sábado, 1 de junho de 2013

Do egoísmo

É frequente que o senso comum politicamente correto - como parte integrante de nossa moral social-  frequentemente contradiga as práticas sociais. Talvez regras morais existam para não serem (tanto) quebradas, ou para ao menos dar um pouco de ordem ao que, naturalmente, é caótico por essência: o comportamento humano. Sendo assim ou não, é de se notar que, especialmente no caso dos brasileiros, em que pese predominar um certo senso de união coletiva e de atenção caridosa ao próximo - herança, segundo o arquétipo ideal de Weber, de nossa tradição católica- está se operando uma escalada do individualismo, talvez em face da contínua norte-americanização da cultura brasileira. Além de vestirmos jeans, comermos McDonalds e agregarmos cada vez mais expressões anglófonas ao nosso linguajar habitual, - e, claro, importamos também as instituições políticas dos EUA, como o seu presidencialismo imperial e seu modelo de supremacia das decisões judiciais, razão do atual choque entre os Poderes da República na quebra-de-braço Executivo/Judiciário- acabamos por, a grosso modo, adotarmos a filosofia de vida tipicamente anglo-saxã. 

Não se trata somente de se operar um robustecimento do individualismo na vida do brasileiro comum, que desgosta-se cada vez mais com instituições que anteriormente congregavam a coletividade e defendiam valores universais, como os partidos políticos, a Igreja Católica - substituída pelas pentecostais de origem norte-americana, onde o fiel tem uma relação direta com Deus, em um misto de auto-ajuda e interpretação literal da Bíblia, ensejando um crescente fundamentalismo (sim, deixe pessoas sem formação adequada interpretar um complexo texto histórico como se lê um jornal e não ficará impressionado com evangélicos enfileirados indianamente, gritando "morte aos gays...'')-, organizações sociais e sindicais, mas de uma verdadeira contaminação cultural (o velho provérbio "o exemplo vem de cima'', aplicado contra Luís XVI e ao fato de que todos, na França, procuravam emular o comportamento esbanjador do rei, tem muita força). A questão básica, penso eu, é que o individualismo emana das próprias instituições coletivistas, sendo causa de seu patente desprestígio: estas acabam se valendo de valores coletivos para defender os interesses privados de seus dirigentes. O padre que cobra o dízimo e tiraniza moralmente seus fieis, mas que utiliza as verbas da paróquia para comprar objetos de luxo ou mesmo ter uma vida sexual ativa; o político que se diz ético, democrata e defensor na família, mas que ostenta inúmeros processos judiciais nas costas, subserviência aos poderosos e algumas amantes (de ambos os sexos!) para variar. O chefe de trabalho que se apropria das criações de seus subordinados, reduz seus salários e aumenta o próprio, ainda assediando as pobres e indefesas secretárias; não se trata de hipocrisia, que é mero efeito, mas de um fruto direto do amor-próprio desenfreado que leva à satisfação de si mesmo às últimas consequências. Em suma, a máscara do coletivismo e do bem maior do grupo caem por terra quando os dirigentes das próprias instituições sociais dão "o mau-exemplo'', que põem por terra a função do grupos sociais. Logo, se dissemina, de cima para baixo, uma forma de viver e pensar que preza, antes de tudo, pelo próprio Eu e as vantagens que pode obter para si, aliando pragmatismo e instrumentalismo moral. 

O individualismo é apenas a primeira fase do processo, onde o homem substitui os valores sociais pelos próprios, mas mantendo uma postura de respeito diante dos primeiros e dos valores individuais alheios. Só que, frequentemente, o individualismo "evolui'' para sua forma superior: o egoísmo. E, aqui, todo o respeito pela coletividade decai completamente, nada mais põe limites os desejos do indivíduo. Quando egoísta, busca se projetar contra todos afim de subjugá-los à própria vaidade, invadindo, se necessário, a esfera de intimidade alheia, pondo-se acima de tudo - como o caminhante das nuvens, ao lado. Maquiavélico, no pior sentido do termo.

Esse processo, assim, corporificado na falta de ética dos dirigentes sociais, é tomado como carta-branca pelos dirigidos para se rebelar contra a coletividade. A ideia básica desenvolvida por Trasímaco, em seu célebre debate contra Platão em "A República'' sobre a Justiça, elucida bem isso: o sofista dizia, basicamente, que a Justiça se confundia com a vontade dos mais fortes, que a usavam para justificar suas ações, que, claro, visavam sempre ao bem dos próprios poderosos. Os mais pobres e fracos, quando justos, apenas seguiam os desígnios dos mais abastados, sendo, assim, os valores coletivos uma peça pregada para mantê-lo submisso moralmente. Partindo da ideia de que esses valores eram relativos e históricos, já que tanto variavam de uma cultura a outra, chega-se a conclusão de que a ideia de justiça, em si, não existe. Ou seja, mais fácil seria ao indivíduo desobedecer ao valor social da justiça dominante, e, assim, realizar a própria vontade, e não a dos poderosos. Trasímaco fez uma verdadeira ode ao egoísmo moral. E, claro, a mesma ideia se dissemina cada vez mais: "vou garantir o meu, vou pensar o que quiser, custe o que custar, já que pensar o que é 'certo' apenas serve a u(ns)m hipócrita(s), não a todos.'' Salve sua pele, traduza-se!

Dizia o velho Freud que, seguindo o rastro platônico, a mente humana tinha uma divisão básica tripartite, onde os desejos irracionais e sexuais eram contidos pelo super-ego, ou seja, pela pressão social internalizada, em uma tensa relação mediada pelo ego, que, a grosso modo, seria uma seleção de quais desejos e características pessoais poderiam ser externalizadas. Quando esse super-ego enfraquece, a mente humana, em seu inconsciente, passa a erodir qualquer limite à satisfação do prazer. Logo, tem-se um desequilíbrio mental de certa ordem, já que, como qualquer órgão, a mente também tem uma lógica interna e uma função, baseada no equilíbrio entre as três camadas. E é esse preciso desequilíbrio que, hoje em dia, é causa frequente de psicoses, depressões e demais perturbações mentais. "Ó tempos, ó costumes'', dizia Cícero, e, hoje, diz-se "ó tempos, ó loucuras''! Ora, só podemos concluir que o inflacionamento do ego só pode ser um desequilíbrio a ser contido pelo robustecimento da pressão social.

Não é preciso recordar que, em épocas passadas, quando o egoísmo suplanta o coletivismo e o bem estar coletivo, gera-se tal divisão na sociedade que esta pouco pode resistir ante à crises profundas; note-se que Roma caiu em um período em que foi dividida por lutas pelo poder, e nunca mais se elevou novamente, onde cada general objetivava o trono, mas não pensava em repelir as invasões bárbaras! Certa vez, um velho monge galês, poucas décadas depois da queda de Roma, escreveu um livro, "Excedio britanae'', denunciando as causas da conquista e destruição da Britânia sub-romanizada pelos invasores saxões. A principal causa da derrota dos bretões foi sua divisão em um grande número de reis, cada um lutando contra os demais em busca do poder: foi somente quando um jovem, Ambrosio Aureliano, reuniu os reis e comandou as primeiras e lendárias vitórias do seu povo contra os invasores, que serviu de base para o surgimento da lenda do Rei Arthur, o mito que, em si, representa, até hoje, a unidade territorial da Inglaterra e marco de legitimação da monarquia inglesa. Quando Ambrosius morre, e seus filhos disputam o poder, completa-se a derrota dos bretões.

Porque são nos grupos sociais diversos que buscam-se apoios e proteção diante de abalos que somente pela coletividade podem ser solucionados: a civilização floresceu a partir dos braços dos homens e mulheres que, juntos, dominaram os grandes rios e retiraram as primeiras colheitas do seio da terra, e foi sua cumulação que permitiu a especialização do trabalho, a geração de riquezas, sua concentração e consequente desigualdade social, um dos pilares do egoísmo. Ou seja, a raiz do amor-próprio desenfreado é, em última análise, a própria união social. Sem esta, pouco há para o intelecto humano objetivar: todos os grandes desafios, e, por sua vez, as grandes conquistas, são coletivas. O que motiva o indivíduo, o que lhe introjeta ambições, são desejos e desafios instituídos pela coletividade; é esta, inclusive, que estabelece como padrão de comportamento o individualismo! Teria Alexandre Magno conquistado o mundo antigo sozinho? E as grandes navegações? E a ida à lua, o que seria, sem os centenas de estudiosos, políticos e militares que para sua consecução se empenharam?

Mesmo que a ética seja um valor imposto, ela não deixa de existir como um fator que une pessoas diversas em prol de objetivos em comum - no clássico do cinema "O poderoso chefão'', um patriarca comanda, protetor e sábio, uma família mafiosa, a qual as vezes precisa oprimir, para garantir que esta sobreviva e, nem por isso, acaba por impor sua visão, egoisticamente, aos demais, sempre procurando ouvi-los, mas sem abrir mão de sua autoridade, sem a qual a família decairia em desagregação e, consequentemente, ao ocaso; é uma relação de dependência entre governantes e governados, que precisa ser reconhecida. E é por isso que a ética geral e universal não pode ser suprimida: sem ela, a sociedade, e nós mesmos, não seríamos viáveis. E se esse objetivo comum serve ou não, realmente, ao interesse maior da coletividade, é algo a ser julgado pelos próprios componentes desta - embora não se possa negar, como Trasímaco, que ele existe! E, atualmente, chega-se a conclusão, neste país, de que o que devia ter funções públicas, seguindo uma tendência histórica, acaba por servir ao desfrute privado: na verdade, diria que se trata de um momento de conscientização a respeito dessa inversão e, claro, o início de um movimento que recuperará o papel das instituições coletivistas, que, uma vez mais, retomarão seu papel de super-ego sobre o hipertrófico Ego de todos nós. Dessa forma, que se reconstrua a ética, que, como uma bandeira, possa representar a síntese entre a tradição brasileira, coletivista, e as influências globalizantes atuais, individualistas, garantidora de um mínimo-ético à nação e, ao mesmo tempo, condições de propiciar a autonomia moral do indivíduo. Assim, certas questões devem ser deixadas à escolha do indivíduo, mas outras, deverão estar sob guarda das competências da sociedade. Mas isso importa, no mínimo, a repressão ao egoísmo desenfreado e doentio de que estamos começando a sofrer, pelo qual lotamos clínicas psiquiátricas e centros de recuperação de dependentes químicos, além de dar continuidade ao mesmo modelo social explorador e repressor que tanto nos marca, entristece e ilude. O egoísmo é uma máscara, mas com a qual não nos escondemos, mas sim à sociedade, da qual fingimos não precisar, e estigmatizamos como algo negativo e prescindível!

A redução da maioridade penal: "olho por olho, dente por dente''


Poucos temas tem tanto apelo popular. Talvez essa força que a temática penal tenha sobre a coletividade seja o inegável, eterno e universal sentimento de "justiça'' que todas as sociedades tendem a construir: "a cada um o que é seu, à sociedade o que é seu, segundo uma igualdade, uma Justa medida'', já dizia São Tomás de Aquino, entendendo-se aí que, uma vez praticada uma ação delituosa, esta deve ser reparada proporcionalmente, e, nesse sentido, alguns - e não é o caso do célebre Doutor Angélico- buscam um "equilíbrio'' quase absoluto entre crime e sanção -  isso, claro, nas culturas mais primitivas, como já ensinou a tosca escrita do Código de Hamurábi. Acontece que, não obstante os avanços morais e a transformação do conceito de "justiça'', a ideia do "olho por olho, dente por dente'' continua sendo o mais elementar e popular ideal que, segundo a opinião dominante, deve nortear o Estado e suas leis; é, por sua vez, a "origem'' da ideia de justiça, que continua tendo um significado de "proporção, igualdade, equilíbrio'', como bem notou Aristóteles. Essa noção talionesca de justiça, simples, didática e detentora dos charmes cativantes que só as definições extremistas possuem, é a principal bandeira da "cruzada'' que vem sendo empregada por alguns políticos e classes sociais para pressionar uma mudança constitucional que efetue a redução da maioridade penal. Nada melhor, para alguns dos mais apagados políticos do país, que erigir como bandeira a própria justiça, e cavalgar, estreladamente, na indignação contra a "injustiça'' que o tratamento diferenciado aos menores representam aos olhos do eleitorado, rumo às glórias eleitorais e, consequentemente, garantindo seus tronos no Congresso Nacional. Mesmo que isso represente um grande retrocesso e uma desastrosa iniciativa que, equivocadamente bem intencionada, possa agravar ainda mais o problema notável da delinquência infanto-juvenil.

A investida dos setores político-sociais sobre a matéria baseiam-se em três frentes. A PEC 74/2011, de Acir Gurcacz (um político que é filiado a um partido hipoteticamente esquerdista), é a proposta mais inusitada: reduz a maioridade penal, em certos crimes mais graves, a 15 anos. Já a PEC 83/2011 é, de longe, a pior: reduz, plenamente, a maioridade penal para 16 anos, em todos os crimes, sem falar que torna tal idade o marco para o atingimento da plena capacidade civil. Ou seja, aos 16 anos, o indivíduo poderá casar, celebrar negócios etc, e, por outro lado, deverá votar, findando com a facultatividade do voto, que passa a ser obrigatório. Na prática, unifica o regime da maioridade penal e civil em um único marco.

O "linha-dura'' Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, depois de um crime trágico e cruel cometido por um menor em seu Estado, propôs aos senadores e deputados um endurecimento da legislação punitiva sobre os menores de idade. Incorporam suas ideias o aumento do tempo máximo de internação dos menores nas Fundações Casa de 3 para 8 anos, além da criação de um "Regime especial de atendimento'', uma espécie de instituto intermediário, no qual seriam "enquadrados'' os jovens que completarem mais de 18 anos e estiverem "cumprindo medida sócio-educativa'', sendo assim afastados dos que ainda permanecessem menores. Automaticamente, aqueles que praticaram crimes hediondos ou tivessem participação em motins e rebeliões (o que é comum...) destinar-se-iam, uma vez acima dos 18 anos, ao Regime especial. Na prática, trata-se de uma penalização real que transplanta a ideia básica do Regime disciplinar diferenciado (que estabelece uma execução penal mais rígida para os praticantes de crimes hediondos, reincidentes etc), odiado instituto do direito penal, ao sistema punitivo dos menores de idade. Apesar de não alterar a maioridade penal e seu marco, na prática, acaba produzindo boa parte de seus efeitos.

 Por fim, o senador Aloysio Nunes apresentou um "meio-termo'', que vem recebendo amplo apoio na CCJ do Senado e tem parecer favorável de Ricardo Ferraço, relator da proposta: por esta, apenas em crimes mais graves (estupro, homicídio qualificado, participação em grupo de extermínio e demais crimes hediondos) considerar-se-ia plenamente punível aquele que estiver acima dos 16 anos, com a ressalva de que o juiz - e tais casos deveria ser julgados por juízos próprios- só poderia fazê-lo caso vários estudos técnicos de especialistas apontassem o pleno discernimento do infrator, decretando assim a "imputabilidade''. Ou seja, apesar de sedutora por não incorporar os radicalismos próprios das duas outras propostas, a PEC de Nunes apresenta algumas falhas evidentes. Em primeiro, a outorga ao juiz da competência de "decidir'' sobre punibilidade ou não (ou seja: "esse menor pode ser considerado um maior de idade?'') do infrator relativiza um direito fundamental do menor de 16 anos, positivado na constituição: a própria garantia dos 18 anos como marco da responsabilidade penal. A questão é: em nome do direito a justiça (?) e à segurança, pode o juiz relativizar um direito fundamental do adolescente? Quem teria mais peso na balança hermenêutica dos princípios? Dizem os teóricos do princípio da proporcionalidade que a redução de um direito fundamental deve ser meio absolutamente necessário à consecução de outro direito fundamental, cujo sacrifício importasse em maior dano; assim, diriam os defensores da redução, a sociedade "ganha mais'' segurança e justiça do que os jovens ganhariam caso seu direito prevalecesse, e o dano ao direito é menor, considerando o caso da segurança ser sacrificada em nome da garantia dos 18 anos. 

Será mesmo? 

Os que tem vivência na área da aplicação do direito penal sabem que, muitas vezes, conceitos complexos como os direitos em questão são muitas vezes palavras-vazias que justificam decisões baseadas na equidade - no "achismo', diga-se, estimativamente. Abre-se uma brecha para a indeterminação jurídica que pode embasar aplicações siderais da lei, mesmo que tal atividade tenha de ser embasada em pareceres técnicos. Esse é outro dos problemas: o enorme custo que representaria constituir toda uma estrutura para "classificar'' quem "tem discernimento ou não'', representada por psicólogos, técnicos etc. Como se o discernimento pudesse ser "quantificado'' como se afere a massa de um objeto ou a temperatura de um corpo! 

Ah, essas tentações, dentro da ciência jurídica, de simplesmente importar metodologias de outras ciências como se estas pudessem garantir alguma objetividade ao indeterminado e impulsivo Direito, que tanto espelha as parcialidades! O máximo que tais estudos poderiam fazer seria "estimar'' a plena capacidade volitiva do "agente'', o que, conjugada com a técnica de "balanceamento'' do princípio da proporcionalidade efetuada pelo juiz (vale a pena mandar o jovem para a cadeia, restringindo seu direito fundamental, em nome da segurança social?), pouco poderia, em teoria, dividir com precisão "aqueles que entendem e que não entendem'' as consequências de seus atos criminosos.

Por outro lado, a proposta tem seus atrativos. Como mais de 90% dos crimes cometidos - ou infrações...- pelos jovens abaixo dos 18 anos não tem potencial lesivo - o velho furto, porte de drogas etc-, a mudança acabaria atingindo os poucos responsáveis pelos crimes bárbaros tão divulgados pela mídia, e que insuflam os clamores populares em prol da punição impiedosa dos "de menor''. Ou seja, ao invés de permitir-se que assassinos e estupradores juvenis se escudassem em um direito fundamental - e já dizia Ulpiano que, se um direito é aplicado literalmente, sem exceções, como preceito absoluto em todas as situações, ter-se-ia injustiça: "summum jus, summum injuria''!-, tendo o mesmo tratamento que o ingênuo ladrão de comida ou portador de maconha, instituir-se-ia uma forma de tratar igualmente aqueles que cometeram infrações díspares: se um assassino e um mero ladrão acabam na mesma Fundação Casa, pouca distinção haveria entre eles, sendo assim juridicamente válido, e até necessário, que ambos fossem tratados segundo suas ações, sendo o primeiro punido como "adulto'', e o segundo, como "menor''. Essa, de fato, seria uma aplicação correta do princípio da igualdade em sua matriz aristotélica: "tratemos os desiguais de maneira desigual, segundo suas condições, equilibrando-as''. Mas não é só com base em formalismos pode-se decidir sobre uma questão de tão grande monta. É preciso romper os limites gélidos da dogmática e principiologia jurídicas e adentrar à realidade flamejante do panorama social em que se vive.

O problema real é que, ao punir um jovem, mesmo que esse seja precisamente consciente de seus atos e autor de crimes chocantes - na expressão datenista do problema...- como se adulto fosse, este iria parar nos mesmos presídios e penitenciárias dos adultos. E, da mesma forma que os mais de 80% dos presidiários do país, que nessas casas obscuras adentram por crimes sem potencial lesivo, e dela saem como criminosos profissionais, tornando-se, em mais de 50%, reincidentes, assim acabariam estes jovens. A ressocialização, palavra mágica e mais mítica que o el dourado perdido, jamais teria como se efetivar. Nosso sistema penitenciário não recupera, não transforma, não concientiza e sequer pune como deveria: apenas massacra almas, transforma homens em farrapos morais, concentra toda a sujeira que deveria lavar e a intensifica em todos os que por lá passam. O que faria com jovens menores de 18 anos? Sairiam de lá com que perspectiva de vida, eles, estigmatizados desde a tenra idade, marcados como criminosos da mesma forma que o gado é chumbado para o matadouro? Estaríamos, além de inchar o sistema penitenciário já a ponto de estourar com sua crônica superlotação, a dar corda em uma bomba-relógio: os jovens que mandaríamos para a cadeia um dia dela retornariam, e se já os julgamos tão ruins antes, como os julgaremos depois de sua volta? E o que farão eles com a sociedade que os rejeitou uma vez, e certamente rejeitará outra? Como política criminal, promover uma mudança que importe em punir mais pessoas, mesmo que seja de forma mais restrita como a apresentada por Aloysio Nunes,  simplesmente agravaria, a longo e médio prazo, os problemas sociais da delinquência juvenil, embora, a curto prazo, proporcionasse uma falsa sensação de satisfação do senso comum de justiça, que propiciaria doces frutos eleitorais para aqueles que se dizem porta-vozes da sempre injustiçada classe média. 

Assim, reduzir direitos para, pragmaticamente, solucionar problemas práticos de segurança social não se vem mostrando muito eficaz, historicamente falando. A introdução do RDD, da lei de crimes hediondos e a enorme penalização simbólica que explodiu desde meados dos anos 1990, em que pese reduzirem direitos e garantias fundamentais, não conseguiram combater o galopante aumento do número de infrações. Iremos, agora, penalizar mais, tendo em vista essa desastrosa experiência? 

Há mais de 20 anos, o Brasil viu o problema da violência explodir. Como remédio, adotou o caminho mias óbvio: reforçou as polícias militares, contratando mais soldados, equipamentos, viaturas; expediram-se leis penais cada vez mais duras e guiadas por forte comoção social; construíram-se presídios em mais que o dobro dos existentes. A chamada política de tolerância zero terminou, décadas depois, legando ao país o aumento de 1/3 no número de assassinatos e fazendo com que o numerário de presidiários saltasse de 80 mil para mais de 500 mil. O encarceramento em massa, muitas vezes em caráter cautelar (ou seja, prende-se o "acusado'' em meio ao inquérito policial e ao processo penal, sem se ter sequer certeza de sua culpabilidade) foi desastroso para o país. Isso por não por causa da frouxidão (muito pelo contrário) de uma legislação que criminaliza crimes hediondos e instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado, mas sim pela incapacidade em se suprimir a reincidência, que supera a marca dos 80%. Criminalizar condutas e expandir a atuação de um direito penal hipertrófico é o único caminho a não se seguir, e incluir a juventude nesse triste destino é dar continuidade à essa política que só fomenta ainda mais a violência.

O pior de tudo é a iniciativa do senador Ivo Cassol de levar o tema a "plebiscito'' nacional, evitando discussões legislativas e livrando os políticos do ônus de decidir o problema. O fato é que 89% da população, em pesquisas recentes  do DataSenado, é a favor da redução, sem entender de fato o problema e portando o velho senso de justiça talionesco. Uma "justiça'' que, sabemos bem, nada tem de justa, uma vez que sua cruel proporção ridiculamente matemática e seu tratamento igualmente pesado para todos resulta na morte da verdadeira justiça, piorando o problema que virtualmente combateria e, ainda mais, violando o principio da isonomia e os direitos dos jovens menores de 18 anos.

Uma questão que, particularmente, defendo é a responsabilidade social de cada cidadão. Se é certo que vivemos em uma sociedade injusta, cujas estruturas econômicas e morais os condicionam a reprodução dessas injustiças e desigualdades, temos uma quota de responsabilidade pelos subprodutos que a sociedade consumista, necessariamente, regurgita contra nós. Assim, a grosso modo, quem arma o jovem que nos assalta somos nós mesmos, ao não mudarmos nosso sistema educacional e garantir a ele, pelo menos, uma chance de escolher entre o crime e a justiça, e toda vez em que votamos, como aqueles velhos hábitos morosos e irracionais que temos ao coçar o nariz como se fosse uma atitude banal, em políticos como os que defendem a redução da maioridade penal e a manutenção do status quo social. Se é certo que a vontade humana é livre, é certo também que ela é condicionada pela realidade sócio-histórica do indivíduo e mesmo suprimida por elas: entre a liberdade e as necessidades, como uma tese e uma antítese, o criminoso adota uma síntese, usando sua liberdade em excesso para suprir suas necessidades - cujos causadores indiretos somos nós, concentradores de renda, consumistas, alienados que pouco fazem pelo mundo. Eis a formulação hegeliana do crime; a sociedade e nós somos responsáveis, em parte, por ele! Seria de grande imaturidade, injustiça e falta de humanismo procurar um bode expiatório- o jovem infrator-, e nele descarregar nossa fúria acumulada não só contra seus crimes, mas contra todos os crimes, da mesma forma que os antigos romanos faziam ao jogar criminosos - na maioria, que eram detidos por roubar pão para não morrer de fome- aos leões, para delírio do povo que, distraído, não se importava da tirania dos imperadores e seus asseclas patrícios. Temos um incêndio - a violência- para apagar: ora, e tentaremos extinguí-lo jogando mais lenha na fogueira, alimentando o fogo, combatendo violência com violência? O fogo só se extingue pela água ou pelo ar, pelos seus contrários! É isso que temos de fazer, recuperar e ressocializar esses jovens infratores, quebrando o infernal ciclo da violência (comete-se um crime, seguindo-se uma pena, seguida de novo crime - reincidência- seguido de novas penas mais altas...) e retirando o combustível do incêndio, que morrerá ao consumir a última cinza de violência. Nós alimentamos esse fogo, e podemos apagá-lo!

Repudiadas as propostas de redução da maioridade penal, fica a pergunta, tão utilizada como argumento e cartada final dos defensores do endurecimento penal: se penalizar não resolve, o que solucionará o surto de violência que vive-se hoje, que agora se alastra, disseminando-se pelo anteriormente pacífico interior do país, onde a presença do Estado é precária e cambaleante? A resposta é clara aos de bom-senso. Não há como "resolver'' um problema social de raízes tão profundas e historicamente complexas com as penadas do legislador, nem a curto, nem a longo prazo. Estas podem, segundo von Kirchman, transformar bibliotecas inteiras em lixo, mas não tem o condão de transformar o Brasil em um país mais seguro por si só. Já temos leis de mais, eis outro problema! Reduzir a maioridade penal é jogar o problema da delinquência juvenil para debaixo do tapete. A verdadeira solução está muito além disso.

Pouco podemos fazer, a não ser recuperar o falido sistema de internação (as Fundações Casa) de menores infratores, deixando de concebê-los como "projeto de prisões'' para reinventá-los em um espaço no qual o jovem possa ser sim punido, mas que tenha meios de reinserção social, com a instalação de cursos técnicos, estrutura digna, continuação dos estudos, acompanhamento psicológico e médico real; e isso, claro, estabelecendo tratamentos diferenciados de acordo com o "crime'' cometido pelo menor, implantando meios de propiciar um regime mais rígido para quem cometer infrações graves. É preciso fazer o possível para que estes jovens infratores possam ser reformados e que, acima de tudo, não possam "reincidir''. Trata-se de uma medida paliativa, com a qual poderemos ganhar tempo para atacar as raízes reais da delinquência juvenil: a desigualdade social, a pobreza, a miséria, a falta de perspectivas, cuja única solução é a prestação de educação pública de qualidade para todos, junto com toda uma infraestrutura assistencial pública, que, tal como nos paraísos da social-democracia escandinava europeia, possam simplesmente proporcionar tanto ao jovem pobre quanto ao rico meios de, honestamente, obter o próprio sustento. Essa revolução educacional teria, ademais, outro efeito: o de operar uma mudança no paradigma ético do brasileiro, que, enfim alfabetizado, passaria a reprovar as tradicionais manifestações de ilegalidades com as quais nos acostumamos. E, quem sabe, poderia-se enfim extirpar do espírito do povo esse apego irracional à um tipo de "justiça'' barbaresco, no qual o "olho por olho'' tem como único efeito de, no fim- magistralmente apontado por Gandhi-, deixar todos cegos, como são os políticos que propõem a redução da maioridade penal, divisando apenas as vantagens eleitorais que podem dela retirar.