sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Dirceu e Genoino: o crepúsculo da geração de 68


Hoje o país se dividiu em comemorações e manifestações de repúdio. Como é típico, afinal, de uma nação historicamente dividida em dois pólos políticos que se enfrentam e se revezam no poder desde a independência. José Dirceu, o verdadeiro poder por trás do Lula do conto de fadas, está encarcerado. Genoino, outro manda-chuva do partido mais popular do país, idem. São dois nomes que, a independer de suas atuais funções na política nacional, trazem à lembrança de todos os que viveram e sofreram com o jugo da ditadura imagens, no mínimo, de herois. Dirceu era líder estudantil e comandou a histórica passeata dos cem mil embalado pela morte de Edson Luiz; Genoino combateu no Araguaia, foi torturado e massacrado. 

Ambos representam uma geração histórica que se convêm chamar de "geração de 68'', que se formou politicamente na luta contra o regime militar e, com Fernando Henrique Cardoso, chegou ao poder, a independer de suas divisões. São políticos, diga-se, que formularam um modelo político de desenvolvimento misto, com as bases do nacionalismo trabalhista de Vargas com nacos da doutrina socialista, que no Brasil consistiu, em sua evolução, na proposição de um Estado de bem-estar social cristalizado na Constituição de 1988. A carta magna atual, assim, é o símbolo maior de sua vitória política sobre as forças reacionárias que apoiavam o regime. E os dois condenados petistas foram peças-chave na garantia, no texto constitucional, de uma série de direitos sociais e da instituição de uma ordem econômica gerida pelo Estado. Por outro lado, eram defensores, como herdeiros da rebelião juvenil de 68, de uma maior liberação moral e flexibilização dos costumes. 

O que é interessante observar é que essa geração só toma o poder quando uma vez coligada com as forças que sempre combateu. Coroneis do interior do país ligados ao PMDB, ruralistas do PR, industriais de vários partidos. Formalmente, a ideia era estruturar um grande pacto entre capital e trabalho, unidos pelo desejo de retomar o desenvolvimento nacional, em uma aliança que possibilitasse uma histórica conciliação entre exploradores - alguns dos quais um dia apoiaram o regime militar ou surgiram pelas benesses dele, financeiramente falando- e explorados. Mas na verdade a frouxa aliança escondia a adesão da heroica geração de 68 à velha forma de fazer política: distribuir poder, fazer alianças em detrimento do pensamento ideológico e vontade popular enriquecimento através da coisa pública. A política das boas relações e do presidencialismo de coalizão. 

E eis que pagar dívidas de campanha dos aliados políticos é praxe nesse jogo de poder, e foi assim que Dirceu e seus "comparsas'' arcaram com os débitos do PTB e de alguns políticos isolados. A isso foram juntados uma serie de fatos desconexos, como o contrato ente o BB e a agência de publicidade Delta de Valério, a qual recebeu uma bonificação de volume musculosa, entendida como dinheiro público (quando todos que trabalham no meio publicitário consideram dinheiro da agência...) e o suposto pagamento de propinas a um ex-deputado petista, também através de contratos de publicidade. Tudo isso foi amarrado numa lógica duvidosa e criou-se a ideia de que "se tratava de uma quadrilha'' embasada pela ideia de que, se Dirceu comandava o governo na Casa civil e o partido, ele necessariamente deveria "comandar também'' as ações "criminosas'' desenvolvidas pelo grupo do poder, por que tem o domínio final do "fato''. E o resto é história. 

Hoje todos foram presos, como uma vez foram no regime militar. Dessa vez não por perseguição política, mas por vontade política do STF em reprimir as práticas da "boa e velha política'' tão presentes ainda hoje. Isso é positivo, indubitavelmente... contudo, me espanta a seletividade do Tribunal supremo. Há 15 anos o "mensalão tucano'' espera por julgamento, e a partir do próximo ano a pena em abstrato de boa parte dos envolvidos vai prescrever. Triste ver o fim de Dirceu e Genoino, que arriscaram a vida em nome de ideais elevados, encarcerados por terem cedido às mesmas tentações do poder que tanto combateram quando jovens e idealistas. Apertaram as mãos dos homens que, um dia, armaram os militares para combatê-los na ditadura; tomaram champagne com os que beberam o sangue da nação; deram os braços aos que uma vez os apedrejaram. E o fim não poderia ser diferente. Por que a história e o povo condenam muito mais facilmente e pesadamente os idealistas e herois que se deixam corromper do que aqueles que são vilões assumidos desde sempre.

Assim, além do rigor do julgamento incidir mais gravemente sobre os mocinhos do que sobre os bandidos (alguém acha que uma condenação do Batman não seria muito mais pesada que a do Coringa?), talvez Dirceu e Genoino tenham agora de realizar uma última contribuição para a política nacional. Se uma vez lutaram contra o regime militar, hoje suas imolações na cadeia podem os tornar símbolos de uma nova era de intolerância, em todos os níveis, não com a corrupção em si, mas com as práticas políticas arcaicas que ainda prendem o Brasil ao pior dos subdesenvolvimentos: aquele voltado para o enriquecimento de uma elite cada vez mais robustecida. Sua punição por aderirem à velha política pode, quem sabe, representar uma mudança na cultura política incutida por um repúdio generalizado ante à classe política. E, mesmo agora vilões, terão feito mais pelo país do que quando, um dia, subiram ao pedestal glorioso de herois na luta contra o regime militar. 

domingo, 3 de novembro de 2013

Todos os "santos'' - o que é a santidade?


O que é a santidade? Há pouco tempo, pensava eu que "santidade'' era uma característica inatingível portada por homens e mulheres esculpidos em pedra que decoram as Igrejas. Pessoas que eram muito diferentes das quais se encontra habitualmente: modelos de perfeição moral, marcados pela dor e sofrimento em renegar ao mundo para servir a Deus. O sacrifício por eles feito, assim, me estranhava e até mesmo assustava; pareciam eles tão distantes de serem alcançados quanto as estrelas dos céus; totalmente inumanos, pois negavam, com suas renúncias, ao que me parecia mais natural ao ser humano. 

Essa mácula de tristeza, seriedade, pudor e abstracionismo, descobri, não passa de pura invenção ou estereotipação que é imposta pelo senso comum. A santidade não é algo que está além do homem, mas, sim, é intra omnes: ser santo é seguir a própria e verdadeira natureza humana. Não a fisiológica, mas a espiritual, a de amar sem medidas, tal como Deus, e por isso se entende doar todo seu ser em prol do próximo. E, longe de serem pessoas tristes e infelizes, os verdadeiros santos são poços eternos de alegria e felicidade, por que encontraram a fonte do amor na doação. O único sacrifício que fizeram foi o dos seus próprios interesses e vontades mesquinhas em prol dos demais seres vivos. Amaram, como Deus amou, até o fim de suas forças e, ao perder sua vida, acabaram por ganhar uma nova, eterna. A maioria desses santos, contudo, não são venerados nas Igrejas. 

Um sem número deles jamais serão conhecidos, mas o amor que praticaram os fez adentrar ao Reino eterno. Essa maioria, contudo, é de pessoas simples, tal como pronunciado no Evangelho "para adentrar a Meu Reino, deveis ser como crianças''. Isso não significa, por sua vez, portar ingenuidade ou inocência. Uma criança se diferencia de um adulto por ser "vazia'', livre de ideologias, filosofias ou preocupações materiais, e totalmente confiante em seus pais. Deve-se estar vazio, livre da "riqueza de espírito'' para aceitar a Deus e Nele confiar como uma criança confia em seus pais. Isso é "ser pobre de espírito'', mas rico de Deus. Não é por caso, por outro lado, que alguns dos maiores santos foram pessoas pobres, materialmente falando: a miséria e a abnegação dos bens do mundo auxilia numa maior valoração da cooperação coletiva e incute uma busca permanente pelo bem estar do próximo. As pessoas mais felizes que conheço, certamente, são aquelas que voltam para casa, depois de 8 ou 10 horas de trabalho cansativo, satisfeitas em terem uma família ou amigos para quem se doam completamente. 

A pobreza de espírito, assim, não raro, coincide com a pobreza material, e não por outro motivo que Jesus tanto andava entre os pobres e marginalizados; é contra eles que a dor vem mais forte, e é no solo fértil da periferia que as sementes de Cristo afloram mais rapidamente. A questão da pobreza conduz a mais uma indagação. Como pode, diante da santidade dos pobres, o Criador permitir tanta opressão contra eles? Será Ele injusto? De que vale ser santo? Tais indagações, que levam muitos a se afastarem da Igreja, é respondida pelo fato de que a justiça de Deus não é a do "olho por olho'' talionesca e erroneamente disseminada pela teoria da retribuição (Deus castiga os injustos e premia os justos) mas sim a da misericórdia. Ele não pune um tabefe com outro; dá a outra face. Não fez cair um raio sobre os que o crucificaram; perdoou-lhes e, assim, os salvou. Assim, ao invés de conclamar a destruição dos opressores, Deus oferece o caminho do perdão, por que a traça e o tempo irão erodir toda a riqueza e poder pelos quais os grandes do mundo tanto se sacrificam. Só o que restará, na vida eterna, serão as boas ações desta vida e perdoar quem oprime e mata por ganância é uma das melhores possíveis; por que são os próprios pecados que condenam o pecador, e a desvirtude é uma forma lenta de suicídio, já que Deus nos brinda com o caminho da vida, mas preferimos, conscientemente, o da morte. Deus não condena, salva e perdoa. 

É nesse ponto da justiça que existe uma falsa dicotomia entre santos e pecadores, como se as duas esferas não pudessem se tocar. A verdade é que todo santo tem seus pecados e todo pecador suas santidades. Contudo, em determinado momento da vida, o santo escolheu superar seus pecados em nome de um bem maior, enquanto que o pecador foi incapaz disso, negando assim sua natureza e condenando a si mesmo à tristeza e morte. O inferno, assim é uma criação da humanidade, e está aqui, ao nosso redor, disfarçado de paraíso material. O custo de nossos prazeres consumeiristas é a miséria de mais da metade do mundo, fome, doenças alastradas, trabalho infantil, condições espúrias que aceitamos para ter um celular ou um carro da moda. O inferno é a destruição das vidas de tantas pessoas, seja pela pobreza seja pela depressão, por um sistema econômico e cultural corrupto, assassino auto-proclamado divino e inquestionável. É o "príncipe deste mundo'' que antes era o império romano e hoje é o capitalismo todo-poderoso, absolutizado; é com ele que não podemos coadunar. Não é possível servir a dois senhores, da mesma forma que não podemos alimentar o capitalismo consumeirista e suas terríveis consequências e ao mesmo tempo portar-nos como servos de Deus. Quantos mais pobres e famintos teremos que sacrificar nos altares dedicados aos novos césares?

Curioso é notar que esse sistema utiliza-se do cristianismo, muitas vezes, como ferramenta de consolo provisório, verdadeira ideologia de auto-ajuda que acaba por renegar a essência do próprio cristianismo. A auto-ajuda é um ode ao egoísmo: um monte de palavras escritas em um livro me ajudarão a ficar em paz, por pouco tempo; eu "me ajudo''. A salvação e a paz do cristianismo levam o homem além dele mesmo: é ao ajudar o próximo que evoluo, e é Deus, não eu mesmo, quem pode me conduzir nesse caminho. E esse é o caminho da santidade, e fora dele não há felicidade possível. Todas as outras formas de felicidade são degenerações desta em especial, por que invertem os polos básicos da felicidade oriunda da doação ao próximo: a pseudo-felicidade é uma forma de auto-adoração, de satisfação consigo mesmo, não com os outros ou com Deus. É uma auto-enganação.


Assim, um verdadeiro santo não tem um coração de pedra como as imagens presentes na Igreja; mas de carne, que pode se ferir e verter lágrimas, sem contudo deixar de amar a tudo e a todos como Deus ama aos seus. Tampouco seguir padrões rígidos de conduta, desumanizados; mas sim realizar a verdadeira natureza humana e, ao perder sua vida em prol do próximo, encontrar a vida eterna e a felicidade sem fim, realizando a justiça de Deus nos mais divinos atos de amor: dar a vida pelo próximo e, realizando a justiça de Deus, perdoar. A perfeição não consiste na adesão e cumprimento de postulados morais vazios, mas sim a vivência prática do amor incondicional, sendo esta a natureza humana, "imagem e semelhança'' de Deus. Santidade e felicidade, assim, são duas faces de uma mesma moeda.