiscal e seu art. 36 (que sequer estabelece se sua quebra é um ilícito administrativo, como sempre foi considerado no âmbito do TCU e dos tribunais de contas estaduais, que aplicavam uma multa ao secretário do Tesouro e opinavam pela aprovação das contas com ressalvas): a própria vinculação do poder Executivo à lei orçamentária (PPA, LDO e LOA) como expressão da limitação do referido poder sob o poder Legislativo. É preciso uma conduta tão grave que, concluindo, resulta num ultraje ao poder Legislativo, seja por meio do gasto sem autorização legislativa, seja por meio da captação de receitas sem autorização. No caso das pedaladas, houve o adiamento de despesas – nenhum centavo passou para as mãos do governo, nem por ele foi gasto, sem autorização.
O próprio termo “pedalada’’ quer dizer, jocosamente, uma molecagem. Jeitinho brasileiro mesmo. É suficiente para derrubar uma presidente? Imagino que não. Talvez seja para aprovação das contas presidenciais com ressalvas e uma multa ao secretário do tesouro, mas não para anular 54 milhões de votos.

6- Os decretos de abertura de crédito suplementar ("querido, peguei um dinheiro da sua poupança para umas despesas urgentes...'')

O trunfo dos defensores do impeachment são uns decretos, assinados por Dilma e Temer, que autorizam gastos supostamente sem autorização do Congresso, por meio de créditos suplementares (é dinheiro público “de reserva’’, usado quando há insuficiência de receitas, como fazemos quando tiramos dinheiro da poupança). Seria, a primeira vista, uma violação clara ao princípio da Separação de poderes... se não existisse autorização legislativa. Está no artigo 4º da lei 13115/2015 (Lei orçamentária de 2015), que claramente autoriza o Executivo a liberar créditos suplementares, desde que atendidos alguns requisitos (o cumprimento da meta fiscal, por exemplo, que foi atendido com a alteração da própria meta em dezembro de 2015, e a indicação da origem dos recursos, que também ficou clara nos decretos).
Os autores do pedido de impeachment, no entanto, argumentam que o governo “já sabia’’ (sic) que não ia cumprir a meta fiscal (a projeção de gastos x receitas) do ano e mesmo assim liberou os pagamentos.
Mas próprio governo enviou um projeto ao Congresso para corrigir a meta fiscal de 2015 (que antes previa superávit de algumas dezenas de bilhões) para abarcar os gastos imprevistos ao longo do ano (crédito suplementar serve para isso). Votando o projeto, o próprio Congresso, responsável por julgar o suposto “crime’’, chancelou a alteração – que inclusive deixa os créditos abertos ao abrigo da nova meta fiscal, de déficit de pouco mais de uma centena de bilhão – exercendo sua competência de autorizar todos os gastos do Executivo. Autorizou antes, com a Lei orçamentária; autorizou depois, com a alteração da meta fiscal. Qual o crime? Pode ter sido uma bela lambuzada fiscal – mas foi chancelada pelo Congresso, sem qualquer ataque frontal e doloso à Constituição.
Cabe dizer aqui que, mesmo que o TCU, contra sua própria "jurisprudência'', tenha opinado por rejeitar as contas da presidente de 2014 - pelas pedaladas e os decretos - seu parecer é meramente consultivo, cabendo ao Congresso rejeitar, ou não, as contas. E até agora, nada.

7- A “grave omissão’’ presidencial quanto à “corrupção sistêmica’’ na Petrobrás ("ela sabia!'')

Para fechar a primeira parte, o ponto realmente mais polêmico e sério do pedido de impeachment diz respeito à responsabilidade da presidente pelo petrolão. Dilma teria se omitido diante da corrupção na Petrobrás e se beneficiado da mesma.

É justamente nesse ponto que vem a calhar a nossa conceituação de crime de responsabilidade como “infração’’ por que faltou aos autores do impeachment comprovar o dolo (ou seja, a intenção e vontade da presidente em se omitir)da presidente em se omitir e “se beneficiar’’ da corrupção. Até agora, não se comprovou nenhuma ligação da presidente com o esquema da Petrobrás, muito menos uma omissão dolosa a esse respeito. Na verdade, o que os autores do impeachment querem consagrar é a aplicação da “teoria do domínio do fato’’ também aos crimes de responsabilidade (é, quando é conveniente alguns juristas gostam de confundir infrações políticas e infrações jurídicas, em outras se apegam tenazmente à diferença... curioso, não?), onde se presume a culpa de quem detêm o comando funcional por atos praticados por seu subordinado. Desnecessário dizer que essa teoria, aberrante se aplicada nas condições erradas, pode conduzir à culpabilização de um inocente por mera presunção – um “achismo’’. E alguém pode condenar alguém por achismo?

Até que comprove que Dilma no mínimo se omitiu dolosamente de punir crimes na estatal (isso nem a delação do Sr. Delcídio conseguiu), ela é seguramente inocente. Sem lastro probatório mínimo, essa parte específica do “pedido de impeachment’’ é uma mera peça de presunções que apenas exibe um inconfesso desejo de retirar do poder um partido do qual os autores do pedido discordam. Fica claro quando eles dizem que “a presidente brinca com a boa-fé do cidadão brasileiro.’’

E assim encerro a primeira parte da análise do pedido de impeachment. Falta, ainda, examinar o dever da presidente de punir seus auxiliares, a delação premiada do Sr. Delcídio, as gravações divulgadas pelo Juiz Moro e o controle de legalidade pelo STF. As duas últimas teses dizem respeito ao dia depois do impeachment – e ao perigosíssimo precedente que um pedido tão desprovido de fundamentos como este pode gerar se for acolhido pelo Senado em seu veredicto final.

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