Corria
o ano de 2015 – o início da crise política, econômica e social que vivemos até
hoje. Então concluindo o curso de direito, sob orientação do mestre Cláudio César
de Andrade, e diante das opções de elaborar uma monografia sobre temas batidos,
resolvi investigar algo realmente relevante.
Naquela
época, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, mantinha uma guerra aberta
com a presidente Dilma Rousseff. Uma de suas principais munições contra a
titular do Executivo foi tornar as emendas parlamentares ao orçamento “impositivas’’
– para quem não se recorda, o orçamento público federal, ao ser enviado pelo
presidente da República ao Congresso para ser debatido e aprovado, pode ser
alterado pelos parlamentes. Suas excelências sempre dispuseram de alguns nacos
milionários para destinar a seus redutos eleitorais. Acontece que apenas o
presidente da República liberava, se e quando desejasse, esses valores. Isso muitas
vezes acontecia após o parlamentar votar de acordo com os interesses
presidenciais.
O
que era ruim se tornou ainda pior. A partir das mudanças patrocinadas pelo
ilustre deputado Cunha, o presidente se veria obrigado a executar – a gastar,
em suma – o valor que os parlamentares desejassem. Esse valor se limitava a
1,2% da receita líquida do governo, na época coisa de 10 bilhões de reais. Cada
parlamentar poderia dispor de algumas dezenas de milhões para fazer o que
desejar.
Nas
conclusões da minha monografia, sustentei, além da evidente
inconstitucionalidade de tal alteração constitucional, que os parlamentares não
tinham qualificação técnica nem elaborariam estudos sobre a melhor forma de
aplicar o dinheiro de tais emendas. Basicamente, o dinheiro serviria para a
promoção pessoal, populista e eleitoreira dos próprios deputados e senadores,
acarretando grande risco de desperdício de recursos públicos:
“É
de se considerar que, no momento em que as emendas de despesa passam a ter
execução obrigatória, os parlamentares passam a agir como administradores de
recursos públicos, sendo os formulares até mesmo de programas de governo e
obras públicas nas suas regiões de interesse eleitoral. A grande problemática desse
fato é que não há uma garantia sólida de como a decisão política tomada pelo
parlamentar, no momento em que destina uma emenda de despesa a seu município ou
Estado de origem, é tomada: ora, qual o critério para se destinar a emenda para
o ministério da saúde e não para o da educação? Por que se devia construir um
posto de saúde no bairro A e não no município B, ainda mais carente? O real
beneficiado pela execução da emenda parlamentar é mesmo o cidadão? O interesse
público é atendido? Todas essas deficiências põem em cheque
a capacidade dos parlamentares de 1) identificar, com precisão, quais as
necessidades coletivas que devem ser satisfeitas pelo Estado; 2) formular, com
base em tal seleção, uma política pública eficaz para guiar a formulação da
despesa pública; 3) estruturar e planejar o gasto público, com base em estudos
técnicos, de forma a atender à necessidade escolhida.’’ (GUIMARÃES, Jorge. “O Orçamento impositivo’’: Um novo
capítulo na crise da Separação dos três poderes à luz da Emenda Constitucional
nº 86/2015)
Por
tais motivos, não foi surpreendente ler hoje que “TCU aponta baixa eficácia na
aplicação de emendas parlamentares’’(in: https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/politica/2019/12/714830-tcu-aponta-baixa-eficacia-na-aplicacao-de-emendas-parlamentares.html)
, especialmente o seguinte:
“Recursos
destinados por deputados e senadores para financiar obras e programas nas suas
bases eleitorais não contribuem para melhorar a vida das pessoas. Na hora em
que se decide para onde parte das emendas parlamentares deve ser enviada,
necessidades reais da população são ignoradas. Estas são algumas das conclusões
de uma auditoria em emendas feitas entre 2014 e 2017 que o Tribunal de Contas
da União (TCU) acaba de concluir.
Todos
os anos, parlamentares podem decidir onde o governo deve colocar parte dos
recursos públicos. Ao todo, cada um tem o direito de apresentar até 25 emendas
individuais. O valor muda ano a ano. Em 2020, serão R$ 15,9 milhões por
parlamentar, o que significa que o destino de R$ 9,5 bilhões será decidido
pelos 513 deputados e 81 senadores do Congresso.’’
A
coisa ficou pior do que o previsto. Deputados e senadores destinaram recursos
públicos para obras fraudulentas; shows e festividades milionárias; compras
viciadas e desnecessárias. Se tornou comum as notícias, em blogs e sites de
notícias regionais e locais, que o “deputado fulano destina n milhões para a
saúde de tal lugar’’.
Foram
exatamente tais situações que me levaram a considerar a EC 86/2015, que criou a
nefasta figura do orçamento impositivo parlamentar, não apenas
inconstitucional, mas um sintoma de crise política e, ela própria, uma
perversão da democracia:
“Diante da
prevalência das emendas parlamentares como instrumento de poder tanto nas mãos
do presidencialismo forte quanto numa crescente oligarquização dos partidos
políticos presentes no interior do Congresso Nacional, acrescido da baixa
representatividade das forças políticas no interior do Legislativo, não se vê
necessidade técnico-jurídica para a manutenção das emendas parlamentares ao
Orçamento. Estas, na verdade, constituem unicamente um mecanismo de barganha
política e fermento do personalismo político, transformando o legislador em
gestor público, algo que, a rigor, contraria a própria função de legislar e
invade o campo de atuação do Executivo.
O orçamento impositivo das emendas
parlamentares, assim, vem com ideia oposta a que se propagandeia. Confere
independência não ao poder Legislativo, mas aos próprios parlamentares para
continuar a dispor de recursos públicos segundo seus interesses; confunde
legislador e gestor numa figura híbrida que não deixa de confessar sua
parentela com antigas práticas oligárquicas ainda reinantes no cenário político
nacional; e, por pior, impede que recursos públicos essenciais sejam alocados
para onde realmente devem, visto ser o parlamentar um ente quase descolado de
seus representados devido às vicissitudes do sistema eleitoral vigente.’’
É triste notar como a realidade deixou tais previsões mais amargas. As emendas
ao orçamento se tornaram um instrumento de oligarquização e “coronelização’’ da
política brasileira que, além de tudo, transformou o modelo da Separação de
Poderes de um sistema ocasionalmente em crise para um sistema permanentemente em
crise. O desperdício de recursos públicos em plena grave crise econômica e
fiscal, em um cenário onde a população hostiliza e não reconhece seus próprios
representantes legais, denuncia não apenas o modelo de competências do Estado
nacional afundou, mas, sobretudo, faliu.
Essa constatação parte da visão de que o Estado brasileiro se tornou desfuncional por completo. Em resumo: legislador governa; presidente não governa e legisla; Judiciário legisla e governa... e assim o projeto iluminista encontrou seu fim em terra brasilis.