quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O "suicídio'' de Dilma Rousseff


Apelar ao passado pode engrandecer ou humilhar ainda mais. A tentativa orquestrada por Dilma Rousseff de se igualar a Getúlio Vargas, no aniversário do famoso suicídio, soa como uma caricatura. Mas caricaturas não são meras piadas; em suas ironias, trazem verdades que golpeiam todos os "lados'' envolvidos na novela do impeachment.
E de todas as ideias quem vem à tona, a de "injustiça'' é a que mais combina com os defensores e opositores de Dilma nessa confusa comparação com Getúlio. Era irônico que um ex-ditador defendesse seu direito de terminar seu mandato democraticamente conferido, mas pensar de outro jeito significava clara injustiça com a vontade popular. Hoje, é "injusto'' que Dilma caia sem ter cometido crimes de responsabilidade (ou pelo "pequeno'' grau ofensivo dos mesmos, se existentes; pessoalmente creio que estes não aconteceram, nem o processo de impeachment seria cabível, mas não trato disso aqui) por ser um desrespeito com a vontade das urnas; e é igualmente injusto que ela, com o apoio de menos de 10% da sociedade e depois de ter destruído a economia do país como nem a crise de 1929 o fez, almeje voltar ao poder.
Nesse combate de injustiças que se acusam, há, no entanto, um elemento em comum com 1954: a vontade popular vem sendo continuamente desrespeitada. A guinada que tanto Dilma quanto seu sucessor deram (adotando o jeitinho PSDB de governar) não foi chancelada pelas urnas em 2014 e só poderiam ser autorizadas, de tão marcantes que são, por uma nova eleição que praticamente nenhum ator político relevante deseja. O verdadeiro "golpe'' está aí, quando a "democracia'' resolve seus problemas sem o "povo'' que a alimenta com o dinheiro de seus impostos, em um grande "acordo'' capitaneado pela escória política da nação.
Esse mesmo povo queria Getúlio, o trabalhismo e o nacionalismo governando; e essa vontade foi traída quando o presidente foi forçado ao suicídio. Nessa mesma linha, não é o impeachment de Dilma, no caso, que consuma a falência e o rompimento do Estado democrático de direito, mas sim o fato do projeto eleito nas urnas ser jogado no lixo e outro não brotar da mesma fonte do primeiro. Sim, da "vontade'' popular.
Mas a história se tornou farsa quando, enquanto Getúlio deixou uma carta testamento que cristalizou um patrimônio político maior que ele, Dilma não deixa absolutamente nada a não ser o desastre. Totalmente perdida e despreparada, foi vítima de suas próprias alianças suspeitas, as relações perigosas com corruptos notórios (que, para variar, a traíram na primeira oportunidade), da incapacidade de simplesmente dar uma motivação para sua permanência no cargo. Dizer que "é meu direito ser presidente'' não tem força para anular os milhões de direitos por ela violados em suas decisões políticas.
No fim, na véspera do início do julgamento final do impeachment, uma única conclusão se impõe, e uma razão assiste a quase ex-presidente do país: o atual governo "interino'' não tem legitimidade (do ponto de vista de ter um conteúdo programático aprovado pelas urnas, não da lei em si) nem relevo moral e ético (um governo integrado por diversos investigados, condenados e asseclas do coronelismo) para estar no poder.
Chegamos, perigosamente, perto do Brasil pré-1930, onde oligarquias políticas racharam o país e o governo em zonas de influência enquanto se unem para evitar perder o poder (a reforma eleitoral de 2015, que favorece coronéis, pastores e subcelebridades; a tentativa de desmontar o SUS para agradar à máfia dos planos de saúde; a estranha e apressada modificação das regras de exploração do pré-sal; e, escandalosamente, a operação de salvamento montada para salvar Eduardo Cunha) e submeter o país a um projeto contramajoritário, do jeitinho que a UDN quis fazer na época de Getúlio. Mas enquanto tivemos no passado um estadista que se matou para evitar essa tragédia, hoje temos uma presidente que, mais que uma suicida, já é um fantasma: além de ter contribuído diretamente para toda essa situação, vai ser um símbolo a nos assombrar por toda a nossa história, sempre nos lembrando que, em 2016, por muito mais do que umas pedaladas aqui e ali, nossa democracia faliu por excluir dela mesma a voz do seu povo. Este povo, por quem tantos dizem falar, mas que em vez de "impeachment'' gritou "novas eleições''!