O espaço entre dois sonhos é sempre o mais sombrio. Não é
surpresa que, como reflexo disso, ninguém saiba para onde o país vai atualmente.
A instabilidade política, regada a crises diárias, é reflexo de algo maior e
mais imponente que a simples disfuncionalidade do sistema político-eleitoral: é
o fim de um sonho acalentado desde os anos 80, onde uma esquerda modernizadora
se aliou ao que se chama de uma esquerda clássica contra uma velha forma
fisiológica e oligárquica de política. PT e PSDB eram aliados programáticos; radicalismos
do primeiro a parte, convergiam para a social-democracia, embora discordassem
nos meios de realizá-la. Sucessivamente, se alternaram no poder, com práticas e
políticas parecidas e projetos de poder que se tornaram complementares, no fim
das contas. Afinal, a estabilidade econômica do Plano Real – em que pese os
sacrifícios sociais para mantê-la – foi a pedra angular da redução das
desigualdades da era petista.
O sucesso dos dois governos, no entanto, esbarrou na
contradição flagrante da práxis política, evocando o velho ditado de que quem
brinca com lama tende fortemente a se sujar; com o tempo, os programas
partidários, que encantaram gerações, foram sendo cedidos paulatinamente em
troca de uma ou outra medida pontual, até que as negociações com a base aliada
congressual, política e regional se tornassem a verdadeira prioridade. Os meios
se rebelaram contra os fins. O PT e o PSDB de vinte anos atrás seriam
irreconhecíveis hoje: o primeiro adotou receituários liberais e tirou direitos
trabalhistas; o segundo defende as bandeiras sociais do primeiro e votou contra
o “ajuste fiscal’’ do governo. Fizeram isso premidos pelas alianças – e pelo
mais simples desejo de poder, de sua conquista ou perpetuação.
O crepúsculo dos dois gigantes partidários tem um
ingrediente especial. Em um país de formação histórica notoriamente anti-ética
(onde jeitinhos, malandragens e espertezas são valorizadas socialmente) a
bandeira da ética sempre teve forte apelo eleitoral. Vassouras e caçadores de
marajás despertam o fascínio popular há muito; com os dois grandes partidos do
país, não foi diferente. O PSDB surgiu de uma ala do PMDB que não aceitava que
o comando do partido ficasse a cargo de antigos oligarcas e coronéis vindos do
velho ARENA; no poder fez pior que o PMDB. O PT dizia ser diferente. Embora a
prática da corrupção possivelmente tenha se mantido constante, sem os “saltos’’
que os indignados de plantão costumam atribuir ao ano de 2003, o campeão da
ética já enfrenta o segundo grande julgamento de suas principais figuras por
corrupção. Acabou o último sonho político de nossa geração, sob os auspícios de
um estelionato eleitoral e da crise. Acima de tudo, as contradições
inconciliáveis produziram isso.
Se há um espaço de dormência entre um grande sonho político
e outro, certamente, na nossa história, sempre houve uma “ponte’’, uma ligação
entre passado e futuro. PT e PSDB herdaram uma tradição de esquerda, vagamente
nacionalista e modernizadora iniciada desde 1930. Hoje, as pontes estão
rompidas. Os velhos projetos, mesmo que atualizados sob linguagens modernas,
são incapazes de empolgar – a heterogeneidade social chegou a tal ponto que
purismos não são eficazes. Algo deveria nascer das duas experiências
antitéticas, mas harmônicas, entre o tucanismo e o petismo. Talvez esse algo
cristalizasse o aparato social do Estado com a eficiência econômica e a
convivência com uma economia de mercado mais marcante. Infelizmente, a única
coisa que se produziu foi exatamente a volta ao poder dos setores políticos que
os dois partidos diziam combater no passado. Os velhos asseclas da ditadura, os
oligarcas de terno francês, os bacharéis que mal disfarçam sua burlesca gana
por cargos e verbas, associados a novos tipos, como fundamentalistas donos de
impérios midiáticos e porta-vozes de uma espécie de medievalização tardia. Tem
tudo para dar errado e está dando.
Já se vinha preconizando, nas cansadas democracias
europeias, a morte das ideologias. No Brasil, algo mais profundo, o próprio
sonho geracional que já havia se cindido entre PSDB e PT, filhos pródigos do
projeto modernizador, consumou seu óbito com as últimas eleições e todas as
movimentações que se seguiram. E teve de tudo: esquerdista defendendo governo
de política “neoliberal’’; movimento supostamente apartidário convocando
manifestações pelo impeachment de um governo tão corrupto quanto os
financiadores secretos de ativistas anticorrupção; uma oposição votando contra
um governo que, se mudasse a sigla partidária, seria ferozmente defendido pelos
moralistas de ocasião; militantes anti-corrupção que sonegam impostos, pagam
propinas e ainda dizem que não vão pagar o pato; movimento dos trabalhadores
sem terra bloqueando rodovias e protestando em nome do governo que menos fez
reforma agrária na história. É o caos. A contradição matou os sonhos. E os
órfãos se digladiam pelo espólio de milhões de corações e mentes que se
perguntam agora: para onde vamos?
Dizem que as crises e rompimentos de contradições
inconciliáveis são a deixa para o estadista entrar em cena. O famoso “homem
providencial’’, típico da tradição caudilhesca e populista, tipo que combina
com perfeição a astúcia, o maquiavelismo, o forte apelo popular e a capacidade
de conciliação entre os inconciliáveis, pelo bem maior da união nacional. São
os pais dos pobres, os homens dos cinquenta anos em cinco, os sonhadores da
democracia, o anjo vingador cuja espada faz as divisões na história do país. A
atual prática política privilegia, ao contrário, o político radical, hipócrita,
beberrão e sectarista. Quando criminosos comuns dão as cartas no jogo da
República e assumem a cadeira dos estadistas, que sonho pode resistir ao golpe
da morte? Golpe da realidade que engolfa as expectativas não realizadas, até
hoje, de cumprimento do espírito da constituição de 1988, relegada a simples
peça de poesia?
O governo que dá as cartas hoje é uma múmia. Sua alma já foi
rifada em negociatas; o próprio corpo do governo, seus ministérios, já está tão
dividido e em mãos tão distintas que nem mais pode ser considerado uma unidade
e muito menos ser capaz de qualquer movimento a não ser espasmos de dor. Os
discursos, símbolos e nomes mal disfarçam uma tendência inconfessa de agir à
“República Velha’’, sem ligar para a vontade popular. Quando o próprio governo
foi costurado e gerado, como um verdadeiro Frankstein de partidos e tendências,
para barrar uma operação policial que ameaça a própria classe política, o
principal feito do governo parece ser uma cópia da missão de Odorico Paraguaçu,
o popular coronel de Dias Gomes: construir um cemitério que, ironicamente, será
inaugurado por ele mesmo.
Este é o governo Michel Temer. Um grande cemitério para uma
classe política que deverá ser extirpada, pelo voto ou pelas sentenças
condenatórias, do mapa político. Mas também é cemitério dos sonhos que
acalantaram os brasileiros nos últimos 30 anos.
Um ditado latino dizia-se que a morte é princípio da vida.
Novos sonhos virão. Novas lutas serão ungidas pelo voto popular. Infelizmente,
o desconhecimento que temos hoje das novas utopias é como pular em um abismo.
Se a queda não nos matar, nos deixa sequelados, divididos, pequenos,
dependentes. Isso só aumenta a necessidade de um novo sonho forte o bastante
para nos reerguer.
A paciência nunca foi a melhor virtude do brasileiro. E,
como dizia Confúcio, enquanto esperemos pelo amanhecer, acendamos uma vela para
iluminar a noite. Ao que tudo indica, depois de duas semanas de “governo
interino’’, ela será longa.