domingo, 16 de fevereiro de 2014

"Hay que abrirte, Venezuela, pero sin perder la ternura jamás...''



Apesar de inexistir, em termos de política, um "caminho certo'' que deve ser seguido por todos os países, como se todos obrigatoriamente devessem seguir uma cronologia definida - e muitas vezes calcada na experiência dos países ditos "desenvolvidos''- algumas características são vitais para o desenvolvimento de qualquer país. Algumas tão vitais quanto oxigênio o é para um corpo animal: uma vez sem respirar, um corpo entra em lenta autofagia, consumindo a si mesmo para perpetuar-se um pouco mais. E, surpreendentemente, a Venezuela se mostra a prova viva de tal máxima da experiência política, logo ela, a nação que sempre foi uma exceção, em tudo, na américa latina. Na era das repúblicas oligárquicas, era um regime populista; na era sombria em que as ditaduras militares varreram o continente, manteve seu Estado de direito incólume.

Mas que Estado? Um poderoso pacto social entre uma elite latifundiária e grandes empresas do setor petrolífero, ao lado de uma população silenciada e inerte, que durou por mais de 50 anos. Em tese, foi como se o regime das oligarquias, que dominou a América latina até a década de 30, jamais tivesse se encerrado em terras venezuelanas. O atraso político fez com que as insatisfações sociais se acumulassem e explodissem quando a economia foi destroçada pelas políticas liberais efetuadas pelas velhas elites. Protestos irromperam, levando o governo, despreparado para questionamentos populares, a perseguir violentamente e tentar esmagar as manifestações. O líder da oposição, um jovem militar, tentou um golpe e foi preso. Mas quem prendeu-se foi o governo, cada vez mais, na sua incapacidade de fazer concessões ao povo. Acabou morto pela autofagia e apeado do poder pelas eleições, mesmo valendo-se de fraudes e ameaças golpistas para permanecer no poder. E foi sob os ombros de um militar carismático que o povo depositou suas esperanças de liberdade e igualdade. Iniciou-se o governo Chávez. Me perdoem os críticos, mas sua vitória e seu governo foram o equivalente, no Brasil, a algo como a revolução de 1930 em conjunto com a eleição de Lula. Para o bem ou para o mal, uma quebra de paradigmas vigentes desde sempre, de um pensamento único vindo das mentes de uma classe mínima que mandava e desmandava no país. Benefícios foram cedidos, as rendas do petróleo foram deslocadas para a tentativa de construção de um Estado de bem estar social, empregaram-se todos os esforços para combater a fome e o analfabetismo.

A economia cresceu quando o Estado elevou nela seu peso e, ainda mais, depois que a mal-acostumada oposição de direita tentar um golpe desastroso, comprovadamente organizado pelos EUA, conforme assumido pelos seus líderes. O golpe levou o povo às ruas e deu a Chávez uma aura mítica de herói, consolidando sua imagem de um Davi popular que estava a lutar, com as pedradas do auto-proclamado socialismo do século XXI, contra o imperialismo ianque e a elite nacional. A fome foi praticamente extinta; o petróleo, nacionalizado, junto com, gradualmente, outros setores da economia. A população participou, como nunca antes, de forma entusiasmada de quatro eleições presidenciais para repor, com cada vez mais entusiasmo, o colar dourado do primeiro mandatário venezuelano sob os ombros de Hugo Chávez. Mas nem tudo foram flores: a população rejeitou a possibilidade de eleições indefinidas e restringiu o poder presidencial de governar por decretos. Democrático, a meu ver. Mas tal como, uma hora ou outra, o Vargas brasileiro ou Lula teriam de se ausentar da cena política, assim ocorreu com a Venezuela. Mas a oportunidade não foi percebida por Chávez.

O populismo chavista foi um avanço político inegável, ao trazer as massas para o poder, mesmo que de forma indireta, em comparação à república oligárquica de antes. Mas sua função, em qualquer país, é provisória, embora nobre: a de pavimentar o caminho para a construção de uma democracia popular, como ocorreu com o Brasil. Uma vez integradas ao poder na era Vargas, o povo quis mais do que delegar todo o poder a um líder carismático; não desejou mais ser agradado com concessões, mas dar ensejo, ele mesmo, às próprias políticas; quis ter as benesses sociais do governo sem sustentar o alto ônus de viver sob o autoritarismo. Quis exercê-lo de fato, como uma criança que atinge, um dia, a maioridade, e não necessita mais dos pais. E tivemos nossa república de 46, a mais democrática, apesar de frágil, de todas: em seu apagar das luzes, 67% do PIB estava nas mãos dos trabalhadores das cidades, com o menor índice de desigualdade de nossa história. Por infelicidade, a Venezuela fugiu desse caminho ideal e perpetuou um regime populista, sustentado por um Estado forte que não mudou o modo de produção do país, mas seu consumo: utilizou o dinheiro do petróleo para proporcionar uma vida mais confortável ao povo, embora ao custo de manipulações cambiais e uma impressão geral de moeda que levou à inflação e desabastecimento e hoje cobra um preço alto.

O câmbio fixo e controlado pelo governo é vital para o regime, na medida em que os investidores internacionais, diante do aumento de estatização do país, não demandariam títulos ou moeda do país em um cenário hipotético de câmbio flutuante, incorrendo em sua desvalorização e consequente inflação, algo que de toda forma acontece com o câmbio fixo de hoje. Morto Chávez, seu sucessor, um político interiorano sem carisma, conseguiu eleger-se legítimo presidente. Mas não teve a capacidade de perceber as limitações do estatismo e, meramente mantendo o status quo, levou o país à bancarrota econômica. Transformou a estatização em algo definitivo, o equivalente a reformar um barco que antes ia de vento em popa e retirar-lhe as velas, para fortalecer o controle através do leme. O piloto, ou seja, o governo, tem controle total do barco, mas quem disse que, sem velas, ele sairá do lugar? Será, sim, corroído aos poucos e apodrecerá. Como um corpo, faltará oxigênio.
Assim se encontra o governo Maduro, incapaz de dialogar com a sociedade e acuado, cada vez mais, por uma juventude que vem encontrando apenas respaldo na direita política oportunista, insuflada pelas medidas de repressão tomadas por um governo "popular'' contra seu próprio povo. Governo que foi bem sucedido em diminuir as desigualdades sociais, mas fracassou em fixar bases para que essa redução seja permanente. Por que as propostas da oposição para combater o descontrole econômico são advindas do velho coquetel neoliberal, eficiente a curto prazo, mas socialmente desastrosas. Contra elas, o governo desfere acusações sensacionalistas que, embora tenham um fundo mínimo de verdade (alguns estão sempre prontos para um golpe), não escondem a própria culpa no caos reinante. Os radicais do governo insistem em levar a cabo uma política econômica falha e os radicais que lideram os protestos, por sua vez, não abrem mão de por em prática as mesmas medidas neoliberais cujos resultados, há quase duas décadas, levaram Chávez ao poder. Duas fórmulas de fracasso que não levam a lugar algum. 

A Venezuela necessita mais do que nunca que o governo realize uma análise fria do cenário econômico e faça o necessário; mais que isso, que abra as portas ao diálogo com as forças que o questionam, sem ter medo de enfrentar um debate público com a oposição. Protestar é um direito do povo, seja movido por quis bandeiras forem, e um governo popular deveria ter ciência disso. A retirada do Estado de certos setores da economia, o corte de despesas públicas com pessoal, a instituição do câmbio livre , não objetivando uma liberalização pura e simples, podem propiciar que Estado tenha condições de investir não em empresas públicas mal-planejadas, mas na educação e na saúde arruinadas, bem como num aumento dos benefícios sociais. Fortalecer a moeda e direcionar os gastos públicos para as áreas que, uma vez alvo de investimentos, gerarão maior queda na desigualdade social serão mais "socialistas'' que manter um capitalismo de Estado desvairado que une o pior do capitalismo - a concentração de riqueza- com o pior do socialismo -  concentração de riqueza, nas mãos do Estado! 

Se um corpo está sem ar, ele deve respirar, antes que sufoque. Abrir as portas, dialogar, assumir os erros, propor medidas que recuperem o país, ouvir. Esse é o caminho necessário a todo país que deseja seguir os conturbados e nada áureos caminhos da democracia... tão bom seria que tivéssemos super-governantes, verdadeiros filósofos dignos da República platônica,  que pudessem por nós tomar todas as decisões difíceis e, o que é melhor, acertar. Infelizmente tais homens não existem e, quanto mais dialogarmos com o maior número de pessoas o possível sobre as decisões delicadas que se deve tomar, mais chance de êxito teremos. Nisso consiste a democracia: não uma ditadura da maioria, como se efetiva na Venezuela, mas um espaço onde todos possam opinar, ser ouvidos, ter a chance de convencer uns aos outros e, acima de tudo, de construir conjuntamente uma solução pra os desafios que se apresentam. O apoio do povo ou da maioria não basta para caracterizar um governo como democrático, mas sim o procedimento aberto de discussão, algo não verificado ou ainda não desenvolvido pela Venezuela, mas aprendido pelo Brasil. É hora de instituir uma verdadeira democracia, porém sem jamais perder o Estado social tão duramente conquistado: eis a combinação que é o germe para o advento de um regime político novo, além do socialismo e do capitalismo, uma síntese tão esperada entre ambos. Talvez a Venezuela impressione novamente e, fugindo à regra, consiga ser o laboratório onde essa nova experiência possa se dar. E irradiar essa luz de novos tempos por todo o globo, como a luz, hoje apagada, do socialismo fez um dia.