segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Ano novo: repetir ou transformar?


Penso serem nobras as intenções daqueles que fazem votos de ano novo. Apesar de lhes desejar as boas intenções em dobro, é relativamente cansativo ver, todo ano, uma mera repetição do status quo. Os detalhes mudam, mas, na essência, a sociedade - e nós mesmos- continuamos tão indiferentes aos que morrem de fome ou à bala como antes. Proporcionamos a certas castas sagradas lucros gigantescos, mas nos contentamos com migalhas; insistimos, do ponto de vista (anti)romântico, a ainda forjar relacionamentos com base apenas no sexismo, em interesses materiais ou apenas no bojo de estereótipos sociais. Votamos nos mesmos partidos, tendo em vista nossas paixões mesquinhas e não o bem coletivo; a mídia faz o mesmo filme (o maior deles foi o do "mensalão'') de sempre, com os mesmos atores, com algumas variações sem criatividade aqui e ali; vemos os mesmos farrapos humanos, destruídos pelas drogas, nos centros das cidades, e passamos como se fossem eles apenas elementos da poluição visual que infesta nossas metropoles; e, claro, nos embriagamos, cada vez mais, em festins amorais onde os valores da família e da dignidade humana (quem foi para eventos de grande vulto sabe do que falo) são pisoteados; quase a metade de nossos concidadãos mal sabe ler ou escrever como deveriam; as pessoas ainda morrem nas portas e chãos dos hospitais públicos sucateados.

E o país, esse vai muito bem, obrigado, como um navio de velas soltas em ventos, mas sem leme, nem piloto (embora não faltem interesseiros tentando se proclamando de capitães), que nos conduzem para nuvens da tempestade econômica e social. Penso que vivemos, enquanto homens e mulheres, em dois períodos que se alternam: um, que dura a maior parte do tempo, onde trabalhamos arduamente e vivemos ordinariamente, sem pensar ou refletir sobre nada. É o "modo automático''. No outro, recuperamos a vida e alegria, de forma explosiva, em festins; a moral e os outros que se danem, é hora de curtir. E pensamos ainda menos nesse "modo soltando a franga''. Submissão, rotinismo, indiferença, hedonismo: essa é a "mistura'' que nos forma. Dançamos entre os extremos, como se cruzássemos uma ponte sobre um abismo, que é sacudida por fortes ventos, e balança, na luz e nas sombras. Mas, apesar de tudo isso, continuamos avançando: como o anjo a história, olhamos para trás, queremos voltar e consertar os desastres passados, mas somos arrastados pelos ventos do futuro.

É hora de deixar de olhar para trás; aos desastres passados deixemos que o tempo, que tudo cura e apaga, se encarregue; talvez o melhor de ser humano e filho de Deus são as quase infinitas possibilidades que temos de construir o futuro que queremos, ao lado da nossa quase ilimitada capacidade. Mas chegou o momento de deixarmos de simplesmente repetir os anos, mudando apenas as datas, repetindo a mesma sociedade, as mesmas pessoas mesquinhas que somos. É hora de olhar pra frente, de liberar a potencialidade de transformar a sociedade a nosso desejo, onde, de cada um, exigir-se-a segundo suas capacidades, e a para cada um, dar-se-a segundo suas necessidades; é hora, enfim, de sair do modo automático e do modo festeiro,e abrir os olhos para um mundo belo e doente que precisa ser consertado; chegou o momento da grande mudança interior que precisamos fazer em nós mesmos. Escravos do passado, mas senhores do amanhã: não se teria alcançado o que hoje é banal sem antes ter-se tentado o impossível, disse o filósofo. Busquem o impossível! Busquem as coisas do alto! Vivam como se fosse não o último dos dias, mas como se fosse o mais importante de sua vida. Aquele que mudará não só a sua, mas a vida de todos ao seu redor.

A sociedade do egoísmo e da vaidade está em crise, e continuará porque a finalidade do homem, a felicidade, só pode ser atingida pela instauração da sociedade do amor, e não pelo culto do indivíduo por si mesmo. Enfim, feliz ano novo aos meus queridos amigos e familiares. O melhor que posso desejar a vocês é que, munidos do sentimento cristão e ético, busquem transformar a si mesmos, com o fim de buscar a verdadeira felicidade, amando ao próximo como a si mesmos, e a Deus acima de tudo. Só a partir dessa revolução espiritual e individual conseguiremos a revolução material que tanto acalenta os sonhos mais profundos dos miseráveis e oprimidos desde o alvorecer da civilização. Até o próximo ano, que já bate as portas, como um exército invasor - ou libertador?- que vem libertar os prisioneiros de um castelo, chamado passado; é o grande momento que o fim de um ano nos oferece. Quando as portas caiem e as correntes forem rompidas, teremos um momento de liberdade, para escolher se mudamos ou não a sociedade, ou simplesmente reconstruímos as portas, para que ninguém se arrependa e tente fugir, e reforjaremos as correntes, nos prendendo uns aos outros nessa prisão que é esse modelo social. E então: liberdade ou correntes? Que preferieis? Transformem o momento de liberdade, rápido, fugido como uma raposa, em fuga, em perpétuo como o mar, e tão poderoso quanto ele.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Obélix contra César e o feudalismo tributário brasileiro


Obelix contra César: "não pago!''

Gerard Depardieu é um dos maiores atores franceses da atualidade. No Brasil, todos o conhecem por causa do filme "Asterix e Obelix contra César'', onde interpretou um heroi cômico que capitaneava a resistência gaulesa contra as legiões da Roma antiga. Dessa vez, nosso amigo Gerard posa de Obelix contra o "César'' da França, o presidente Hollande, que aumentou pra 75% a alíquota do imposto de renda para quem tem rendimentos acima de ¢ 1 milhão: o homem que atuou nos inesquecíveis filmes "Os miseráveis'', "Danton- o processo da revolução'' e tantos outras películas premiadas renunciou à cidadania francesa e se exilou do país, fugindo do fisco, já que é um dos homens mais ricos de sua classe (dono de bares, restaurantes, hoteis e fazendas em vários países...). É apoiado pela nata do cinema francês e se tornou o "mártir'' na luta dos milionários franceses contra o fisco do cruel presidente Hollande. Ora, a classe média francesa pagava, proporcionalmente, uma quantidade maior de tributos que os ricos, e nunca reclamou; e, quando finalmente os milionários são chamados a dar sua contribuição no enfrentamento da crise, acabam levantando quase uma rebelião contra o governo. Mas, veja! Não é o Estado francês que mais abastece os ganhos dessa gente endinheirada, vendendo-lhes títulos da dívida pública ou concedendo-lhes mil e uma isenções fiscais? Desejam eles continuar a faturar sem nada dar em troca a seu "bem-feitor''? 

A fuga de Depardieu e a rebelião fiscal dos milionários na França é uma ótima oportunidade para explorar-se, em terras tupinuquins, as reais faces do sistema tributário brasileiro. Uma folheada pelos veículos tradicionais de informação - que, lembre-se, são empresas de comunicação que pagam impostos!- repete, como que um mantra, a lição escolar dos empresários brasileiros: a carga tributária brasileira é, em seus 36% sobre o PIB, infernal -  e altíssima. Absurda, irreal, surreal. Os pobres empresários não podem gerar mais empregos e alimentar mais lares porque o "malvado'' Estado suga-lhes até o tutano dos ossos, embaraçando e aumentando o custo de produção da economia. Coitados! Mas será assim mesmo?


Em primeiro lugar, ateste-se quem são esses "ricos'' empresários que tanto criticam o arquétipo tributário nacional. Ora, não se trata de uma classe, mas de várias classes, que tem em comum o fato de terem rendimentos - e não apenas patrimônios -  milionários ou bilionários. Tratam-se daqueles que possuem mais de R$ 3 milhões de faturamento mensal, que é a definição legal - ou doutrinária, ou sociológica- de "grandes fortunas''. Isso, exclui, naturalmente, a grande maioria dos empresários que nós conhecemos (micro-empresários ou empresas simples, responsáveis por mais de 80% dos empregos gerados e mantidos no país), que arcam, eles sim, com tributos pesados e confusos, um dos motivos pelos quais a taxa de sucesso das empresas pequenas no Brasil é tão baixa (apenas 3 em 10 sobrevivem aos 5 primeiros anos de funcionamento).

Imposto é coisa pra pobre!

No Brasil, está previsto constitucionalmente um Imposto sobre grandes fortunas, que nunca foi regulamentado, não por falta de tentativa: o último projeto apresentado sobre o tema, e que despertou debates relevantes (mal atingia 20 mil pessoas no país inteiro e sua alíquota era mínima, de 4-7%; seus recursos tinham o escopo de serem aplicados na saúde pública), levantado pela deputada Luciana Santos (PCdoB- PE), naufragou e hoje está emperrado/arquivado em alguma comissão da Câmara, pela pressão direta que "entidades'' representativas de empresários e banqueiros exerceram sobre o Congresso. 

Outro imposto que penalizava e depertava a sanha dos mais ricos (e que servia de meio de rastrear os sonegadores de impostos), a CPMF - que incidia sobre movimentações financeiras de certa monta-, foi extinta pelo Parlamento em 2006 e gerou aos cofres públicos um rombo de mais de R$ 45 bilhões, cuja falta prejudicou a melhora do Sistema Único de Saúde (um grande pacote de medidas não pode ser implementada pela falta desses recursos!), retardando-a até hoje. 

E, claro, esses dois casos são apenas dois exemplos que mostram a verdadeira "inviolabilidade'' fiscal daqueles que possuem maior renda no Brasil: como suas riquezas são geralmente aplicadas em rendimentos financeiros ou patrimoniais (esses últimos tributados em apenas 4%!), acabam geralmente pagando muitas vezes menos impostos que os mais pobres. E o que é mais impressionante: veículos de luxo, como helicópteros e lanchas, não pagam impostos (quando pagam, a alíquota é mínima, ninharia perto da mordida dos IPVA's de 20, 25%, que custam tanto à classe média!). Ou seja, aqueles de maior renda, no Brasil, tem tão grande força política que simplesmente podem mover suas peças no xadrez da política para simplesmente não pagar impostos. São uma classe diferenciada, privilegiada e, tal como a nobreza medieval, não arcam com impostos; contudo, utilizam estradas, aeroportos, universidades públicas, serviços públicos de segurança, bancados pelo suor do resto do povo. Ora, não se trata do mesmo parasitarismo (ao lado, a familia real francesa, restaurada no trono, em 1815) que tanto indignou e atiçou o espírito revolucionário do povo francês em outros tempos?
As mordomias fiscais não param por aí. Notem que, compondo parte do "jeitinho brasileiro'' de burlar leis e regras imperativas, é um esporte nacional, pelo menos entre as elites, a prática da sonegação de impostos, comumente feita pela lavagem de dinheiro - esporte esse distintivo de classe, já que o pobre não pode sonegar, ou isto lhe é dificultado. Nossos bilionários e milionários tem a quarta maior fortuna, ou quase 33% do PIB (U$ 520 bilhões), aplicada em paraísos fiscais, bem longe das garras do fi(a)sco nacional. Esses senhores e senhoras - empresários do ramo de telecomunicações, transportes, produtos farmacêuticos, mineração e petroleo - simplesmente não arcam com sequer o mínimo que devem à sociedade de brasileira.

O sistema tributário do Brasil mais se assemelha à França pré-revolucionária, de origem feudal. Os estamentos superiores são isentos e se servem dos recursos públicos, como uma forma de distinção social; o povo que arque com as finanças do Estado. Feudalismo tributário, eis um belo nome...

O complexo invertido de Robin Hood do Leviatã

O pior de toda essa inviolabilidade fiscal de nossas elites é que o "perigoso'' Estado tem de pagar suas contas e arcar com suas obrigações. E o Leviatã se volta, claro, para o lado mais desprotegido da sociedade brasileira: a classe média e os pobres. Com o Imposto da Renda, instituído pelos militares em 1966-67, com o CTN, a classe média alta é a presa, junto com parte da classe C (estranho: aquele que ganha R$ 10 mil reais paga a mesma alíquota que aquele que tem redimentos de R$ 1 bilhão...); e, por sua vez, com os impostos sobre o consumo (o famoso ICMS, principalmente, já que é aquele que mais arrecada) e o ISS municipal, chega-se a retirar quase 45% da renda dos mais pobres e classe média com impostos. Em comparação, o peso dos impostos na renda dos 10 % mais ricos é de meramente 16%... ou 28%, quando falamos da "alta'' classe média. Dados do ministério da Fazenda, do IPEA e da Secretaria da Fazenda Nacional.

Ou seja: nosso sistema tributário, diferentemente da maioria dos sistema mais desenvolvidos (veja acima), ainda se baseia na tributação indireta (sobre o consumo e movimentações de mercadorias). Ora, quem consome no Brasil? As classes B, C e D (que, ultimamente, tem maior poder de consumo que a própria classe A!), que muitas vezes pagam 20-27% de ICMS, fora outros tributos, sobre os produtos que compra. A tributação direta, sobre os rendimentos e patrimônio no Brasil (o IPTU é um imposto medíocre, na maioria das vezes; o ITR, ninharia...), é mínima, excetuando-se as alíquotas do imposto de renda, que são progressivas, mas raramente reajustadas (ou seja, quem ganha mais de R$ 1 mil entra na alíquota, ou seja, não é isento, mesmo que sua renda apenas tenha subido de forma nominal, ou seja, sem ganho real, somente para compensar a inflação; por isso que se fala, desesperadamente, em "reajuste'' das alíquotas, que nunca são corrigidas pela inflação, só pra que mais gente caia, com o aumento nominal e não real da renda, nas garras da Receita...). O governo, assim, retira altas receitas da classe média, tanto via consumo, tanto via IR: veja que tudo faz parte de um sistema (o governo subsidia a produção industrial e os bancos emprestam ao consumidor, que trabalha pra pagar os três entes, via impostos, preços e juros). As receitas públicas, contudo, são estranhamente aplicadas, em maior parte, em atividades que beneficiam diretamente apenas as elites nacionais, as que menos pagam impostos. Vejamos como.

Nossos ricos, como já dito, são grandes empresários. Se dividem em latifundiários, banqueiros, industriais e empreiteiros, basicamente. Todos lucram horrores anualmente (veja ao lado), mas algo passa despercebido: quem subsidia e permite tais lucros astronômicos é o próprio governo. Com o latifúndio, o governo é complacente e destina crédito aos produtores a juros baixos, além de controlar o câmbio (desvalorizando-o, e comprando títulos no mercado, ou seja, se endividando, para isso...) sempre que foge do controle, para baratear as exportações do agronegócio, que geram cada vez menos empregos e concentram renda; com os industriais, então, a relação de promiscuidade é descarada. São bilhões em isenções fiscais (R$ 20 bilhões, só para o setor automobilístico), e mais alguns bilhõeszinhos em empréstimos camaradas do BNDES. O pior: a indústria brasileira é, em grande parte, comandada por capitais estrangeiros. Poucos setores são nacionais (até porque a diferenciação entre empresas externas e nacionais foi "acidentalmente'' retirada da Constituição, já que as segundas tem direito aos beneficios fiscais, e as estrangeiras não...), e a maioria remete seus lucros para o exterior, além de pagar royalties e importar componentes das matrizes na UE e EUA. 

Ou seja, com nossos impostos, estamos subsidiando esses lucros (já que o governo empresta e dá isenções pra essa gente), que sequer ficam no país e engordam a fatura das grandes transnacionais; essas empresas produzem caro em nosso país, já que não precisam investir em pesquisa e tecnologia (já que pagam royalties às matrizes, compensações por utilizar as inovações tecnológicas...) e importam seus componentes do exterior.  O pouco e ocasional imposto que pagam são repassados aos consumidores. E, assim, além de pagar altos impostos em nossos produtos, ainda os compramos um pouco mais caros. Vocês podem perguntar porque o governo sustenta essa indústria incompetente. A resposta: é essa indústria ineficiente quem financia as campanhas eleitorais no país, junto com empreiteiras, latifúndio e bancos. É a política, estúpido!

O custo de todas as isenções fiscais e incentivos fiscais (lembra-se de um certo governador nordestino que alardeou a instalação de uma fábrica da Fiat em seu Estado? O custo disso é simplesmente dar um incentivo fiscal vultoso: ora, instale uma fábrica aqui, e pague zero de impostos...)  é de R$ 110 bilhões. Praticamente 10% do que a União arrecada. Por outro lado, o país inteiro investe R$ 55 bilhões, ou algo em torno, em Educação. Será que assim podemos "ir pra frente''?

Dos bancos nem se pode falar. Poderosos, eles detêm boa parte da Dívida Pública do governo (que a usa para "imprimir'' dinheiro), pagam impostos mínimos (o IOF é um quase-nada, e ainda por cima se encontra, atualmente, zerado, como "medida de combate à crise econômica...'') e ainda financiam o consumo do cidadão brasileiro a partir das maiores taxas de juros do mundo (que batem os 200% ao ano...). O Estado gasta mais que arrecada, mas por causa da enorme dívida: não se pode confundir a causa com o efeito (economistas liberais gostam de dizer que o Estado se individa por gastar demais... não será o contrário?). O governo, enfim, gasta quase 45% de suas receitas (algo em torno de R$ 700 bilhões dos R$ 2 trilhões de Orçamento) com a amortização da dívida e sua rolagem (que é "corrigida'' pela taxa Selic, pela inflação ou por taxas flutuantes negociadas "ali na hora da venda''), sendo tais recursos, é sempre bom repetir, originado de nossos suados tributos, principalmente via ISS, ICMS e IR. O governo tira dos pobres e dá aos ricos, exatamente como fazia o Robin Hood real (Robert Hoberhood, um assaltante de estradas que atacava pequenos mercadores, componses e padres, para revender seu saque a grandes comerciantes, que obtinham doces lucros com esses "negócios''...).

O que é mais indignante é que são os grupos acima que mais reclamam da "pesada'' carga tributária brasileira. Eles, que, no fim das contas, não pagam nenhum imposto (o que pagam é repassado ao consumidor...). Incoerente, não?

O problema do pacto federativo: todo o poder ao Planalto

A União arrecadou, em 2011, ainda de acordo com dados oficiais, R$ 1,02 trilhão, o correspondente a 70% da receita total. Ao mesmo tempo, os Estados foram responsáveis pela arrecadação de 357 bilhões, e os municípios responderam pela arrecadação de R$ 80,7 bilhões. Que fica patente nesses dados? Nossa querida União é voraz; mas, paradoxalmente ao fato de abocanhar 70% das receitas (claro, tem as transferências constitucionais obrigatórias...), as competências mais pesadas (Saúde, educação e segurança pública, por exemplo) ficam sob responsabilidade dos Estados e municípios. A União? Que faz a União para gastar tanto?

Essa centralização de receitas sob mando da União tem sua razão de ser: trata-se de concentrar o esforço fiscal em um único centro de poder. Essa centralização se dá porque, justamente, só a União pode ceder aos empresários todos os benefícios que recebem hoje em dia. A União precisa do maior aporte de recursos, ao lado da maior liberdade possível em manobrá-los a bel prazer. Trocando em miúdos: é a ferramenta pela qual os dirigentes do poder podem concentrar a pressão difusa e arrancar a maior riqueza possível da sociedade. Sem o governo federal para socorrer bancos e indústrias, nossos amigos endinheirados não teriam tantos lucros.

Um autor das antigas, Hobbes, falava no Estado como o ente que iria concentrar o esforço coletivo em busca de um fim em comum. No Brasil, a União concentra nossos recursos para a finalidade precípua de ser o principal agente econômico do país, mas no sentido negativo: proporcionar altos lucros, por meio da tributação desigual e injusta, em todos os sentidos, aos verdadeiros donos do poder no país. Aqui, os pobres financiam os lucros dos ricos.

Há outro aspecto no centralismo tributário da União. Prefeitos e governadores são obrigados, para dar cabo dos compromissos (constitucionais, legais e, principalmente, políticos...) com que arcam, a fazer o jogo político dos ocupantes do Planalto, para receber alguma merreca (sob a forma de programas, obras federais, parcerias, convênios, além de alguma compensação pelas frequentes reduções das transferências constitucionais...). E, pergunto-vos, qual o jogo dos ocupantes do Planalto? Ora! É aquele jogo infantil de senhor-e-escravo, sendo que os senhores (feudais) são justamente nossos amigos ricaços -  os mesmos que não pagam impostos. Assim, a União tem prefeitos e governadores como aliados na formação de bancadas parlamentares para aprovar o Orçamento e, claro, impedir qualquer tentativa de reforma tributária. Ou seja, a finalidade é justamente manter o status quo. Nesse jogo, não importam os partidos, já que o fim do governo é o mesmo, e há o consenso, do PT ao DEM, de se manter, intocada como a virgindade das velhas vestais romanas, nossa estrutura tributária.

Conclusão: por uma revolução tributária

O sistema tributário brasileiro é o fruto direto das contradições sociais existentes na nação, e meio de sua perpetuação. É um meio inconteste de demonstrar o alto grau de dependência do direito ante à economia e sua estruturação: a ideia é que a segunda condiciona o primeiro, pervertendo-o, tornando letra morta as disposições legais, como a instituição do IGF, que contrariam seus desígnios. Acima de tudo, é a ferramenta que possibilita, ao lado do monopólio da educação de qualidade pelas elites, a permanência do alto grau de desigualdade social característico do país, onde os mais pobres e a classe média tem boa parte de sua renda confiscada para o financiamento das empreitadas de nossa elite econômica. Nada mais feudal do que uma classe que, além de (quase) não pagar impostos, se esbalda com os recursos de quem paga, não?

Assim, é de se espantar a parcimônia das classes médias franceses ante à rebelião fiscal contra o governo. Mas não é de se espantar que o Brasil continue alienado para as necessidades da reforma tributária, que, me arrisco a dizer, é a mais urgente de todas. Uma reforma política, sem a reformulação das estruturas tributárias existentes, vai malograr; é preciso uma mudança social profunda, com redução entusiástica da desigualdade social, para se embasar qualquer reforma política, só possível por meio do combate à tributação indireta e à sonegação. No Brasil, Obelix, o forte, o poderoso, escravizou César (o Estado); é preciso libertá-lo. Como? Para isso, servem debates, já que não há uma resposta a priori, pronta, acabada...

Nossas elites falam no Estado como um brutamontes incompetente e gerido por corruptos, que surrupiam R$ 85 bilhões dos cofres públicos ano a ano; e o que dizer dos R$ 250 bilhões sonegados nos mesmos períodos? Notem algo importante: sonegar, no Brasil, não é crime, graças ao governo FHC. Pego pela Receita Federal, o sonegador tem de devolver o que levou longe das vistas do fisco e pagar uma multinha básica - ou uma cervejinha para o fiscal, também vale, não? Outro ponto: uma das missões mais dificeis para a Fazenda Nacional é obter o pagamento dos tributos devido pelos mega-ricos. São batalhas judiciais que terminam, não raro, com a vitória do "contribuinte'', beneficiado por alguma ginástica hermenêutica ("entendo que o querelado se enquadrava na categoria de isentos do imposto tal... entendo que o réu não devia obrigação tributária por advento da prescrição... '') por parte dos tribunais. Decisões judiciais assim pululam aos montes como rãs em tempos de chuvas no campo.O sentimento de união classista é tão bonito, não?

E o meio mais eficaz de se atingir a nobre meta de mudar a sociedade nacional é a mudança do sistema tributário nacional, propositalmente confuso (para as pequenas empresas e cidadãos comuns), mas simplesmente beneplácito para nossas elites. Os franceses já se rebelaram contra o Estado, em épocas vindouras, por causa das injustiças tributárias cometidas por este, e o próprio Depardieu protagonizou um de seus líderes, Danton, em um dos seus melhores filmes. Já é hora dos brasileiros finalmente incorporarem essa indignação e tomar a Bastilha do Planalto (ao lado, alegoria da revolução de 1848, a "primavera dos povos'', onde o "rei burguês'' Luís Filipe é expulso pelo povo republicano), o centro vampírico que suga os recursos que geramos, todos os dias, com nosso trabalho, explorado por patrões, patrões dos patrões e pelo governo. "A guerra está declarada aos opressores do Brasil!''

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Cem anos de baião


Conheci a música nordestina ainda muito cedo. Uma vez, estávamos eu e meu pai no carro, diante da chuva que caia sobre as plantações de palma. No rádio, que estava ligado, uma música internacional deu lugar a algo que eu nunca tinha escutado: um ritmo arrastado, contagiante; letras alegres, irreverentes; era ele, o rei Luiz Gonzaga. Fiz o que muitas crianças faziam e fazem hoje: me desinteressei. Meu pai aumentou  o volume do rádio e começou a cantar, algo que nunca havia feito: só depois, quando adolescente, eu viria a saber qual o significado que as músicas daquele homem misterioso, por trás de uma voz tão marcante, representava para nordestinos da velha guarda.

Pois bem, foram cem anos de encantos, dores, lágrimas e glórias. Hoje é um dia maravilhoso para o Brasil: o centenário de seu maior artista, o rei Luiz Gonzaga. O maior, sim! Grande, porque sua música encantou o país numa época em que o nodeste era considerada a "região-problema'', curral eleitoral de oligarquias viciadas, o "quintal'' do sudeste industrializado, destino este de muitos dos pobres sertanejos. Gonzaga foi um deles, e, como retirante, também uma vítima de injustiças sociais: foi obrigado a fugir de Exú porque cometeu o crime absurdo, inonimável e hediondo de apaixonar-se pela moça errada! Jurado de morte, entrou para o Exército e jurou voltar ao sertão coberto de riqueza e casar com Nazinha, seu primeiro amor.

Mas, ora, por quase vinte anos, sofreu junto aos nordestinos que buscaram no Sudeste uma esperança de riqueza. Morou em favelas, passou fome, tocava nas ruas para ter esperança de chegar ao estrelato; e, em meio a capital do poder, o Rio de Janeiro, Gonzaga subiu da lama às estrelas. Os nordestinos viam um pobre como eles, retirante mulato, fazer presidentes, industriais e oligarcas se inclinarem em respeito ao seu talento! "Se ele pode, nós podemos!'' tornou-se a frase de ordem para os filhos do nordeste, desde então.

 Ao lado do sua personalidade e história marcantes, a música gonzaguina, seu ritmo, suas letras simples, portadoras, ao mesmo tempo, da profundidade profícua das espadas filosóficas que cortam a alma, encataram o Brasil. A produção desse grande homem não pode ser vista, contudo, como um mero trabalho entretivo: sua principal obra, "Asa branca'', é mais um grito de socorro, um grito de "Brasil, nós nordestinos existimos e sofremos!'' do que uma simples alegoria de metáforas vazias. Gonzaga se perguntava do porque da judiação, do porque da morte de seu alazão, diante do Brasil estupefato por "descobrir'' tanto as delícias da industrialização desigual quanto o sofrimento dos nordestinos... hoje, o nordeste continua uma região pobre, concentrando a maior parte dos analfabetos, pobres, miseráveis e mortes violentas do país. 

Mas algo mudou: as pessoas não passam mais fome, tem acesso a um enorme mercado de consumo, estão empregadas e, finalmente, veem o nordeste ser a região que mais cresce no país, que mais concentra investimentos, que mais reduz a desigualdade social! Pernambuco, em especial, deu ao Brasil um presidente que, como Gonzaga, saiu da miséria para entrar na história e comandou essa grande mudança que só está no começo. As secas vão e vem, mas o povo nordestino resiste como o mandacaru e, quando a chuva chega no sertão, floreia em verde efusivo. Gonzaga é a representação do espírito determinado e guerreiro do nordestino que, mesmo diante das maiores secas da vida, é capaz de reter vida em seu interior: são suas condições materiais tão prejudicadas que despertam no homem sertanejo uma criatividade extraordinária, simples e brilhante, bem como uma alegria, uma vontade em superar os infortúnios, que só os pode levar a grandes feitos! 

E qual foi o maior feito de Gonzaga? Mostrar ao Brasil os encantos do nordeste? Talvez o maior feito tenha sido ele mesmo. O fato de ter vencido na vida, em uma sociedade racista, com marcas do estamentismo, repressora, esquizofrência ao ponto de importar sua cultura dos grandes centros do mundo: quando Luiz estourou, muitos brasileiros preferiam ouvir Rock, blues, valsas, modinhas.... Gonzaga foi o capitão de uma rebelião da música nacional e regional contra a mera importação de melodias estrangeiras.

 Felizmente, grandes artistas como Flávio José e Dominguinhos continuam o legado do rei do baião, ameaçado de esquecimento pela hegemonia da péssima música em que se transformou o forró, nada mais que versões paupárrimas do ritmo inaugurado por Gonzaga, meros grunhidos ininteligíveis, as vezes! A saudade de termos artistas como Gonzaga é forte - , mas, seguindo uma das últimas ordens do rei, "saudade, meu remédio é cantar....

Assim, sempre lembro de meu pai quando ouço o grande Gonzaga. Não só de sua persona, mas dos valores e crenças, comuns a todo nordestino, que ele procurou me repassar e que, seguindo vergonhosamente o exemplo vexatório da atual geração de considerar tal cultura rústica e ultrapassada, menosprezei injustificadamente. Porque o próprio Gonzaga era a encarnação dos valores simples do sertanejo: dedicação à família, solidariedade, luta alegre e ao mesmo tempo implacável contra as dificuldades da vida e, também, a fé em Deus, na sua moral, nas tradições que fazem do Nordeste uma região cultural única no planeta. Superar, sim, superar as dificuldades, mas para garantir a preservação de um mínimo-ético, de tradições belas e sinceras: superar para preservar! E, diante de uma sociedade que gradualmente vem assassinando a moral, nada mais temos a fazer que procurar nossas raízes, culturais, que nos fazem ser nordestinos... e  ninguém as representa melhor que o rei do baião. Salve, Luiz, o capitão, mesmo nos braços do Pai, dessa ressurreição do espírito nordestino, da mais bela cultura do mundo! Que venham muitos centenários!

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

República dos togados: a opressão Suprema


Me irritaram as declarações de suas excelências os ministros do STF sobre as "revelações'' de Valério sobre Lula. "Tem de ser apurado'', diziam, com expressão séria, deslumbrados pelos holofotes; ora, isso é uma obviedade, e ainda mais uma função (no mínimo) condizente ao Ministério Público (ou a polícia!). 

Suas excelências revelaram uma tremenda arrogância e deram a forte impressão de querer, eles mesmos, dirigir as investigações e, investidos da sanha punitiva-justiceira, aplicar a pena ao Lula. É um dos motivos pelos quais a AP 470 fere normas processuais do Direito Internacional: ora, o magistrado, além de julgar, preside os inquéritos e investigações! Uma aberração, disse a Corte interamericana de direitos humanos; aquele que investiga não pode julgar, como S. Ex. Barbosinha fez, sob pena de violar frontalmente a ideia de juiz "imparcial'' (leia-se: desconectado psicologicamente dos interesses postos em juízo)! Senhores ministros, suas opiniões não tem valia ou importância neste "caso'': acaso agora vão realmente extrapolar suas funções, reunir uma faceta do poder Executivo (repressão ao crime, "poder de polícia'' de segurança pública), e, enfim, oficializar a opressão, no dizer de Montesquieu, resultante da concentração de poderes nas mãos dos santos togados? Teremos, enfim, como os produtos multi-uso tão em moda, um STF que é Ministério Público, Polícia Federal e Judiciário, três em um? Vós não sois autoridades policiais (talvez pretendam...?) para opinar em tais casos, excelências, escândalos meramente políticos, que partem de denúncias velhas, já desbaratadas há 7 anos. 

Trata-se de mais um ataque hediondo da Folha de S.P. com fins meramente políticos, parte da estratégia da oposição política (formada por parte da mídia, partidos tucanoides e certos agentes econômicos ocultos) ao atual governo, que se baseia na condenação ética do governo petista (mensalão, Cachoeira, as coalizões que sustentam o PT, a distribuição de cargos, as fraudes em obras públicas, a "criminalização'' da polític petista...) e no suposto "excesso'' de estatismo ineficiente na economia (a redução das tarifas de energia elétrica, a desoneração dos impostos, a guerra contra os juros, o "endividamento assustador'', a "pesada'' carga tributária, a perda de capacidade de investimento...), causador na paralisação do crescimento econômico: os senhores ministros mostram muito bem seu "lado'' e, agindo como peças nessa engrenagem política, despojando-se da dignidade de membros da cúpula do Judiciário (que deveria permanecer afastada dessas intrigas politiqueiras e sujas, justamente para não contaminar-se), acabam agindo mais como peões da oposição, esquecendo-se de seu devido papel como defensor da Constituição e não de "guarda'' (o super-ego, é clássico!) da sociedade. E o pior: se mostram, sempre, como pretensamente imparciais!

Ora como diferenciar quando um Ministro age segundo suas funções institucionais, quando age como cidadão e quando age como político pragmático-em-busca-de-vantagens-mesquinhas? E, oh, o que fazer quando o ministro usa seu cargo para satisfazer seus próprios interesses políticos/pessoais (vaidades!)? Ora, então, privatizamos nosso STF às vaidades, interesses e finalidades dos próprios ministros, que as alcançam "jogando'' com os dois grupos políticos que se digladiam pelo poder no Brasil. 

Porque, oras, o ex-ministro Ayres Brito flerta com a chance de se tornar senador, da mesma forma que o Poderoso Joaquim Barbosa sonha em chegar ao Planalto. Se tem chance, é outra história. Não só por pretensões tão ambiciosas agem os ministros: as vezes, pressionam o Executivo com uma decisão negativa aos interesses deste, com o fim de obter um incremento orçamentário (ou seja, nos próprios salários); em outras, violam a Constituição para garantir a impunidade a empresários (Dantas?) ou lhes são ternamente favoráveis em ações bilionárias a quem dizem preencher os requisitos de "repercussão geral'', nos recursos extraordinários. E assim vai. O pior de tudo é quando um ministro (Fux) se dirige ao mundo inteiro e diz, praticamente, que vendeu uma sentença e prometeu julgar um caso em favor de interesses políticos ("mensalão? Eu mato no peito!'') para obter apoio com o fim de cingir a toga negra dos ministros do Supremo. E, claro, tudo isso na maior naturalidade, como se o tráfico de influência tivesse sido descriminalizado... o fisiologismo sempre invadiu o Judiciário, mas nunca de maneira tão forte, principalmente porque os juízes cada vez mais deixam de ser paus-mandados dos políticos e se tornam cada vez mais ativos, poderosos por, note-se, acumular funções que seriam dos políticos, sejam legisladores ou administradores públicos (ativismo judicial e judiciarização da política, o que seria de suas excelências sem vocês?).

Quando um Tribunal Superior que passa a atuar como agente político ativo, afundado no mundo de vaidades e troca-de-favores do sistema político, é como se o árbitro do jogo de futebol passasse a jogar em um dos times (ou cria um terceiro time para disputar a partida!)... se o órgão-controlador passa a "jogar'', quem zelará pela aplicação das regras? Quem controlará o show de vaidades da república dos togados? Esperemos que essa República togada tenha um rápido e implacável fim, assim que contrariar os interesses do povo brasileiro (o que não demorará a ocorrer!): temos a tendência, em nossa história como país, de subordinar recursos, espaços e assuntos públicos, coletivos, estatais, em nome de interesses privados. Falou-se num Império dos escravistas, República do café, República populista, República militar-tecnocrática, onde há sempre um grupo que monopoliza o poder... mas, após uma calma transição, os agentes que privatizaram (ou estão privatizando) o Estado em nome de seus interesses são os sacerdotes da deusa Têmis, quase deuses, verdadeiros sábios platônicos iluminados que podem ver o mundo brilhante das essências do Direito e, ao retornar à "caverna'', impor essa "verdade'' aos alienados e condenados habitantes da escuridão de poder, oferecendo a libertação dos grilhões, bondosamente, aos pobres miseráveis... figindo realizar a República platônica, onde os sábios comandam guerreiros e campônios, alguns magistrados querem perpetuar velhas práticas e formas de dominação com base em "truques pirotécnicos'' de hermenêutica jurídica e ativismo judicial. Transformam a Justiça em show, espetáculo, em meios capitalizadores dos próprios julgadores e seus interesses! E, por fim, transformam cidadãos em palhaços, que ficam a contemplar o poder ser disputado por mais um agente político privado que pouco lixa-se para os interesses coletivos... e, pior, esses cidadãos incautos, estimulados pela fúria parcialmente vingativa do STF, ainda aplaudem suas excelências! Com a devida vênia, isto é uma fraude à democracia!

domingo, 9 de dezembro de 2012

Ter e não ser, eis a questão: o império da megalomania



 

O caráter de uma pessoa é discernível pela sua reação quanto às boas qualidades do outro. Alguém que respeita, reconhece e mesmo admira as boas qualidades de uma pessoa é um ser humano aberta para a evolução, diálogo e, claro, sinceramente capaz de nutrir afeição pelo próximo. Tendem a perceber e valorizar mais os traços bons do que os defeitos. Já um outro tipo de gente procura destruir o outro, menosprezar suas capacidades, ocultá-las, ignorá-las ou sobrepujá-las, sempre dotando esses talentos de alguma característica negativa, talvez para compensar sua própria inferioridade ou simplesmente “eliminar a concorrência’’ de alguém que pode ser, no lugar dele, o centro das atenções. Uma pessoa que fala bem é “espertinha’’; um estudioso é “louco’’; um fiel cristão é “alienado’’; um bom pai de família “sempre tem algum segredo sujo’’; alguém que escreve reconhecidamente bem só o faz para “aparecer’’; se fulano é rico, "é porque roubou''; se cicrano é ético, é por interesse ou falsidade.  É triste.

O pior é que o segundo tipo de pessoa costuma parecer o primeiro: fingem respeitar e admirar o outro, o cumulam de elogios, buscam seu favor quando necessário, utilizando uma bajulação constrangedora para maquinalmente ocultar suas movimentações contra o incauto objeto de inveja. Esta é fruto da vaidade das pessoas: não conseguem suportar que algumas pessoas façam certas coisas de forma melhor, ou que tem princípios mais elevados, ou que são mais queridas. A inveja e a vaidade, essa acima de tudo, são verdadeiras patologias do espírito, que muitas vezes levaram os homens a por em prática empreitadas absurdas, como o objetivo milenar de alguns elementos humanos de ascender à divindade. E, tal como os déspotas da antiguidade oriental (era o caso de nosso velho conhecido, o imperador Calígula, a personificação da inveja, da loucura e da megalomania), nossos invejosos de hoje buscam superar o outro, dominá-lo e converter-se no objeto máximo de adoração alheia; qualquer pessoa “melhor’’ que estes pequenos tiranos deve ser destruída. É o reflexo da opção descarnada sociedade pelo espetáculo pirotécnico midiático, da colonização do espaço público por meros interesses privados: as pessoas almejam se tornar celebridades de seus pequenos microcosmos sociais. E nada mais propício ao império da inveja do que o desejo da fama e glória. É o “querer ser admirado’’, sobretudo a partir do poder econômico. Acaricia nosso ego. Doce ilusão!

Tanto teimam em superar os outros, para supostamente resguardar sua arrogância e seu ego intactos via consumo, que esquecem de suas próprias qualidades, e acabam perdendo sua identidade, valores e mesmo a capacidade de amar.

Uma pessoa sem caráter, que deseja se tornar objeto de adoração pelos outros para alimentar sua própria vaidade (como no conhecido conto de fadas, onde a rainha-má teima em tentar tornar-se a mais bela, destruindo a pobre Branca de Neve por ser mais bonitinha), acaba esvaziando-se de valores, da própria personalidade e finalidade ética para simplesmente viver em função de si mesmo; o que, em resumo, não tem sentido nenhum: acumular bens, consumir, concentrar poder, e para quê? É o alto preço que se paga pela megalomania materialista de nossos tempos. Por outro lado, são duas as forças que destroem a fortaleza do espírito humano, e estão na raiz do mau-caratismo do homem invejoso. A primeira, a frustração, seja com o corpo (representação do Eu para a exterioridade/sociedade, bem como autoimagem), seja com os relacionamentos amorosos, seja com aqueles de quem dependemos e que dependem de nós (família, por exemplo); e que, no nosso pequeno estudo, é compensada pelo uso - e abuso- do poder econômico para forçar uma modificação em tais estados de fato: cirurgias plásticas para "corrigir'' o corpo; redução do amor ao sexo, que pode ser pago; redução da família e amizade ao pragmatismo ou ao simples convencionalismo. Essas três formas de tentar superar a frustração consistem na simples adoção de estereótipos sociais. A segunda força, talvez um pouco desconhecida, mas igualmente devastadora, são os próprios paradoxos da vida, que a fazem perder o sentido: momentos de felicidade extrema seguidos de tristeza; vitórias seguidas de derrotas; a morte que ceifa a vida. O sofrimento necessário ao amadurecimento é abominado e, de todas as formas, escondido, evitado: busca-se apenas o prazer. O homem se torna assim frio, tanto porque perde a esperança no otimismo ou por simplesmente ignorar as lições do sofrimento, estagnando em sua evolução espiritual.

O homem invejoso e egocêntrico é uma casca vazia, inconstante, que pode deter mil conteúdos estereotipados diferentes, que sempre são trocados de acordo com as circunstâncias; acabam vivendo em função dos outros, tentando compensar suas frustrações e, ao tentar se tornarem os senhores absolutos dos seus semelhantes, acabam reduzindo-se a um tipo curioso de escravidão e dependência sentimental dos elogios de outrem. Perdem o sentido de suas vidas, mergulham na depressão - porque se frustram fatalmente- ou, então, acabam se afundando na perversidade e na frieza: são capazes de apreciar o sofrimento alheio sem sentir um pingo de emoção. Destarte, podem se tornar bestas, amálgamas de vícios (pedofilia, alcoolismo, dependências de narcóticos etc) – por meio das quais buscam emular ou simular satisfação e felicidade, algo do qual são incapazes- ou, então, nem sequer isso: o pior para eles é terminar como uma estátua, vivendo mecanicamente. 

É assustador saber que essa tipologia nada especial de seres humanos domina nosso mundo, seja como políticos, empresários, banqueiros ou religiosos... e, claro, buscam impor os mesmos (des)valores ao resto da sociedade. E a voz por meio da qual fazem isso é a mídia. Diversas crises econômicas, políticas, culturais, espirituais, psicológicas tem como causa direta a imposição do estereótipo da megalomania, que é o meio implicito que o sistema capitalista encontra para estimular o consumo amalucado e a competição pelo dinheiro, poder e status. E, eis as perfeitas distrações para o homem frustrado e pessimista: preocupado com a busca do poder, mal pode averiguar a ruina interior e sua própria infelicidade ou, pior, busca compensar essa frustração com o consumo. Competindo, para tal, com o outro. Eis a gênese da inveja.

Essa competição, longe de levar a ascensão dos "mais produtivos'', dos melhores elementos ou de propiciar o avanço técnico da sociedade (que são apenas efeitos colaterais: ora, quem já tem dinheiro e tecnologia não vai permitir que pessoas com potencialidades maiores, mas sem os mesmos recursos, ascendam, não?), tem como efeito principal o esmagamento da grande maioria por uma minoria ( e a consequente crise existencial e a proliferação de patologias sociais diversas, como vícios, pobreza, marginalidade), legitimando toda forma de arbitrariedade e abuso em nome do lucro e do consumo, que são as formas oferecidas pelo capitalismo para satisfazer a vaidade humana; a projeção disso, na economia, são os poderosos monopólios não-naturais que dominam a economia mundial. A inveja é a peça-chave nesse processo, no microcosmo social das pessoas. O Mercado, numa frase, oferece a seus discípulos a chance de ser "deus'': donos de sua vida, reis de si mesmos, livres para satisfazer a si mesmos, usando e desusando as pessoas, senhores de seus contextos sociais. Acabam, pois, escravos não só da opinião alheia, mas do próprio Mercado! Mercado este, note-se, criado por estes mesmos homens, ansiosos de usá-lo para satisfazer sua vaidade!

Em suma, nosso sistema, numa visão microsistêmica, é sustentado pela vaidade e inveja das pessoas, de uma certa forma. Essa vaidade é quantificada pelo lucro e consumo, sendo o outro um adversário a ser derrotado para a suposta supremacia do homem. O resultado é que o homem deixa de ser homem, esvaziando-se de si mesmo, tornando-se ou um psicopata ou uma máquina fria e implacável pragmática, em busca de poder, status, glória.  O ter destruiu o ser: as pessoas buscam destruir-se, para concentrar poder aquisitivo em suas mãos. Essa necessidade de destruir o outro é enraizada nas frustrações e na esquizofrenia invidual em abominar o sofrimento. Em suma: o invejoso, o frio e calculista, o psicopata e tantos outros loucos sociais são frustrados, títeres raivosos de um sistema decadente que constitui, ele mesmo, uma doença. E tudo isso nos acompanha em nosso dia-a-dia! Cuidado com os invejosos: o buraco é bem mais embaixo!

sábado, 8 de dezembro de 2012

A natureza humana: as estrelas dos ideais e a lama do egoísmo

 

O ser humano é execrável e, ao mesmo tempo, fascinante, por ser capaz tanto de desonestidades baixas como de feitos notáveis do ponto de vista ético e afetivo. O pior é que, muitas vezes, os atos das pessoas que nos rodeiam oscilam tanto para um extremo como para o outro. São capazes do mais puro amor, mas também do ódio, da violência, do ressentimento.

Muitas vezes, as decepções diárias nos levam a crer que só existem pessoas más; que ninguém gosta de nós genuinamente, porque isso não é possível ao homem, como concluiu tristemente Montagne. Certos pensadores diziam que as relações entre os seres humanos são meros intercâmbios de interesses: o sentimento abstrato (amor, amizade, fraternidade) é algo criado (pelo inconsciente coletivo?) para disfarçar o intento puramente material e egoístico das relações sociais, onde um usa o outro ou para o prazer, ou para sua autoconservação, ou para cobrir-se de glória, esmagando o próximo ou levando-o a depender de nós; é também meio de sujeitar as pessoas, distraí-las, consolá-las (o ópio, o narcótico...), dessa realidade patente, triste e tenebrosa (enlouquecedora!), oferecendo um sentido (a autorealização, a moral, a política...) para simplesmente encobrir a ausência de sentido que há no egoísmo; no fim, um milhão de pessoas acreditam que existem coisas na vida (amor, amizade etc...) cujo valor é muito maior que o dinheiro, o poder e o prazer, enquanto umas mil sabem muito bem que tudo isso é vazio, e buscam o poder negligenciado pela coletividade. No nosso microcosmo, essa lei da hipocrisia explica o caráter anfíbio das pessoas: são boas, quando precisam de nós, e más, quando não precisam. E, claro, usam a "amizade'' ou "amor'' para nos manter apegados a elas, mesmo quando nos maltratam. É o que dizem Maquiavel, Hobbes e outros arautos do "mundo-não-vale-nada''.

Pense bem, dizem os pensadores pessimistas: você trocaria uma pistola automática pela espada do Peter Pan (ou uma cobertura em Miami pelo governo da "terra-do-nunca''?)? Uma conta de dez zeros à direita no banco por "amor''? Pois o que nossos mestres políticos (as elites) fazem é justamente nos oferecer o irreal, o metafísico, enquanto se apropriam eles mesmos do que é real, físico, material, nossa riqueza produzida pelo trabalho, apropriada por eles. Eles nos manipulam para conseguir seu próprio interesse, que é concentrar a riqueza. Voi lá, eis o meio de dominação social mais clássico, via Nietzsche e Marx; para nos libertar dessa prisão, devemos mandar às favas toda moral, todo conhecimento imposto a nós pela coletividade e construir nossa própria verdade, nosso próprio mundo, com nosso próprio pensamento e trabalho; para legitimar tal rebelião do indivíduo contra a sociedade, a filosofia hoje apela descaradamente ao super-relativismo, onde todos os pontos de vista são válidos. No fim, não somos obrigados a ser bons com as pessoas, já que elas não valem nada, e podemos esmagá-las, na concorrência da vida (o mercado, sempre ele...), de consciência tranquila, realizando a lei de seleção de Nietzsche: os melhores tem de esmagar os fracos. Veja que essa é a idelogia do capitalismo neoliberal, que muito aprecia o existencialismo, já que este proclama a morte das verdades gerais e universais, quebrando todos os meios de unir a coletividade em torno de ideais comuns. Só resta o indivíduo, sua propriedade e sua capacidade de administrar seus recursos privadamente. O homem se torna uma ilha. 

Mas acho tudo isso mais divagação genérica do que realidade.

Na verdade, o pior do ser humano, em toda sua desonestidade e maldade, se dá quando ele se absolutiza e passa agir no mundo com a clara intenção de ser por ele adorado, ou de por seus interesses privados acima de tudo. O melhor que o ser humano oferece, por outro lado, é quando se dedica ao próximo, ao outro, ou às causas nobres e ideais: o paradoxo nessa última ideia é que o puro idealismo é impotente (não transforma, por si mesmo, a realidade) e o pragmatismo a serviço das ideias (o "transformar as ideias em fatos'') acaba por poluir os ideais fundadores. Quem não se recorda de um certo partido, outrora bastião da ética e dos interesses sociais, que, vendo-se no poder, para realizar (supostamente) suas bandeiras ideológicas, precisou "vender sua alma'' e fazer valer a secular diretriz da política "os fins justificam os meios''? A realidade perverte os ideais, e, no fim, as converte em meio de dominação, de doutrinação e de legitimação. Pense bem: imagine que, numa sociedade dominada pela corrupção e pelo império de uma elite de políticos, empresários e banqueiros, um movimento popular chega ao poder. Cabeças rolam (literalmente), reformas são feitas em nome dos ideais republicanos, democráticos e socialistas; mas os problemas não desaparecem, nas canetadas dos revolucionários. O regime cria seus próprios vícios, decorrentes da fantasia de suas ideias e e derrota destas na quebra-de-braço com as circunstâncias da realidade e o mau-caratismo das pessoas. O ideal da revolução apenas legitima um novo tipo de dominação que, apesar de realizar algumas bandeiras, se rende ao pragmatismo: no fim, o ideal é apenas uma justificativa para uma nova elite chegar ao poder, com o único fim de locupletar-se com o trabalho alheio. Os revolucionários, contrariando suas ideias dialéticas, se tornam reacionários, em interesse próprio, é claro.

Assim, podemos, mesmo em nome do próximo e de grandes ideais, agir em nosso próprio e mesquinho interesse, encobrindo-os com uma máscara de nobreza. Sábios iluminados que prometem resolver os problemas num passe de mágica são altamente questionáveis; profetas do egoísmo e do "salve-se quem puder'' do existencialismo acabam proferindo palavras vazias que apenas aumentam a angústia de nossos tempos.

A potencialidade negativa dos ideias e do coletivismo não implica que estes são condenáveis. Nesse ponto, a lição do cristianismo é notável: dedique-se ao próximo e o ame como a si mesmo, mas, em vez de liderá-lo, dominá-lo ou elevar-se sobre ele, sirva, seja o menor. Isso implica em duas ações: abdicar do poder potencial sobre o outro e recolher-se, humildemente, a serviço dele, mas sem distinção e sem buscar algo em troca. Amor desinteressado, diga-se. Para Cristo, aquele que é menor, social, política e culturalmente (os "pobres de espírito'') é o maior espiritualmente. Essas ideias simples ferem de morte o egocentrismo existencialista e o pessimismo quanto ao ser humano, bem como o falso sentimentalismo que encobre, como uma capa, os dois primeiros: mostram que é possível ao ser humano agir, amorosa e desinteressadamente, por ideias e pela coletividade. A própria morte de Cristo e seus seguidores em nome dessas ideias não revela nada além do supremo sacrifício pelo próximo, por Deus, pela verdade. 

Assim, o que explica disparidade de comportamento das pessoas é a oscilação entre esse amor incondicional e o egoísmo. O homem evolui como o mitológico Sísifo empurra a pedra montanha acima: as vezes, somos capazes de subir, penosamente, e, as vezes, de descer, rapidamente. E, claro, dentro de nós sempre se desenrola essa luta entre amor e egoísmo, e, vez ou outra, um dos dois vence a parada; mas, como compreendeu Rosseau, nossa "natureza'', nossa humanidade, é composta exatamente do "lado bom'' do ser humano: é o "amar'' que nos faz diferentes dos animais e imagem e semelhança de Deus. O egoísmo é uma característica animalesca. Não se decepcione quando um pai, mãe, irmão, amigo ou ente admirado agir como um idiota. Lembre-se que é a presença dos defeitos no caráter humano que o tornam passível de evolução, melhora, refinamento, e que nada está dado, mas tudo está para ser construído, e, acima de tudo, a personalidade do homem entra nesse processo.. O mundo está aí para ser consertado! Mãos a obra!