sábado, 27 de abril de 2013

Um Beijo para a todos governar

Alguns não conseguem disfarçar a sensação de constrangimento que sentem quando, passeando em uma praça, veem um casal beijando-se atabalhoadamente. Não me refiro a carinhos inocentes de namorados em inicios de relações, mas ao que se chama ordinariamente de "pegação''. Se sentem esses constrangidos "estranhos no ninho'', como se viessem de uma época diversa.

Talvez estejam essses indignados com tal tipo de comportamento com alguma razão. Excluindo-se moralismos artificiais e hipócritas, tal tipo de conduta sofre dos mesmos males de qualquer tipo de ação cuja prática social se deve à massificação: aqueles que banalizam o beijo - e, consequentemente, o amor- como algo ridiculamente caricato. Contudo,o beijo é objeto de larga reflexão através dos tempos. Talvez o primeiro pensador de importância a tecer algumas palavras para essa prática milenar, Platão dizia que o beijo é mais que um gesto banal: é uma forma fisica que as almas encontram de trocar suas essências, valores, ideias, conhecimento. Em Roma, os casais demonstravam seu compromisso mútuo beijando-se em público, uma única vez. Na idade das trevas, os senhores feudais beijavam seus vassalos, como símbolo de união comum contra a os inimigos que tanto aterrorizavam a sociedade da época; na corte de Luís XIV, o fato de um homem beijar uma dama era motivo suficiente para o casamento, se não, para alguns dias de prisão da Bastilha; do império brasileiro aos anos 1920, era comum que namorados e noivos só trocassem beijos em cenários reservados, íntimos. 

Talvez no que muitos considerem resultado de uma evolução gradativa, a sociedade atual adotou a prática exibicionista de realizar gestos de carinho íntimo, como o beijo, em público, seja por força da coação por enquadramento coletivo (em suma: o "eu-fiz-por-que-todo-mundo-faz'') seja pela fraqueza em dominar seus próprios impulsos, o que é mais recorrente. Nesse sentido específico, a alma e corpo humanos, dizia Platão em uma alegoria famosa no "Fedro'', é como uma carruagem, puxada por dois cavalos, que correm em uma estrada retilínea: um deles, selvagem (os desejos e impulsos materiais), torto e desobediente que, se predominasse, levaria a carruagem a sair da estrada para a floresta escura ao lado a fim de se alimentar da vegetação (os desejos, como bem interpretou Freud, caso realizados sem controle, levam o homem à perdição e destruição) e o outro cavalo (a coragem), mais veloz e impetuoso, dócil ao comando e virtuoso, mas cego, não sabendo onde ir, embora sinta ser-lhe melhor um campo vasto e sem obstáculos por onde podera correr sem rumo ou ordem, e que é responsável por impulsinar o primeiro. 

Na carruagem, há um condutor (a razão, o cerne da alma) que equilibra os dois cavalos, segurando-os pelas rédeas (pensamento), para que se mantenham na estrada, atividade qu requer força. E assim deve ser aquele que deseja o equilíbrio: permitir que a força natural que impulsiona o homem em busca do prazer, da felicidade e do bem-estar seja direcionada pela razão, e impulsionada pela coragem, que por ser cega, nunca tem medo de ir adiante. A coragem dá força ao homem para que se satisfaça (dizia Shakespeare, em Macbeth, que "quem pode se conter tendo um coração que ama, e, nesse coração, a coragem para tornar esse amor conhecido?''), mas segundo a razão, que estabelece uma finalidade específica para as duas forças naturais. Platão dizia que, se o condutor afrouxar as rédeas - parar de pensar-, ou se perderá na floresta, ou se perderá no campo, porque mesmo a coragem e força de vontade, sem direção e cegas, são causas de perdição; pior, continuava, era quando o próprio condutor deseja ir à floresta encontrar alguma ninfa, desviando-se da estrada, e termina por ceder aos impulsos do segundo cavalo. O homem, assim, conduzia seu corpo, através do pensamento, que controlavam seus sentimentos, embora estes pudessem também dominar, o que conduziria o homem para a perdição.

O beijo é uma expressão humana de sumo valor, demonstrativa de algo grau de intimidade e paixão, expressão da natureza humana e, como tal deve ser contida e guiada pela razão rumo à uma finalidade. Convencionou-se estabelecer que essa finalidade, antigamente, era o namoro sério; hoje, não há finalidade alguma, a não ser charpuscar tão nobre ação com "ficadas'' sem sentido: muitos deixam o cavalo dos desejos vencer e perdem-se na floresta da falta de sentido, ou então acabam por se encher de coragem e a tudo querem dominar, sexualmente, como tiranos cegos, deixando o segundo cavalo predominar, tendo o corpo claheio como posses, meros objetos de fetiches estéreis; incapazes são os discípulos do "ficar'' de manter um relacionamento dito "sério'' com outra pessoa por muito tempo, dado seu vazio sentimental e ausência de auto-controle. Ficar é coisa de quem não se domina, diria, ou não possui o grau devido de maturidade, que afrouxa as rédeas do pensamento e deixa o cavalo manco e torto do desejo conduzir a carruagem da alma à uma floresta escura. Não é a sensação de prazer que o beijo traz que deve dominar o ser humano, sendo um fim em si, mas sua utilização como expressão de um sentimento mais elevado que o simples prazer; porque o prazer por si é fugaz e efêmero, trôpego diante das marés sentimentais, enquanto o amor expressado por via do prazer é uma fortaleza que nem a morte pode expugnar, que a tudo supera, a tudo suporta e a tudo perdoa.


Mesmo escritas há mais de dois mil anos, as palavras de Platão permanecem atuais: o equilíbrio é a chave da alma, que pode estabilizar-se para alcançar a felicidade e, finalmente, contemplar as virtudes imutáveis e imortais do amor; este, como a justiça, também é um equilíbrio de almas e corpos. E nada melhor para se alcançar essa contemplação do equilíbrio amoroso, do que a relação amorosa com uma outra pessoa, sem máscaras, sem estereótipos, sem tolas encenações vulgarizadas que procuram, como a raposa que busca as uvas na Fábula de Esopo, atingir um ideal muito superior de amor e que, não o atingindo, passam a desprezá-lo como uma ficção não-preferível às relações instáveis e superficiais de hoje. Equilíbrio e moderação, são as palavras universalmente válidas, para que grandes e sinceros amores sejam vividos.

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